Culpabilidade e presunção de inocência
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal julgou o HC 126.292 e decidiu, por maioria, que condenados poderiam começar a cumprir pena logo após a decisão em segunda instância, independentemente de trânsito em julgado.
Ana Lucia Pretto Pereira – Mestre e doutora em Direito Constitucional
Articulista
A pergunta do título coloca-se em um cenário onde se discute, novamente, a possibilidade de dar início ao cumprimento de pena após decisão judicial condenatória em segundo grau de jurisdição. É o que os ministros do Supremo Tribunal Federal deverão decidir, nas próximas semanas. Evidentemente, o tema volta à tona em razão da notoriedade de um dos réus nos inúmeros processos em que aventado o assunto: o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Confira-se, pois, inicialmente, um breve histórico jurisdicional nesse respeito.
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal julgou o HC 126.292 e decidiu, por maioria, que condenados poderiam começar a cumprir pena logo após a decisão em segunda instância, independentemente de trânsito em julgado. A relatoria foi do ministro Teori Zavascki. Tal decisão superou decisão anterior, proferida no ano de 2009, no julgamento do HC 84.078; naquela ocasião se entendeu, também por maioria, justamente o oposto: que o início da execução da pena dependeria do trânsito em julgado da decisão condenatória. A relatoria, à época, foi do ministro Eros Roberto Grau. Todavia, esse último habeas corpus superava, igualmente, decisão ainda anterior, proferida nos idos de 1991, no julgamento do HC 68.726, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu, por unanimidade, pela possibilidade de cumprimento de pena após decisão condenatória em segundo grau de jurisdição. A relatoria desse processo foi do ministro Neri da Silveira.
Note-se que, ainda que sob contexto jurídico diverso, o entendimento consolidado pelo Supremo recentemente, em 2016, foi o mesmo esposado em 1991. Inclusive, o ministro Cezar Peluso observara, à época do julgamento de 1991, o seguinte: “Para Vossa Excelência [o ministro Ayres Britto, que fizera uma proposta] não ficar muito preocupado, esclareço que temos jurisprudência segundo a qual, em embargos de declaração desse tipo, se deve mandar cumprir a decisão embargada, independentemente de novos embargos de declaração.” Surgem os seguintes questionamentos: quem eram os ministros em 1991, em 2009 e em 2016? Seria possível pensar em uma jurisprudência institucionalizada – e não personalizada – do tribunal? Qual o contexto jurídico e político em que foi proferida a decisão de 1991, e todas as outras que lhe sucederam? E mais: haveria algum impacto sobre as decisões do Supremo decorrente do fato de suas sessões poderem ser televisionadas?
Afora o fato de o Supremo Tribunal Federal, em 2016, ter respondido ao tema do mesmo modo que em 1991 – embora com ligeiras alterações jurídicas –, tem-se o seguinte quadro: muitos juristas, advogados, magistrados e demais operadores do direito entendem ser preciso rediscutir o que foi decidido pelo Supremo em 2016, sob o fundamento de que a execução provisória da pena violaria o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, ou o princípio constitucional da presunção de inocência. Em relação a esse argumento, duas observações devem ser feitas: a primeira diz respeito à configuração jurídica de cada um desses princípios. É sabido que, no campo da construção do conhecimento jurídico, há disputas de toda ordem no que concerne ao conteúdo de categorias conceituais. Logo, um primeiro impasse se apresenta: mas, afinal, o que é presunção de inocência? E o que é presunção de não culpabilidade?
Cumpre anotar que, se a doutrina diverge, procura, por outro lado, firmar alguns consensos. A Constituição de 1988 diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Dali se extrai a presunção de inocência. A presunção de inocência é princípio informador de toda a persecução penal. Deve ser observada em todos os atos do processo (in dubio, pro reo). Todavia, dali se extrai, também, o princípio geral da não culpabilidade. A culpabilidade pode ser relacionada a um juízo objetivo de (des)valor, de reprovabilidade. Reprovabilidade objetiva. E a culpa enquanto juízo objetivo de (des)valor surgiria, somente, com o trânsito em julgado. É a ideia do “rol de culpados”, expressão, é verdade, de um processo penal inquisitório, autoritário. Lembremo-nos de que a Constituição de 1988, embora progressista, vem embebida de alguns conceitos construídos em um contexto autoritário, que imediatamente lhe precedeu.
A segunda observação diz respeito aos princípios constitucionais propriamente ditos. Sabe-se, com base em estudos avançados no campo da teoria dos direitos fundamentais e na prática jurídica, que esses direitos envolvem uma pluralidade de valores e uma complexidade tamanha que a sua aplicação impõe certa dose de sensibilidade e de flexibilidade, admitindo restrições. Adicionalmente, uma moderna teoria do direito e da interpretação jurídica propõe que, bem da verdade, do dispositivo constitucional enunciado acima pode-se extrair uma norma com características tanto de regra quanto de princípio. Finalmente, é de se discutir, também, se os “princípios” referenciados seriam princípios de direito material ou princípios de direito processual, e quais as consequências práticas da diferenciação. O presente texto começou com um questionamento: a execução provisória de pena é constitucional? Resposta: sim, é constitucional. A Constituição de 1988 não proíbe o cumprimento de pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau de jurisdição. Entender em contrário é admitir o absurdo de que enunciados constitucionais não comportariam interpretação. E, igualmente, admitir o absurdo de que a Constituição se interpreta “em tiras” (nas palavras de Eros Grau), ou à parte de toda uma jurisprudência que vem sendo construída pelo tribunal, com fundamento sobre a ordem jurídica (sistema jurídico) brasileira.
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