Entrevista

“O CNJ tem atuação positiva na limitação de condutas de juízes, desembargadores e ministros”

Amapaense, filha dos pioneiros Walter Cantuária e Doralina Ramos, divorciada, mãe de Leonardo, 17 anos, e Larissa, 18, a juíza de direito Elayne da Silva Cantuária, graduada em Administração de Empresas e Direito e atual presidente da Associação dos Magistrados Amapaenses faz parte da constelação de bons juízes do Amapá, contribuindo diretamente com invulgar competência, habilidade e pautada no equilíbrio e na imparcialidade para que a justiça do Amapá seja atualmente uma das mais eficientes e céleres do país, segundo o CNJ. Ela concedeu, nesse sábado, entrevista ao jornalista e radialista Luiz Melo, e falou sobre o Judiciário amapaense e a realidade atual da justiça brasileira.


Elayne Cantuária. Juíza de direito dá entrevista no rádio.

Jornalista Luiz Melo: A senhora se tornou juíza com que idade?
Juíza Elayne Cantuária : Com 23 anos eu passei no concurso da magistratura e tomei posse com 24 anos de idade, exatamente no dia 5 de outubro de 1993.

Luiz Melo: Ser juíza era o que a senhora mais queria na vida?
Elayne: Inicialmente a carreira da magistratura foi uma decisão para eu ter profissão, porque antes eu me formei em administração de empresa e meu sonho, meu intuito era trabalhar com meu pai que era empresário. Entretanto, começando a estudar eu me apaixonei cada vez mais pelo Direito e cheguei à carreira jurídica; embora também tenha passado em concurso público para o Ministério Público em Pernambuco, eu optei por ser juíza no Amapá, na minha terra, para ser protagonista para viabilizar mudanças para melhorar minha terra, minha cidade, meu estado.

Luiz Melo: Ser juiz é um sacerdócio?
Elayne: Não deixa de ser um sacerdócio, porque para julgar causas pessoais tem que ter equilíbrio, porque isso envolve valores morais, éticos e religiosos; uma pessoa é diferente da outra; por isso a função acaba virando sacerdócio porque esses valores vão além da lei; o juiz engloba esses valores… Julgar não é fácil, por isso não deixa de ser sacerdócio.

Luiz Melo: A magistratura é uma carreira atrativa?
Elayne: É necessário antes de qualquer coisa ter essa vontade de ser juiz, porque outras carreiras jurídicas, como consultor jurídico do Senado, procurador da República e até promotor de justiça financeiramente são mais atrativas que a própria magistratura, que vive na realidade contemporânea como vítima de muitas agressões e críticas principalmente por causa da Operação Lava Jato; nós, por exemplo, desde 2015 não temos qualquer reposição salarial; e eu falo de reposição salarial e não reajuste salarial, ao contrário das outras, porque a mídia sempre está dando em cima do juiz, dizendo que estamos em outro patamar, que ganhamos excessivo dinheiro, mas não é isso que acontece.

Luiz Melo: O magistrado possui verbas indenizatórias, como auxílio moradia, auxílio livro, auxílio saúde e outros benefícios?
Elayne: Nós temos auxílio moradia, que hoje está com liminar dada pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal federal; quando o auxílio moradia não é previsto na Loman (Lei Orgânica da Magistratura), o Tribunal tem que dar um percentual como ajuda financeira, porque o magistrado precisa de segurança, de uma casa bem estruturada, cerca elétrica… Não é ilegal. Os Tribunais também subsidiam planos corporativos em favor não só de juízes, como também aos servidores, por se tratar de uma responsabilidade social para todos, indistintamente. O auxílio livro ainda não foi regulamentado no Amapá. Mas é importante destacar que esses benefícios se somam aos salários, que não podem ultrapassar o teto para o servidor público, que equivale ao salário de um ministro do STF, que está hoje em cerca de 24 mil reais.

