“Durante muito tempo os homens se comportaram como predadores sexuais”
Em pleno Carnaval, o Brasil tenta blindar as mulheres com várias iniciativas contra o assédio sexual. Na verdade o mundo discute o problema, desde o caso Harvey Weinstein, em Hollywood, e ainda os episódios de abuso no transporte público, no Brasil. Porém, a primeira semana de 2018 trouxe respostas inesperadas para o grito de basta das vítimas: Catherine Deneuve e mais 99 francesas assinaram uma espécie de manifesto a favor da “liberdade de incomodar” como algo “indispensável para a liberdade sexual”, enquanto por aqui, um texto de Danuza Leão, publicado pelo jornal “O Globo”, dizia que “toda mulher deveria ser assediada, pelo menos, três vezes por semana para ser feliz”. Heloísa Buarque, especialista da USP, tem sido a fonte da imprensa para analisar o problema, sob a ótica da ciência.
EDIÇÃO: CLEBER BARBOSA
Por: Natacha Cortêz, do Uol
Diário do Amapá – Sobre as lendas sociais que cercam os gêneros feminino e masculino, por exemplo, a de que homens não se controlam: de onde elas vêm?
Heloisa – Assédio não tem a ver apenas com gênero, mas também com concepções de sexualidade. Durante muito tempo, foi naturalizado, no Brasil, o fato de os homens se comportarem como predadores sexuais, e isso seria positivo, um sinal de masculinidade, de virilidade e de força. Essas lendas vêm dessa naturalização.
Diário – Mas a naturalização traz consequências, certo?
Heloisa – A naturalização em si é um problema. Ela diz que mulher e homem são desiguais e não há nada que possamos fazer. Ela coloca as mulheres em um lugar de inferioridade e de diferenças irredutíveis. Mas, se fôssemos só natureza, as mulheres seriam todas iguais entre si, assim como os homens. E há não só diferenças históricas e culturais, mas também diferenças de contexto social: de classe, raça, religião, geração/idade, região de moradia (viver no meio urbano ou rural). Mulheres pobres e negras no Brasil nunca puderam se dar ao luxo de ser o “sexo frágil”. Muitas delas são fortes, inclusive fisicamente, trabalham no pesado, como as domésticas do país.
Diário – Como podemos explicar o conceito de gênero?
Heloisa – Gênero trata das diferenças sociais, culturais e históricas entre homens e mulheres. Fala tanto de desigualdades que são naturalizadas em nossa cultura quanto de comportamentos, profissões e espaços. Em certas sociedades, o tear é feminino, em outras, masculino. Há profissões e atitudes que mudam de status. No Brasil, a enfermagem e a educação foram profissões que se desvalorizaram ao se tornarem cada vez mais femininas, seja por terem mais mulheres ou por serem associadas a comportamentos e atitudes considerados femininos.
Diário – Mas isso tudo é aprendizado cultural?
Heloisa – Sim. No caso da enfermagem, por exemplo, ninguém nasce sabendo cuidar dos outros, não é decorrência do corpo, mas de processos sociais. Damos bonecas e ensinamos as meninas a cuidarem, dar banho, ao passo, que os meninos são ensinados a lutar e a jogar bola. A teoria de gênero mostra que as coisas têm uma história e não decorrem da natureza do homem ou da mulher. Não é o corpo nem a biologia que determina.
Diário – Sobre a carta das francesas, existe um abismo cultural entre nós e elas? Podemos dizer que ser mulher no Brasil é mais árduo do que ser mulher na França?
Heloisa – Primeiramente, quero dizer que o texto das francesas não parece perceber a diferença entre uma paquera (algo recíproco, de interesse mútuo) e um assédio (que inclui algum tipo de pressão e ameaça), e supõe que denunciar o assédio seja algo como ser contra o sexo, ser moralista. Agora, respondendo a pergunta: a França não é tão diferente do Brasil. É um país que também tem violência contra a mulher, embora, o Brasil seja, de fato, uma das nações com dados mais alarmantes. Não dá para falar resumidamente “mulher brasileira” x mulher francesa”, porque temos mulheres muito diferentes em cada lugar. E há nesse tema do assédio, certamente, um corte geracional. Muita mulher no Brasil, como Danusa Leão, pode concordar com Deneuve. Mas as duas talvez não entendam bem o que as mais jovens estão dizendo. Elas falam de um lugar de mulheres de classe alta, que não precisam enfrentar a ameaça de serem encoxadas no metrô ou no ônibus, como acontece cotidianamente com as que andam de transporte coletivo nas grandes cidades.
