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Comunidade jurídica reage à decisão do STF de antecipar prisões
Juiz diz que medida é ‘retrocesso’ porque ‘atropela’ garantias constitucionais. Instituições também reagem e acusam o Supremo de atuar como legislador
A grande maioria da comunidade jurídica do país está se movimentando contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que autoriza a antecipação da prisão após a condenação do acusado em 2ª instância. Na prática, isso significa dizer que, depois que o cidadão acusado da prática de qualquer crime for condenado pelo juiz singular (o primeiro a proferir o julgamento) e essa condenação for confirmada pelo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Regional Federal, o mandado de prisão deverá ser imediatamente expedido, obrigando o réu a superar todos os recursos judiciais existentes atrás das grades.
Entrevistado com exclusividade na manhã desta sexta-feira, 19, no programa LuizMeloEntrevista (DiárioFM 90.9), o juiz titular da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Macapá, João Guilherme Lages, afirmou que é ‘radicalmente contra’ a decisão. Segundo ele, a medida ‘atropela’ garantias constitucionais e pode causar injustiças. “Impor a prisão enquanto ainda há pontos cruciais a serem esclarecidos, através de recursos, como resultar em injustiça irreparável, como aconteceu recentemente, aqui mesmo no Brasil, em que um homem condenado por estupro foi proclamado inocente 20 anos depois da condenação, através de exame de DNA”, exemplificou.
O magistrado ressalta que as garantias constitucionais não foram preconizadas para proteger bandido: “Essas garantias não são novas, não foram criadas na Constituição de 1988; elas vêm de séculos, vêm desde o Século XVII, e todos os países as adotam; lamentavelmente, entretanto, grande parte da sociedade exige uma punição rápida, imediata; é importante deixar bem clara que essas garantias não foram dadas para proteger bandidos, mas, sim, todos os cidadãos; se com todos os cuidados, todos os recursos existentes ainda há injustiças, imagine sem elas…”.
João Guilherme Lages, que está acumulando a função de Desembargador do Tjap como juiz convocado, garante que, mesmo tendo posição contrária, por questão de hierarquia ele tem que se curvar e adotar essa medida: “Temos uma hierarquia, e o STF é a última instância do Judiciário brasileiro; mesmo tendo posicionamento contrário, como juiz eu vou ter que acompanhar essa decisão; os resultados, porém, serão desastrosos, conforme nós teremos a oportunidade de constatar a partir da próxima terça-feira, que são os dias em que julgamos recursos no Tribunal de Justiça, o aumento do número de pessoas presas no Amapá, o que resultará, inevitavelmente, num significativo aumento da população carcerária. Grande parte da sociedade clama pela prisão mais imediata, por não aguentar essa escalada da violência, prevalecendo aquele sentimento da impunidade por conta da demora do processo; mas, é bom frisar que, quando há a condenação, não existe impunidade; a punição já ocorreu; o direito às defesa, porém, é sagrado, todos têm direito à defesa; os recursos existem e essa garantia dada pela Constituição Federal não pode ser quebrada, não se pode acabar com as regras do direito penal”.
Decisão polêmica
A antecipação da prisão foi decidida na última quarta-feira, 17, pelo Pleno do STF por 7 votos a 4. Para a grande maioria da comunidade jurídica brasileira, o novo entendimento viola a presunção da inocência com o objetivo de atender à opinião pública.
Para o renomado criminalista Alberto Zacharias Toron, o resultado é ‘duplamente desolador’. Ele justifica: “Primeiro porque, a pretexto de se interpretar a Constituição, negou-se vigência a uma garantia do cidadão. Ao invés de lermos que não se presume a culpa até o trânsito em julgado, agora devemos ler que não se presume a culpa até o julgamento em segunda instância. Se o Constituinte errou, pior para ele. Mudar a regra constitucional, nem pensar. O Supremo faz isso sozinho, tiranicamente. O mais grave, porém, é ouvir que se está atendendo a um reclamo da sociedade. Se é assim, não precisamos nem do Direito e muito menos dos tribunais. Se for para ouvir a voz das ruas, basta o ‘paredão’ do Big Brother Brasil ou do Fidel”, disse Toron, em referência a um trecho do voto do relator, ministro Teori Zavascki, afirmando que é preciso “atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade”.
O advogado Fernando Hideo Lacerda, professor de Direito Penal e Processual Penal, concorda e afirma que ao atender o que julga ser a opinião pública, o Supremo “busca um lugar indevido sob os holofotes”. “O mais sintomático, nessa época em que as garantias individuais estão sendo lavadas a jato pela espetacularização do processo penal, é ouvir de um ministro que a mudança na jurisprudência é para ouvir a sociedade”. Para Lacerda, a leita do artigo 5°, inciso LVII, da Constituição, deixa óbvio que a privação da liberdade deveria aguardar o julgamento dos recursos cabíveis.
Foi o que decidiu o Supremo em 2010, aliás, quando disse que a Constituição é literal ao dizer, no inciso LVII do artigo 5º, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Violação à Constituição
O advogado e professor Lenio Luiz Streck, colunista da ConJur, aponta que houve “um giro total” da corte em relação à jurisprudência anterior. Ele afirma que a Constituição é clara ao garantir a presunção da inocência. “Sou insuspeito para falar sobre isso, uma vez que venho pregando, dia a dia, o cumprimento da Constituição, doa a quem doer. Já fui acusado até de originalista. O texto da Constituição tem de valer. Acho que o Supremo Tribunal deveria ter deixado que o texto da Constituição falasse.”