Luiz Melo: Em sua opinião o quadro da magistratura amapaense é bom?
Elayne: Eu posso falar categoricamente que sim, não apenas me referindo aos juízes amapaenses, que nasceram aqui, como também dos egressos de outros estados, que nos trouxeram conhecimento, responsabilidade, pessoas novas e bastante competentes.

Luiz Melo: A conduta do desembargador João Lages, por representação do Ministério Público, de suposta parcialidade em uma ação originária da Operação Eclésia está sendo apurada pelo CNJ. Como a Associação dos Magistrados age em casos como este, em que um associado é investigado?
Elayne: A associação tem também o direito, a obrigação, de defender quando há quebra de prerrogativa; ainda não tivemos contato direto com o processo, manejado pelo MP, que questiona suposta irregularidade na decretação de prisão domiciliar de dois encarcerados. Mesmo sem conhecer o processo, porém, é preciso que se diga que de decisão judicial há uma gama de recursos previstos no ordenamento jurídico, que podem chegar até o Supremo; e cada vez que a decisão de um magistrado é questionada de forma transversal não deixa de atacar a independência do magistrado. Não estou dizendo que o juiz só está sujeito a acerto, porque nós também erramos, somos seres humanos; mas quando uma decisão desagrada parte ou infringe a legislação há recursos cabíveis dentro do ordenamento jurídico.

Luiz Melo: A forma de escolha dos ministro do Supremo Tribunal Federal é o ideal ou não é o que a magistratura ambiciona?
Elayne: A AMB faz enquete com magistrados pra ver se essa forma Constitucional vem agradando e se está tendo a atuação necessária no Brasil. Se formos ver a composição do STF são 11 ministros, mas apenas dois são juízes de carreira, sendo o restante de procuradores de estado, advogado geral da união e advogados, mas entendemos que a maioria deveria ser de magistrados, que conhece bem a realidade jurídica brasileira desde o início de seu trabalho em comarcas de interior, passando por todas as instâncias, porque sem dúvida essa experiência permite decisões mais maduras, mais pensadas. E ao final da carreira o magistrado ainda almeja ser ministro. Outro problema é que, embora sabatinado pelo Senado, o indicado não deixa de ter atrelamento político de quem o nomeia, que é o Presidente da República, Certas situações evidenciam esse contato com a ‘política mãe’ que o colocou no Tribunal superior.

Luiz Melo: Os tribunais ainda cometem abusos contra magistrados ou isso acabou com a criação do Conselho Nacional de Justiça?
Elayne: Entendo que não, porque hoje a apuração de infrações disciplinares conta com mais uma seara, que é o CNJ, que foi criado num contexto em que todos queriam um controle externo da magistratura; na realidade o CNJ foi criado para resolver questões administrativas e financeiras dos tribunais, inclusive apuração de infrações, e isso ocorre após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) constatar a materialidade dessa infração, surgindo o CNJ como 2ª instância; além, claro, da permissibilidade das partes processuais manejarem o pertinente processo de controle administrativo, o PCA.

Luiz Melo: Então houve avanços com a criação do CNJ?
Elayne: Sim, antes os processos ficavam acumulados, sem saber quem dirimiria essas questões, mas hoje o CNJ tem uma atuação bastante positiva na limitação de certas condutas de juízes, desembargadores e ministros.

Luiz Melo: Há quem diga que a justiça no Brasil é um desafio e exercício constante de coragem. A senhora concorda com isso?
Elayne: Com certeza, temos como exemplo o Sérgio Moro como grande ícone e representatividade dessa justiça contemporânea que não é demais dizer que mudou radicalmente o destino político do Brasil; antes a corrupção era notória, difícil de ser apurada, tanto que tinha o slogan ‘rouba, mas faz’. Com a Operação Lava Jato, hoje vivemos um Estado diferente, onde a população não aceita mais que o dinheiro público não seja usado em prol dela, da saúde, da educação e da segurança pública. E além do Moro temos milhares de juízes que dão seu sangue para aplicar a justiça ideal, que são ameaçados de morte, que são obrigados a andar com escolta…

Luiz Melo: O Brasil tem hoje um sistema judicial confiável o suficiente, do qual a sociedade pode se valer?
Elayne: Claro que sim, mas é preciso dizer que em qualquer carreira tem joio e o trigo; não vamos dizer que não há magistrado ruim; somos 18 mil magistrados, e nesse universo não podemos afirmar que não há um que não age de forma parcial; o juiz é um servidor que está a serviço da comunidade, que está fazendo seu trabalho nas comarcas.

