Um elo perdido no Norte do Brasil
Norte do Brasil. Amapá. Agosto de 2016. Um garoto toca seu tambor driblando as pernas dos adultos para não ser atropelado pela euforia de negros, brancos e mestiços que cantam de casa em casa com hálito de gengibirra e goles de cacau.
Julio Maria
O Estado de S.Paulo
“Se fosse Gabriel García Marquez ou Mia Couto com uma história dessas nas mãos, as palavras estariam em festa. Pois aqui está tudo o que alimenta o sonho dos escritores. A fantasia que se mistura com a verdade acontecida e com a que se esqueceu de acontecer, a prosa infiel que bule com a poesia e a poesia que não precisa de rima. Seus personagens, mesmo sem nome, são legitimados pela história e os cenários sobrevivem mesmo quando o conto ganha a neblina das versões. Só nos cabe então escolher a mais plausível delas para trazer à tona a existência do último elo perdido do Brasil.
Norte do Brasil. Amapá. Agosto de 2016. Um garoto toca seu tambor driblando as pernas dos adultos para não ser atropelado pela euforia de negros, brancos e mestiços que cantam de casa em casa com hálito de gengibirra e goles de cacau. Estamos em Mazagão, a cidade africana que atravessou o mar para começar tudo de novo no topete do Brasil, o quinhão de terra nas bordas amazônicas povoado pela transferência das famílias portuguesas retiradas às pressas da Mazagão marroquina, protegidas temporariamente em Lisboa e despachadas, indignadas e descrentes, à desconhecida capitania do Grão-Pará e Maranhão em 1770, o futuro Estado do Amapá.
A Coroa queria habitar terrenos despovoados de sua Colônia e viu uma oportunidade no contingente das 1.020 famílias resgatadas do Marrocos para não virarem kebabs. Além de martelos, facões, folhas de serra, limas, fechadura, enxadas, tesoura, pólvora, espingardas, imagens de Nossa Senhora da Assunção, do Cristo morto, da Paixão de Cristo e tudo o que pensavam ser preciso para se construir uma nova cidade no meio da Amazônia, traziam também escravos, muitos escravos, os mesmos que os serviam nos tempos de África.
O tambor do menino da Mazagão amazônica tem, assim, quase 250 anos de mistérios e esconde o espírito de um velho escravo. A nova terra prometida dos portugueses, que só se acalmaram quando Lisboa comprometeu-se a pagá-los pela aventura brasileira cifras que seriam renegociadas em longas prestações para acorrentá-los à terra, não tinha grandes atrativos. Uma selva os esperava, depois de dias em alto mar nas piores condições. Se os brancos reclamavam do alojamento flutuante, aos negros só restava o resto. O maior deles, anônimo de registros e fábulas, se destacava como um líder com um coração que parecia ter espaço para abrigar a África inteira. Ele passava dias contando histórias de antepassados e aliviando dores dos enfermos com a magia de suas crenças. O mago sem nome, no entanto, não suportou às doenças da travessia e morreu, de mãos dadas a muitos irmãos. Seu corpo foi preparado e depositado nas águas atlânticas para descer, religiosamente, mar abaixo.
A comoção surtiu lágrimas e promessas de convés. Assim que chegassem em terra firme, os negros fariam uma festa para homenagear o espírito do velho líder. A imagem escurece nesse momento da História, e talvez seja prudente voltar ao tambor do garoto, dois séculos e meio depois. Ele toca com adultos que festejam a Festa de Divino de Mazagão. Homens e mulheres dançam de pés quase juntos, com passadas curtas, lembrando os negros que caminhavam acorrentados desde os tempos da velha Mazagão. Quando saem pelas ruas, entoam cantos que respeitam um andamento mais lento e, assim que entram nas casas, uma alegria invade suas vozes e o ritmo é acelerado. A divisão de seus toques não lembra maracatus, emboladas, caboclinhos nem qualquer outro primo de primeiro ou segundo graus do samba. Seu nome é marabaixo, a promessa cumprida dos escravos que viram um dia o corpo de seu líder ser sorvido pelo Atlântico. Marabaixo, o ritmo que nasceu, cresceu e isolou-se em um recanto que nunca fez parte do mapa cultural do Brasil.
