Entenda o caminho para desenvolver a vacina contra a covid-19
Testes em milhares de pessoas já estão sendo feitos pelo mundo
Se as pesquisas em curso confirmarem o sucesso que obtiveram até então, as vacinas de covid-19 serão as mais rápidas já desenvolvidas pela ciência. Menos de um ano depois dos primeiros casos da doença na China, em dezembro de 2019, testes em milhares de humanos já estão sendo feitos pelo mundo, incluindo o Brasil.
Entre as pesquisas consideradas mais promissoras, quatro realizam testes no país: a vacina desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford, do Reino Unido; a das farmacêuticas Pfizer (Estados Unidos) e BioNTech (Alemanha); a vacina Coronavac, criada pela empresa chinesa Sinovac; e a unidade farmacêutica da empresa Johnson & Johnson, a última que teve testes clínicos autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na semana passada.
Antes de serem aplicadas em grande número de voluntários, essas fórmulas passaram por uma série de testes para verificar a segurança. Mesmo assim, muito trabalho ainda será necessário para garantir que elas sejam eficazes o suficiente para chegar aos postos de vacinação de todo o planeta e ajudar a conter a pandemia. O caminho entre o laboratório e a imunização será explicado pela Agência Brasil nesta semana.
Como funciona uma vacina?
A ação de uma vacina pode ser explicada em poucas palavras: antecipar o contato do corpo com um microorganismo de forma segura, o que prepara nosso sistema imunológico para quando esse antígeno de fato tentar provocar uma infecção. Um corpo vacinado já tem anticorpos, sabe o caminho para produzi-los e, portanto, se defende mais rapidamente desse invasor.
O desenvolvimento de uma vacina nos dias atuais é um trabalho complexo de estabelecer a melhor maneira de expor o corpo, de forma segura, a esse contato antecipado. As vacinas precisam conter ao menos pedaços dos microorganismos, que sejam inofensivos o suficiente para serem seguros de injetar no corpo humano. Mas, por outro lado, essas frações precisam ter as informações necessárias para que o corpo consiga trabalhar na produção de anticorpos e se preparar para a infecção.
Tipos de vacinas
O primeiro passo que os pesquisadores precisam dar nesse sentido é identificar uma parte do corpo do microorganismo, uma molécula, que provoque resposta do sistema imunológico ao entrar em contato com células humanas. Para essa investigação, os cientistas contam atualmente com uma ferramenta poderosa: o sequenciamento genético, que é um mapeamento de todas as informações de um organismo.
A velocidade com que o coronavírus SARS-CoV-2 foi sequenciado na China, ainda em janeiro, permitiu que pesquisadores identificassem a proteína S, que forma a coroa de espículas, pequenos espinhos, que dá nome ao coronavírus. Essa molécula é a estrutura que o vírus utiliza para invadir as células humanas, mas também provoca resposta das defesas do organismo.
A vacina pesquisada pela Universidade de Oxford, por exemplo, busca neutralizar a ação que o vírus faz a partir dessa proteína, o que poderia impedir que ele invadisse uma célula e a utilizasse para se multiplicar. Para isso, a proteína foi clonada e inserida em um adenovírus de chimpanzé. Esse microorganismo, causador de resfriados simples, passa a ser utilizado como um vetor viral, um veículo para transportar a proteína S.
Os testes em desenvolvimento buscam confirmar que, quando esses adenovírus são inoculados em humanos, ocorre a resposta imunológica à proteína S. Se isso for verdade, ao entrar no corpo de uma pessoa vacinada, o coronavírus já encontraria o organismo preparado para reagir a essa forma de invasão. Também em testes clínicos no Brasil, a Johnson & Johnson utiliza adenovírus humanos em vez dos de chimpanzé. Outros projetos estudam a utilização do vírus influenza em vez do adenovírus.
Há ainda vacinas que já estão em testes em humanos e utilizam o próprio SARS-CoV-2 morto, como forma de provocar essa resposta imunológica. É o caso da vacina coronavac, desenvolvida pela Sinovac. Nesse caso, é chamada de vacina com o vírus inativado, técnica que é comum em outros produtos já disponíveis no sistema de saúde, como as vacinas contra a gripe e a raiva.