O advogado Celso Vilardi afirma que a mudança é “lamentável”, pois não faz sentido que o tribunal altere posição definida em julgamento ainda recente. Ele discorda de outro fundamento apresentado pelo ministro Teori Zavascki: o de que a prisão é possível porque a fase de análise de provas e de materialidade se esgota em segundo grau. Vilardi diz que, embora não haja julgamento de matéria de fato, vários casos já sofreram mudanças significativas após análises de recursos extraordinários (no STF) e especiais (no Superior Tribunal de Justiça).
Outro criminalista, Guilherme San Juan Araujo apresenta posicionamento semelhante: “A decisão do STF está em dissonância com a carta garantista de 1988, ao passo que viola o princípio da presunção de inocência, tão duramente conquistado. Importante que lembremos que não são poucos os casos em que o Superior Tribunal de Justiça e STF reformam total ou parcialmente decisões penais condenatórias. O prejuízo que será trazido com o novo marco será irreparável nesses casos.”
O também criminalista Bruno Rodrigues lembra que, conforme pesquisa da FGV Direito Rio em 2014, 8,27% dos Habeas Corpus e Recursos em Habeas Corpus foram concedidos pelo STF entre os anos de 2008 a 2012, enquanto no STJ o número de processos aceitos foi de 27,86%: “Se forem realizadas pesquisas sobre a reforma de acórdãos nos recursos especial e extraordinário vamos verificar que um grande número também sofre reforma, não importando neste momento qualquer resposta à sociedade quando o tema tratado é a liberdade de um cidadão”, afirma. E acrescenta que “mais vale aguardar o trânsito em julgado do que privar um inocente a cumprir a pena ou um apenado cumprir pena maior ou em regime mais grave do que o que vier a ser condenado ao final do processo”.
Reação da OAB
Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil também cita o alto índice de reforma de decisões de segundo grau pelo STJ e pelo próprio STF: “Nesse cenário, o controle jurisdicional das cortes superiores mostra-se absolutamente necessário à garantia da liberdade, da igualdade da persecução criminal e do equilíbrio do sistema punitivo”, pontuando, também, que a execução provisória da pena é preocupante “em razão do postulado constitucional e da natureza da decisão executada”, pois, se reformada, produzirá danos irreparáveis a quem for encarcerado injustamente.
Segundo Daniel Bialski, a decisão poderá gerar insegurança jurídica, pois cada juízo emitirá uma sentença diferente, o que aumentará o número de Habeas Corpus impetrados nas cortes superiores. “O aumento vai ocorrer justamente porque o Habeas Corpus é um remédio rápido para solucionar questões urgentes. O constrangimento de ficar preso, uma hora, um dia ou uma semana é algo que marca, que a pessoa nunca esquece.”
Problema carcerário
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Andre Kehdi, a decisão é extremamente preocupante, pois ignora a questão carcerária no Brasil. “Todos os países que são grandes encarceradores estão reduzindo a população presa, mas o Brasil marcha na contramão da história, determinando que a pena seja cumprida antes de o Estado definir os limites da punição, atropelando o devido processo legal”, critica. “Os ataques ao direito de defesa têm sido feitos constantemente e o Supremo também se curvou à onda do punitivismo exacerbado”, afirma.
O Movimento de Defesa da Advocacia (MDA) afirma que a decisão do STF é preocupante, pois vai contra uma cláusula imutável da Constituição. A entidade diz ver com “muita preocupação” o recente posicionamento do STF, “violando, assim, o principio constitucional de presunção de inocência, inserido na Constituição da República como clausula pétrea”, declara nota assinada por seu presidente, Rodrigo Castro, e seu diretor de prerrogativas, Pedro de Oliveira.
O criminalista José Roberto Batochio, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, considera a decisão do STF “surpreendente” e que ela implica ruptura da ordem constitucional estabelecida com a promulgação da Carta Política de 1988.
“Agora, uma outra ordem constitucional foi instituída, não positivada em texto que emana da soberania da nação, expressa em assembleia nacional constituinte, mas nascida da idiossincrasia da maioria dos membros que compõe a Corte Suprema (já se disse que a constituição não é o que ela é, mas sim o que dissermos que ela é). Portanto, referência exegética não é mais o Texto Magno, que a vontade do Povo, por seus representantes, fez escrever, mas, sim, tão-somente o que vier a entender a maioria de seus julgadores… Uma autorreferência que se inclina ao absoluto… Deus guarde as liberdades no Brasil!”, afirma Batochio.
‘Desastre humanitário’
O advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, ex-presidente da OAB e atual presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), classifica a decisão com um desastre humanitário. “Enquanto o mundo busca caminhos para punir sem encarcerar, essa decisão privilegia o encarceramento antecipado, na contra mão da evolução do direito penal mundial”, afirma.
Já o criminalista Fabio Tofic Simantob acusa o STF de agir como legislador: “Não é uma decisão, é uma emenda constitucional. Proibida pelo próprio constituinte, já que a presunção de inocência até o trânsito em julgado é cláusula pétrea”.
Atentado ao direito fundamental
A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) classificou a decisão como um retrocesso jurídico e diz que a decisão enfraquece o direito fundamental à presunção de inocência. Para a Anadef, os efeitos práticos dessa decisão serão devastadores, pois todos aqueles condenados nas esferas dos tribunais de Justiça e tribunais regionais federais, que aguardam apreciação de seus recursos nas instâncias superiores, poderão ser recolhidos imediatamente à prisão, agravando ainda mais a caótica situação do sistema carcerário de nosso país.
“Um triste passo foi dado, trazendo decepção aos que têm como missão a defesa dos direitos humanos, dos direitos e garantias fundamentais e, sem compromisso com a impunidade, a defesa intransigente do respeito à Constituição para todos”, diz a associação.
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