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O bicho-pau-pau-bicho

O bicho-pau foi-se embora naquele dia. Mas não tardou a voltar. Não voltou como bicho-pau.Voltou como pau-bicho na narrativa deum ex-cultivador de arroz,vindo de algum lugar do pobre interior do Maranhão, quetrazia consigo uma memória cheia de fatos tão incríveis quanto a aparição de um graveto seco andando pela minha cozinha.


Maurício Alencar
Articulista

 

Certa manhã fui surpreendido pela aparição miraculosa de um bicho esquisito. Ele era fino, comprido e marrom. Assemelhava-se muito a um inseto, mas tinha a forma e o aspecto de um graveto seco. De seu longo e fino tronco ramificavam-se seis pernas ainda mais delgadas, distribuídas em três pares que o mantinham num plano elevado do chão. Quase perco esse detalhe: haviam duas antenas curtas, o que acrescentava um ar engraçado a toda aquela compridez de sua existência. Se fosse o bicho uma peça de artesanato, o que muito bem poderia ser, eu não teria dúvidas de que o artesão errou no cálculo da matéria-prima.

Parei onde estava quando o avistei – a uma distância de pouco mais de um metro. Não queria assustá-lo – apesar de ter contado a estória e os ouvintes terem deduzido que, na verdade, eu não queria que ele, o bicho, me assustasse. Agachei e fui me arrastando calmamente, com a ajuda dos braços, para mais próximo. Quando o surpreendi, ele estava numa lenta e desengonçada marcha e não parou por minha causa. Talvez ele me fitasse com o mesmo espanto e admiração com que eu o fitava. Talvez pensasse: “que bicho estranho esse, tem quatro pernas e só usa duas para sustentar o corpo!” Talvez voltasse à família e dissesse: “avistei um bicho-homem, acho que vou escrever sobre ele”. Mas a sua marcha obstinada me fez perceber que ele não queria dar autógrafos.

Há no bicho-pau uma existência disfarçada. E no bicho-homem uma existência escancarada. A existência humana não se contenta em existir para si mesma, ela tem que dizer ao universo que ali está. E, diferentemente do bicho-pau, que nasceu para se esconder e disso depende seu modo de vida, nós, bichos-homens, não nascemos para nada e, aos poucos, com a ajuda de outros bichos-homens, vamos dando forma a esse cabulosoprojeto da natureza. E a marcha da humanidade sobre o mundo é muito mais desengonçada do que a marcha do bicho-pau sobre a minha cozinha.

A marcha do bicho-pau sobre a minha existência havia acabado. Olhei debaixo do fogão, da geladeira, do armário e não o encontrei. Não sei quantas possibilidades fantásticas a natureza guarda, mas poderá aquele bicho esquisito ter se transformado em bicho-outra-coisa? Certamente ele nunca escolheria se tornar bicho-homem,isso invalidaria toda a sua existência e a natureza, religiosa como acho que é, olharia para si desesperada e diria: “mea culpa, mea culpa, meamaxima culpa”.

Eu tinha que tomar banho, escovar os dentes, e continuar a fastidiosa marcha da existência. Eu tinha que me contentar: bicho-homem não vira bicho-pau; bicho-homem não come folhas e desaparece em goiabeiras. A última vez que um homem virou um inseto, e foi numa novela de Kafka, não deu muito certo. E a novelatcheca só prova o que quero dizer: a existência humana é escancarada,mesmo na forma de um inseto.

O bicho-pau foi-se embora naquele dia. Mas não tardou a voltar. Não voltou como bicho-pau.Voltou como pau-bicho na narrativa deum ex-cultivador de arroz,vindo de algum lugar do pobre interior do Maranhão, quetrazia consigo uma memória cheia de fatos tão incríveis quanto a aparição de um graveto seco andando pela minha cozinha.

A estória que vou contar se originou de uma discussão sobre a existência da barata, “esse ser que não tem sangue e que sobrevive a uma bomba atômica”, disse-me ele.Então, por razões inextricáveis, emendou à sua observação sobre a barata a explicação do nascimento do pau-bicho. Ele não sabia que nome dar àquela criatura, mas disse-me que ele e o irmão encontravam amiúde partes de árvores velhas e secas que se metamorfoseavam em bichos estranhos. Eles batiam no pau seco com a costa do facão e observavam se desentranhar da madeira um miraculoso ser, um pedaço de árvore que tinha miraculosamente ganhado pernas e podia sair dali correndo ou voando, deixando para trás sua natureza de planta.

Depois de ouvir esta fabulosa estória sobre a origem do bicho-pau-pau-bicho, me ocorreu que a imaginação do bicho-homem só pode vir da natureza, pois só a natureza é capaz de inventar bichos tão fantásticos quanto as estórias que se contam sobre eles.


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