Testes em laboratório e em humanos
As propostas de vacinas consideradas mais viáveis passam por testes em laboratório, em que são observados os potenciais de estimular a produção de anticorpos em células expostas. Outro objetivo central é avaliar se o contato dessa formulação com o organismo produzirá efeitos adversos.
Nessa etapa da pesquisa, os cientistas utilizam testes in vitro e também em animais que têm uma resposta imunológica semelhante à dos seres humanos, como outros primatas. Além de observar a resposta provocada pelas vacinas, essa etapa busca garantias de que há segurança suficiente para iniciar testes em seres humanos.
O assessor científico sênior de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Akira Homma, explica que esses testes exigem laboratórios sofisticados, em que haja segurança para lidar com os antígenos. Quando os testes em laboratório comprovam que uma vacina é capaz de estimular a produção de anticorpos sem oferecer riscos ao organismo, começa a fase mais longa da pesquisa, que é a testagem em seres humanos, chamada de testes clínicos.
Homma acrescenta que esses testes são divididos em quatro fases: Na Fase 1, é demonstrada a segurança da vacina a partir de testes em um grupo reduzido de pessoas jovens e sadias. Já na Fase 2, os pesquisadores partem para um grupo com centenas de voluntários, incluindo integrantes das populações-alvo da vacinação, como crianças e idosos, se for o caso. Nessa fase, a pesquisa busca também definir a melhor dosagem da vacina para a produção das defesas do organismo.
A etapa mais longa do desenvolvimento de uma vacina costuma ser a Fase 3, em que a observação é ainda mais extensa, com milhares de voluntários. O objetivo dos pesquisadores, com essa etapa, é verificar a eficácia da imunização, comparando um grupo de pessoas vacinadas com outro que recebeu doses de placebo.
“Essa fase sempre é feita em regiões onde há maior incidência da doença que está sendo pesquisada. Por exemplo, a Fase 3 para a vacina de covid-19 está sendo feita no Brasil porque o país tem grande incidência”, diz o pesquisador.
A circulação da doença é importante porque o grupo vacinado e o grupo controle, que recebeu placebo, vão se expor à contaminação no seu dia a dia, para que, após um período, seja possível comparar se as pessoas vacinadas de fato ficaram protegidas contra a infecção. Quanto maior for a circulação da doença, menor é o período necessário de observação.
Os testes clínicos em curso no Brasil, como as vacinas de Oxford e a coronavac, estão na Fase 3. No caso da vacina chinesa, por exemplo, as doses serão aplicadas em 9 mil profissionais de saúde que atuam na linha de frente contra a covid-19. Na Fase 1 de ensaios clínicos, houve apenas 144 voluntários, e, na Fase 2, 600. Os testes clínicos da coronavac no Brasil estão sob condução do Instituto Butantan após acordo entre a Sinovac e o governo de São Paulo.
Em entrevista à Agência Brasil, o diretor médico de Pesquisa Clínica do Instituto Butantan, Ricardo Palacios, contou que os testes de fases 1 e 2 tiveram resultados promissores na China. “Os estudos feitos até agora na China demonstraram que mais de 90% dos voluntários que receberam as vacinas tiveram anticorpos capazes de neutralizar o coronavírus, isso é um diferencial”, disse Palácios.
No caso da vacina Astrazeneca/Oxford, os testes no Brasil estão sendo conduzidos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com mil voluntários, e o Instituto D’or de Pesquisa e Ensino, que realiza os testes com 1,5 mil voluntários no Rio de Janeiro e mais 1,5 mil em Salvador.
Depois da Fase 3 de testes clínicos, as vacinas já podem ser submetidas ao crivo definitivo das agências reguladoras, que acompanham todas as fases de testagem. No caso do Brasil, a aprovação é feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que vem adotando regras especiais para acelerar seus processos no que se refere à covid-19. A partir desse aceite, a vacina já pode ser incluída no Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, um dos maiores do mundo.