Diário – O que falta para as denúncias de assédio acontecerem no Brasil como estão acontecendo fortemente em Hollywood?
Heloisa – No Brasil, denunciar violência sexual é muito difícil porque, na maioria dos casos, os acusados sequer são processados. É muito comum que se responsabilize a vítima e que esta se sinta culpada e, por isso, não denuncie.
Diário – Você se graduou em Ciências Sociais, fez mestrado em Antropologia e doutorado também em Ciências Sociais. Quando surgiu seu interesse para atuar em pesquisas referentes a questões de gênero?
Heloísa – Quando eu fiz o meu mestrado em antropologia, na USP, fiz um estudo de recepção sobre cinema, entrevistando pessoas que tinham sido jovens em São Paulo nos anos 40 e 50 e tinham vivido a época áurea dos cinemas, das grandes salas de cinema no centro, ou nos bairros. Naquele trabalho, percebi que as trajetórias e experiências variavam muito entre homens e mulheres, e entre diferentes classes sociais. A questão de gênero ficou pendente na minha dissertação, eu não soube muito como interpretar essas diferenças, embora as notasse empiricamente. Foi por isso que estudei a área de “Família e Gênero”, do doutorado em Ciências Sociais na Unicamp, para poder entender melhor essa temática. No fundo, é também uma questão política – sempre fui muito defensora dos direitos das mulheres e sempre questionei as desigualdades. Mas quis refletir sobre o tema também na pesquisa, e isso virou central no meu doutorado que era sobre a interação do público com uma telenovela. No doutorado, eu fiz um projeto que se desdobrava de uma pesquisa mais ampla que eu tinha feito quando trabalhei no CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que tratava da relação entre novelas e mudanças sociais associadas à família, gênero e reprodução.
Diário – O machismo é um dos grandes problemas enfrentados pelas mulheres até os dias de hoje, sobretudo em relação a algumas profissões no mercado de trabalho e em algumas culturas. A seu ver, por que ele ainda persiste em nossa cultura, em pleno século XXI?
Heloísa – Ainda há muito machismo no Brasil e no mundo. Algumas coisas ainda me chocam muito. O nível de violência doméstica ainda é muito alto no Brasil. Ainda se acha normal que o homem (veja, essa é uma construção cultural de gênero) seja agressivo em algumas ocasiões. Assim como na sexualidade, em que o impulso sexual é naturalizado para os homens: eles são vistos como “naturalmente” infiéis, por exemplo. Mas voltando à questão da violência doméstica, ainda se imagina que uma mulher pode ficar chata e “mereça” apanhar, e que deve aguentar calada. E é por isso que fizemos uma lei mais dura, a chama “lei Maria da Penha”. Temos ainda muitos casos de mulheres que denunciam a violência do (ex) companheiro, e a polícia ainda não leva isso a sério. Depois vemos essas notícias de assassinatos brutais, descobre-se que a moça assassinada já vinha lutando, mas que não teve apoio nem na delegacia de mulheres. É preciso lembrar que essa violência acontece em TODAS as classes sociais. E sim, ainda há muito por vencer também no mercado de trabalho.
Colaborou: Globo Universidade
Perfil…
Entrevistada. Heloísa Buarque de Almeida é antropóloga e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo (USP). Fez graduação em ciências sociais e mestrado em antropologia social, na USP, e o doutorado também em antropologia social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 2014 e 2015, coordenou o programa USP Diversidade, iniciativa de combate aos casos de discriminação racial, homofóbica e de gênero, mídia, consumo, corpo e família. É da Rede Não Cala USP de professoras pelo fim da violência sexual e de gênero.
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