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Aborto no Brasil: por que não descriminalizar?

Depois de muita discussão, principalmente na mídia, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo decidiu conceder a ela o direito previsto na lei brasileira de interromper a gravidez fruto de um estupro.


Sandra Franco
Doutoranda em Saúde Pública

 

O aborto, sempre um assunto polêmico no Brasil, teve um novo capítulo triste. A discussão sobre a legalidade do aborto ressurgiu com o caso dramático do estupro e gravidez indesejada de uma menina de 10 anos no Espírito Santo, que era violentada pelo tio. Depois de muita discussão, principalmente na mídia, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo decidiu conceder a ela o direito previsto na lei brasileira de interromper a gravidez fruto de um estupro.

Vale frisar que, só pelo estupro e pela gestação de uma menor de 14 anos, o aborto é legal. Em dois incisos no artigo 128, a legislação não pune o médico que realiza o aborto: seja para salvar a vida da mulher no caso de uma gestação decorrente de estupro, desde que por solicitação e consentimento da mulher. Se a mulher for menor de idade, deficiente mental ou incapaz, por autorização de seu representante legal. No caso da garota de 10 anos, portanto, tínhamos as duas circunstâncias autorizadoras presentes.

O Superior Tribunal Federal, em 2012, decidiu ampliar a permissão para o aborto também nos casos de anencefalia, através de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), a nº 147. O médico é o profissional que pode dar acolhimento e orientação sobre a possibilidade do aborto neste tipo de tragédia. É vital um acompanhamento médico e psicológico para esta criança de 10 anos. No caso da menina, a família entendeu o risco de morte para a criança e a gestação de uma outra criança e decidiu pelo aborto. Contudo, caso a família não concordasse com o procedimento, seria possível uma ação judicial inclusive proposta pelo hospital, pelo médico responsável pelo caso ou ainda pelo Ministério Público, com a provocação do Conselho Tutelar, com a argumentação do risco de morte da criança/gestante, apresentando-se laudos de dois médicos explicando os perigos para a saúde da menina nesta gestação de risco e indesejada, acentuando-se a urgência do aborto terapêutico. Claro que essa iniciativa dependerá do serviço que a atender. Muitas vezes a mulher perigrina até encontrar quem se importe com sua tragédia pessoal.

Faz-se a referência de que a gestação da garota do Espírito Santo deu-se até 22 semanas. Necessário fazer declaração de óbito e promover o sepultamento. Muitos traumas para uma criança suportar, em especial precisando se esconder em um porta malas para evitar manifestantes contrários à prática, que, injustificadamente do ponto de vista do Sistema Único de saúde, precisou ocorrer em outro Estado. Como explicar que, mesmo com políticas públicas já criadas para a realização do aborto terapêutico e legal, ainda haja na rede pública quem se negue a realizá-lo? Apurações pelo MS, MP e outros órgãos competentes precisam também ser realizadas para sanar deficiências na prestação de serviços à sociedade, uma vez que há protocolo datado de 2005 para essa prática no SUS, a propósito.

Esse caso levantou novamente a discussão sobre a descriminalização do aborto. Vale lembrar que o Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ao expor seu voto quando da apreciação de um Habeas Corpus em 2016, trouxe alguns argumentos para sustentar a tese de que a descriminalização do aborto não significa uma apologia ao ato.

Entre eles, destaca-se aquele que trata da função do Estado, quanto à observância do interesse social de forma inclusiva: “Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”.

Importante esclarecer que estupro é crime previsto no artigo 213 do Código Penal. Um crime grave, hediondo e de grande repercussão social, acometendo a vítima de severas sequelas físicas e emocionais. No caso de a vítima ser pessoa menor de 14 anos ou portadora de enfermidades ou deficiências mentais, ou ainda que, por qualquer outro motivo, tenha sua capacidade de resistência diminuída, trata-se de estupro de vulnerável, crime previsto no artigo 217-A do Código Penal. A diferença entre o estupro e o estupro de vulnerável é que neste é irrelevante o consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente, pois a presunção de vulnerabilidade é absoluta, assim previsto na Súmula 593 emitida pelo STJ em 2017.

Parte da sociedade brasileira recrimina o procedimento, mesmo em caso de estupro. A chamada bancada religiosa do Legislativo tem uma grande força e faz um imenso lobby contra todos os avanços do tema, com justificativas em textos sagrados e na vontade de Deus – o que é compreensível e respeitável. De outro lado, esses mesmos legisladores precisam olhar o tema a partir de dados. Descriminalizar o aborto não é incentivá-lo.


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