Martinho da Vila, 78 anos de idade e mais de 60 de batuques e pesquisas, jamais ouviu falar. “Mar o quê? Não conheço, mas acredito que deva ter alguma influência das Antilhas”. Antonio Nóbrega, pernambucano militante e estudioso respeitado, não se lembra de imediato. “Pode ser uma batucada.” Uma hora depois, envia ao repórter um texto mais detalhado sobre o gênero.
O espírito do marabaixo e da batucada do Norte, outro filho local com origens na memória percussiva dos negros trazidos de outras regiões da África, não se materializa apenas no ritmo. A cidade de Macapá tem hoje uma profusão de grandes criadores, compositores de música brasileira com uma imprevisibilidade estética que os diferencia e uma linha poética que os une. Suas canções são profundas, com melodias e harmonias trabalhadas entre o êxtase da festa pagã e a reflexão da melancolia cristã. Os negros vivem em seus violões, bandolins, cavaquinhos, pandeiros.
Seu Nonato Leal, 94 anos, é um dos mais antigos. Ele mantém a cabeça leve e os dedos ágeis, criando peças ao violão como se desse aula. “Agora, uma música de três partes”, diz, em um sarau de Macapá em que é venerado pelo que faz e, sobretudo, pelo que fez. Quem está a seu lado direito é Mestre Lolito do Bandolim, precursor do choro no Norte, pronto para levar o violão de Nonato a um passeio de domingo. À esquerda, Finéias Nelluty, guitarrista e violonista, precisa de pouco espaço para mostrar o quanto sabe. Ele tocou por dez anos na vizinha Guiana Francesa, onde chegou depois de uma traumatizante viagem clandestina de barco. De volta ao Brasil, nos anos 90, se tornou a Bicha do Brega, personagem que pagou suas contas por anos mas que precisou matar a sangue frio assim que se sentiu preso a ele. À frente de Nonato, quem canta tudo com um fio de voz dourado é sua admiradora, Patricia Bastos, e quem segura outro violão é Enrico Di Miceli. Dono da casa, o homem é dotado de um critério de composição dos mais preciosos em letra e harmonia. Sua base mais evidente é ele mesmo, o marabaixo. “Eu jamais faria um samba melhor do que os cariocas, por isso me apego aos nossos ritmos”. E é assim que sua criação bebe nas águas do Norte, não obrigatoriamente na percussão. A alma do escravo pode estar nas cordas, nas melodias, na nostalgia ou na festa.
Um homem assiste a tudo de canto, cantando baixinho letras que conhece bem. Joãosinho Gomes, parceiro de outro elo perdido na festa, Val Milhomem, é um dos maiores exemplares do quanto perde um povo que não escava a terra em que pisa. Suas poesias já tiveram gravações de Jane Duboc, Ná Ozzetti, Leila Pinheiro, Vânia Bastos, Leci Brandão, Flávio Venturini, Renato Brás, Vital Lima e Geraldo Azevedo, mas é pouco, muito pouco. Apenas um quinhão das terras de Mazagão perto do continente de Brasil que ele abre a cada verso de canções como Demônio de Batom: “Se me beijas a mão eu te abençoo / Se te beijo a boca me dissolves / Se me beijas a face eu te perdoo / Se te roubo um beijo me absolves / Se te beijo o dorso tu me adoças / Se me beijas a nuca eu me contorço / Se te beijo o ventre me almoças / Se me beijas o torso és almoço / O beijo é um bicho bom / É um leão que habita a gente / É um demônio de batom / Nós dois de lábios quentes / Se me beijas a testa eu te fascino / Se te beijo os olhos me revelas / Se me beijas o pé eu te encaminho / Se te beijo a costela me constelas”.
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