Luiz Melo: Juízes como o Sérgio Moro, aqueles mais corajosos e independentes vivem sob risco permanente de morte?
Elayne: Com certeza! Eu tive oportunidade de participar de um evento em Porto Seguro (BA) e o juiz Sérgio Moro foi fazer uma palestra; desde que ele chegou ao aeroporto notamos a sua inquietação, olhando pra um lado e outro; ele não age normalmente quando está em local público; ao ser lembrado por sua coragem, a vida particular dele não é a mesma, mas tem coisas boas e ruins; uma das boas é a contribuição que o bom juiz dá para melhorar a vida nacional; o ruim é que ele não deixa de ser uma pessoa normal, não pode ir ao supermercado e à farmácia, por exemplo…

Luiz Melo: Quem avalia a postura ética e moral do juiz?
Elayne: Toda corregedoria tem essa função, e o juiz não é só no horário de trabalho, porque ele é juiz sempre. Um juiz que não tem boa conduta ética, que seja encontrado bêbado dirigindo como exemplo, não é coisa muito boa porque nós julgamos essas pessoas; se o juiz tem esse padrão ético negativo, como ele vai mostrar à população que é capaz de julgar essas condutas? O juiz tem que ter equilíbrio ético e moral, tem que ser independente e imparcial, porque é no Judiciário que desaguam os conflitos.

Luiz Melo: O desembargador federal Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal de Brasília, que esteve recentemente no Amapá e foi entrevistado por nós, disse que, numa comparação a Pilatos que lavou as mãos condenando inocente, Jesus Cristo, nos dias de hoje temos juízes com esse perfil de Pilatos, segundo ele, juízes covardes, carreiristas, bajuladores, corruptos e até frouxos, principalmente quando não deferem liminar em casos extremamente necessários para não desagradar governantes. A senhora em nome da magistratura diria o que?
Elayne: Ele também citou o Padre Antônio Vieira… O julgamento de Cristo tanto quanto o de Nuremberg são emblemáticos dentro do direito mundial. Sobre se há juiz covarde que não enfrenta caso específico de conceder liminar, antecipação de tutela, vou dizer que sim. Mas é importante ponderar que essa decisão tem que ser sob o ponto de vista da responsabilidade social e econômica.

Luiz Melo: E quanto se trata de uma decisão de urgência, como para obrigar os governos a comprar medicamentos ou bancar o tratamento de uma enfermidade grave, que pode levar a morte?
Elayne: A judicialização da saúde é emblemática porque a decisão tem que ser tomada com muita parcimônia; na mão do juiz está a vida ou a morte, é preciso tomar remédio que custa 300 mil reais; a falta de gesso e morfina no Hospital de Emergência… São casos que o juiz é instado a dar uma decisão que muitas vezes não seria necessário se os Poderes efetivamente funcionassem; hoje o Poder Judiciário está inserido em muitas situações de omissão dos outros Poderes; é preciso gestão adequada de tudo isso; juiz é chamado a dar decisão que contemple essa vida ou essa morte, e por isso pode desagradar o sistema de governo; mas é necessário que se tenha muita cautela, porque muitas vezes essa decisão obriga a ‘furar a fila’ de operação para a pessoa ser operada de uma determinada moléstia, óssea, por exemplo, em detrimento de outros; se o juiz é venal e faz isso para desagradar ou agradar instituições e governos, é covardia, mas se o juiz está preocupado com esses aspectos sociais econômicos é elogiável. Há que se levar em conta que o juiz também é obrigado a atuar em situação de omissão de lei; sem nenhuma vírgula hoje casais homoafetivos podem casar e adotar, mas a lei não foi alterada pelo Congresso Nacional para permitir isso, e o STF, interpretando a lei deu direitos iguais; a função judicial vai muito além da caneta do juiz, de um texto legal, porque essa função é social, é econômica; por isso eu acho que essa ‘covardia’ deveria ser relativizada a casos concretos.

