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Espetáculo da vida no rio

O bando de mergulhões se aproxima rápido com coreografia natural peculiar seguindo seu líder. A maneira como fream com os pés, repentinamente, desde que localizam um cardume provoca admiração ao espectador. Alimentados e molhados, param adiante sobre os frechais de cercas ou sobre as cabeças de tarugos permanecendo com as asas abertas até o próximo voo.


Veneide Cherfen
Articulista

Sete horas da manhã de um dia chuvoso. 25° na beira do rio. No norte do Brasil, onde a temperatura atinge acima de 30°; uma baixa de 5° faz muita gente tirar a roupa mais quente do armário. Tudo tranquilo na cabeça da ponte. As touças de mururé descem o rio com a vazante para voltar depois, com a enchente.

O bando de mergulhões se aproxima rápido com coreografia natural peculiar seguindo seu líder. A maneira como fream com os pés, repentinamente, desde que localizam um cardume provoca admiração ao espectador. Alimentados e molhados, param adiante sobre os frechais de cercas ou sobre as cabeças de tarugos permanecendo com as asas abertas até o próximo voo.

O boto atrai a atenção com sua magia e beleza fazendo os mergulhos habituais de pesca. É o terror do pescador porque fura as malhadeiras para atacar os peixes indefesos deixando buracos enormes, causando duplo prejuízo: um, porque come o alimento que o pescador deveria levar para casa, outro, porque danifica o seu instrumento de sustento.

Para as virgens dos vários recantos escondidos da Amazônia, o boto ainda é a desculpa utilizada quando dão com os burros n’água ou, quando desgraçadas pela animália existente em algum próximo, até mesmo da própria família, a barriga começa a crescer. Segundo a lenda, o boto se transforma naquele belo homem de olhos azuis vestido de branco e de chapéu na cabeça, que entra nas casas como quem não quer nada, vindo não se sabe de onde mas que, na verdade, vem namorar e acaba engravidando as moças das redondezas. Diz ainda que, quando o estranho vai embora deixa um cheiro de pitiú no ambiente, e desaparece no ar, ou melhor, na água, sem ser identificado. Só então desconfiam que aquele belo homem era um boto. Aí, é um Deus nos acuda… A boa Maria, que vem de Macapá, mas que nasceu e embarrigou a primeira vez na Ilha de Caviana, quando dorme na fazenda fecha todas as venezianas e coloca dentes de alho no sutiã, com medo do boto. Para que a noite se alongue, basta pedir-lhe que conte uma história de boto. Ela solta a língua e repete as lendas de sua terra natal. Entre elas, a história de que uma “buta” deitou-se na rede com o irmão dela e quase o encantou. Os rapazes adoram atiçar a Maria e, no final, todos acabam rindo.

Durante o dia, a maré sobe trazendo consigo os restos de um animal morto que os urubus tentam devorar por cima. As piranhas já se encarregaram da parte submersa.

Os mururés continuam na sua labuta diária de subir e descer o rio, no embalo da correnteza, sem remar e sem precisar de outro meio de transporte para se locomover, a não ser a própria água. No entanto, sabe-se lá que espécies de criaturas levam consigo! Quase se escuta a música silenciosa composta por suas pesadas raízes no atrito das profundezas das águas…

O silêncio só é cortado pela canoa que, ao bater na madeira da lancha, faz um barulho baixo e ritmado, e por um grupo de teteuas barulhentas que bailam por cima da ponte. Verdadeiro espetáculo. Sem necessidade de ir à Ópera de Paris, de Lyon ou de Douai. Aqui, tem de tudo. O italiano Verdi comporia maravilhas com toda esta riqueza.

No fim da tarde, depois de voltar da roça com os últimos jerimuns e maxixes, o empregado remplaçant (substituto) entra com uma enfiada de acaris e apaiaris pescados ao lado da casa numa rara e agradável surpresa. Depois, vai tomar seu banho no rio e repete o cerimonial habitual para seu passeio noturno na fazenda vizinha distante dois quilômetros de nossa casa, ou encontrar uma paquera que não pretende botar a culpa da barriga no boto. Vai fazer concorrência aos mururés, num descer e subir do rio… remando.

A noite chega depois de um dia chuvoso. Do outro lado do rio, os guaribas gritam chamando as fêmeas. Preparam-se para o encontro. A água continua a descer num vai e vem interminável.

Os mururés se despedem de nossas vistas para se agarrar ao primeiro porto que encontram pelo caminho. Quisera eu poder escorregar como eles sobre as águas!

(Em 2015, depois do fechamento das barragens, as águas de inverno do baixo Araguari já não subiam nos campos como outrora. Em abril deste ano de 2016, quando deveriam estar a meio metro de altura nos pés da palafita residencial, mal chegavam no meio da ponte da frente da casa. Para melhor compreensão, a ponte em frente à casa tem 30 metros de comprimento e a profundidade do rio na cabeça da ponte é de seis metros. As águas do rio estão recuando na direção de seu talvegue próximo a cabeça da ponte em novembro, o que só acontecia em janeiro. A foz do rio Araguari fechou sim, mas a causa principal foi a construção dessas duas últimas barragens que impedem a vasão das águas que expulsavam os sedimentos na sua foz fazendo o rio correr mais forte para a vala que vai até o rio Gurijuba).
(neidebogusz@gmail.com)


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