“O Norte é o que mais sofre com os crimes impunes”
O diretor da plataforma multimídia “Cova Medida” consolida todo o material sobre uma extensa apuração jornalística e técnica dos assassinatos causados no campo Em um ano, 66% das investigações não foram concluídas.
Edição: CLEBER BARBOSA
Fontes: REPÓRTER BRASIL (reporterbrasil.org.br.)
Diário do Amapá – No momento em que todas as atenções estão voltadas para a situação alarmante de casos e mortes ocasionadas pela COVID-19 e a crise de saúde pública, sobretudo no Norte, essa outra assustadora realidade da violência no campo e a impunidade de crimes no interior do paísvem à tona. Como surgiu o estudo?
Renato Kfouri – A Repórter Brasil, ONG que há 20 anos realiza pesquisas, investigações jornalísticas e metodologias educacionais, lança o especial multimídia Cova Medida, que consolida os detalhes sobre 31 assassinatos de trabalhadores sem-terra, indígenas e ambientalistas ocorridos no primeiro ano do governo Bolsonaro (2019), e escancara a impunidade para esses crimes.
Diário – Qual o principal objetivo deste trabalho?
Renato – Mais do que sensibilizar a sociedade para a insistente guerra que acontece no interior do Brasil, envolvendo sem-terra, indígenas em defesa do território e ambientalistas (de um lado), e fazendeiros, capatazes, madeireiros, grileiros e até políticos locais – do outro –, a plataforma multimídia Cova Medida documenta e pretende tirar do silêncio essas histórias de brasileiros “anônimos”, vítimas de verdadeiros massacres. O material detalha o status de investigação de cada um dos crimes e traz entrevistas com familiares: alguns parentes sofrem ameaças e enfrentam dificuldades financeiras, além do luto e da ânsia por justiça.
Diário – E sobre massacres na chamada Amazônia Legal, o que já se sabe?
Renato – Realizado por uma equipe de mais de 20 profissionais, o Cova Medida revela, entre outros dados, que a região Norte do Brasil é a que mais sofre com esses crimes impunes: 87% das vítimas viviam na Amazônia Legal (27, no total). Só no Estado do Pará foram 12 assassinatos; no Amazonas, seis mortos injustamente; um no Amapá e um em Roraima. Além disso, os Estados do Maranhão e do Mato Grosso (que fazem parte da Amazônia Legal) somaram mais outras quatro e três execuções, respectivamente. Dos 27 casos ocorridos na região amazônica, 18 (66%) ainda não saíram da polícia – ou seja, são investigações não concluídas. Apenas uma investigação foi considerada “concluída”: a de um indígena, no Amapá que, segundo o Ministério Público Federal, morreu afogado – versão que a família contesta, já que foram encontradas lesões no corpo da vítima.
Diário – Ainda motivados por questões fundiárias?
Renato – Onze dessas execuções foram motivadas por disputa de terra; quatro em defesa do meio ambiente; oito em defesa de território indígena; uma denúncia de ilegalidades; e três ligadas a questões trabalhistas.
Diário – Algum recorte adicional sobre questões em terras indígenas?
Renato – Dos 27 assassinatos ocorridos nos Estados da Amazônia Legal, sete foram de lideranças indígenas e um foi de um servidor da Funai. Entre os casos de indígenas, um teve bastante repercussão, inclusive internacional: o de Paulo Paulino Guajajara, que integrava os Guardiões da Floresta, grupo formado pelos indígenas para proteger o território de madeireiros e invasores. Um ano depois do crime, a família de Paulino enfrenta dificuldades financeiras e sofre ameaças. Os dois madeireiros indiciados pela morte do guardião da floresta tiveram a prisão preventiva decretada, mas continuam soltos. O Pará, campeão nacional dos assassinatos em 2019, contou ainda com uma chacina – a de Baião, em que seis pessoas foram executadas em 24 horas. Todas essas histórias podem ser conhecidas em profundidade no Cova Medida.
Diário – Fale um pouco mais sobre o Cova Medida.
Renato – O nome foi inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto – que Chico Buarque musicou em “Funeral de um Lavrador”, tem como base o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os assassinatos em conflitos no campo. A Repórter Brasil atualizou o andamento das investigações até 20 de janeiro de 2021. Teve ainda participação do advogado Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, na classificação do status das investigações. A plataforma multimídia apresenta uma exposição dinâmica dos casos, com uma introdução que mostra as principais conclusões da investigação. O Cova Medida oferece também um perfil das vítimas e relatos de como ocorreram suas mortes; histórias de chacinas; entrevistas e áudios emocionados de familiares, e duas grandes reportagens: uma que reúne as principais descobertas da investigação (e que traz ainda entrevistas com Marina Silva, Sônia Guajajara e João Stédile) e outra que investiga cinco crimes impunes há mais de uma década.
Perfil
Marcel Gomes – Secretário-executivo da ONG Repórter Brasil. Coordenou pesquisas sobre os impactos socioambientais da cadeia de produção agropecuária e de biocombustíveis. É formado em jornalismo e tem mestrado em ciência política, ambos na USP. Cursa doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp.
Perfil das vítimas
– 52% das vítimas tinham menos de 45 anos de idade
– 27 viviam na Amazônia Legal – sendo 12 no Pará; 6 no Amazonas;
– 1 no Amapá; 1 em Roraima; 4 no Maranhão; e 3 no Mato Grosso
– 9 sem-terra (ou ligados à causa)
– 7 indígenas (ou ligados à causa indígena) – sendo 1 deles um servidor da Funai
– 2 ambientalistas
– 3 trabalhadores rurais
– 6 outros.
Status das investigações
– 18 assassinatos estão com investigações não concluídas (sendo que 7 estão paradas)
– 8 casos com a Justiça, sendo 6 relacionados à chacina de Baião (PA)
– 1 caso considerado encerrado (mas família contesta conclusão da polícia e do MP)
Motivação dos crimes
– 11 motivados por disputas por terra
– 8 defendiam o território indígena
– 4 defendiam o meio ambiente
– 3 ligadas a questões trabalhistas
– 1 denúncia ilegalidades
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