Luiz Melo: Outro assunto abordado pelo desembargador federal em sua entrevista num questionamento feito por nós é sobre o juiz em tese exercer atividade que a rigor não lhe pertence, como ele falou, porque pertence à sociedade, mas alguns quase sempre são vaidosos e se acham semideuses. Ele disse que vaidade é fraqueza do ser humano, fruto da reflexão do juiz que não estuda e não se aprimora, acabando por assumir a magistratura como se fosse um Deus, “ditando suas ordens do trono de sua ignorância para praticar injustiças”. A senhoria tem opinião formada a respeito desse assunto?
Elayne: Existem sim juízes vaidosos, encastelados em seus gabinetes, longe das partes. Mas, isso é exceção e não a regra. Temos aqui no Amapá uma justiça nova, tanto que costumamos receber as partes, não somente advogados, o que não acontece em outros Tribunais; o juiz está se aproximando da sociedade; como o juiz vai julgar quando ele vem de fora e não conhece os nossos palavreados, os nossos costumes? Para isso é preciso que o juiz tenha interação social para poder julgar. Como o juiz vai entender se um furto foi insignificante ou não se ele não tem conhecimento do contexto social? Temos que admitir que há juízes que fizeram concurso público como se fosse uma passagem para o Olimpo e se sentem deuses, mas aqui no Amapá é minoria.

Luiz Melo: Outra afirmação do desembargador Prudente de Moraes é que a Escola da Magistratura não ensina o que deveria ensinar, porque não adianta ensinar o comportamento do juiz como se ele estivesse numa sala de aula da universidade, mas sim a técnica de bem julgar. Segundo ele, isso não está sendo feito, porque o juiz não aprende aquilo que é essencial para fazer um julgamento justo. Ele tem razão?
Elayne: Eu posso falar com toda segurança que os juízes dos concursos mais modernos contam com aspectos diferenciados; as escolas judiciais hoje investem em situações diferenciadas, ao contrário do que faziam anteriormente; antes era só prova jurídica, oral, escrita, mas hoje por regra do CNJ, mais exatamente nos últimos cinco anos ele passa por um período de formação, enfrenta matérias como administração judicial, gestão de pessoas, técnicas e decisões de sentença, deontologia que é a ética e moral, além de fazer estágio na Vara com o colega que é titular, estágio esse que dura cerca de seis meses. Concordo com o desembargador que justiça justa é a rápida, e ela não acontece só na preparação do magistrado para decidir, mas na gestão material, buscar indicativos e índices para ver onde estão grandes gargalos. No Amapá estamos tendo todo esse cuidado, para que o juiz não entre cru na sala de audiências, tanto que ele só é aprovado se receber notas altas, se realmente estiver amadurecido para tomar posse na função.

Luiz Melo: O desembargador também disse que as instituições, mais especificamente o setor político, estão carentes de valores éticos…
Elayne: Nisso eu concordo inteiramente com ele, porque a gente vê uma ruptura no dever institucional. É preciso que os Poderes se unam, tenham harmonia e independência, mas é preciso união; é preciso cultuar a cultura do querer bem, do querer melhor; é preciso mudar isso nas próprias pessoas; é o modelo de responsabilidade dos brasileiros que precisa ser repensado; é preciso que a gente tenha uma nova concepção de que o dinheiro público é para o ser usado em benefício do povo, que a democracia é uma construção edificada no direito, mas para servir ao povo, para a organização do estado democrático, para que a população tenha pelo menos suas necessidades básicas atendidas.


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