A preocupação da comunidade científica em relação à vacina anunciada pelo governo da Rússia se deve justamente ao fato de o registro ter ocorrido antes da realização dos testes de Fase 3. Além disso, pesquisadores de outras partes do mundo também não tiveram acesso aos resultados dos testes de fases 1 e 2, que teriam comprovado a segurança da vacina em grupos menores.
Depois que o produto já foi registrado, há ainda uma Fase 4 de testes clínicos, chamada de farmacovigilância. Esses estudos são conduzidos quando o imunizante já está disponível para a população, e, entre seus objetivos, estão conferir quanto tempo a imunidade produzida permanece e se há reações raras que não foram observadas nos testes clínicos de Fase 3.
Fast track
Akira Homma afirma que a emergência global causada pela pandemia levou a uma série de estratégias para acelerar o desenvolvimento das vacinas, já que o percurso descrito acima pode durar mais de dez anos. “As várias etapas de desenvolvimento estão sendo sobrepostas, comprimidas ou desenvolvidas em paralelo, de tal forma que o estudo clinico de Fase 3, que leva quatro ou cinco anos, estão tentando obter em seis meses”. Ele diz que resultados preliminares positivos na fase pré-clínica da pesquisa já têm sido suficientes para avançar para a fase clínica de testes.
A professora da Universidade Federal de Goiás e representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim) no estado Cristiana Toscano tem acompanhado atentamente esses processos de desenvolvimento, como integrante do Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (SAGE), da Organização Mundial da Saúde (OMS). A pesquisadora participa do subgrupo sobre vacinas de covid-19 e conta que uma das estratégias para acelerar os estudos de Fase 3 é realizar a pesquisa simultaneamente em centros espalhados em diferentes países.
“Somados todos esses centros em um estudo multicêntrico, com um protocolo único, você consegue avaliar um número maior de pessoas em período menor de tempo”, descreve ela, que acrescenta que a própria dimensão da pandemia ajuda a acelerar as pesquisas, porque os voluntários se expõem ao vírus mais rapidamente. A divisão do trabalho entre grupos que trabalham paralelamente também vem acelerando as pesquisas.
“Normalmente se tem um número pequeno de grupos trabalhando em uma vacina, porque são iniciativas custosas e que muitas vezes não dão certo. Como agora se tem esse investimento internacional em vários grupos e utilizando várias tecnologias diferentes, existe uma velocidade maior”.
Produção da vacina
A confirmação da eficácia e segurança de uma vacina vai levar a uma procura enorme por suas doses, já que bilhões de pessoas em todo o mundo estão expostas à pandemia. A produção e distribuição de bilhões de doses, no entanto, será um trabalho que também vai levar tempo e vai requerer recursos financeiros e plantas industriais preparadas.
Cristiana Toscano explica que, além da forte incidência do vírus, o Brasil vem sendo escolhido para a realização de testes de Fase 3 por sua tradição na produção de vacinas com excelência, em centros de pesquisa como Bio-Manguinhos e Instituto Butantan, que, além de conduzir os estudos, têm a capacidade de receber tecnologia para reforçar a produção das doses.
O governo federal já fechou acordo com os desenvolvedores da vacina AstraZeneca/Oxford, que inclui receber mais de 30 milhões de doses até janeiro. Mais 70 milhões de doses devem chegar ao país a partir de março. O acerto prevê a transferência de tecnologia para a produção da vacina por Bio-Manguinhos. Da mesma forma, o acordo entre o Butantan e a Sinovac também prevê a transferência da tecnologia para produzir a vacina no Brasil.
“É muito importante que essas transferências de tecnologia sejam feitas considerando a experiência e a tecnologia já dominadas por cada instituição e cada país. É muito mais fácil você expandir uma tecnologia que já domina do que começar do zero”, avalia Cristiana, que conta que as estruturas produtivas ao redor do mundo já estão sendo mobilizadas para produzir as vacinas mesmo antes de os testes comprovarem sua eficácia de forma definitiva.
“É uma decisão que tem que ser tomada sem certeza. É um investimento de risco que tem que ser feito agora. Não dá para esperar dezembro para começar a pensar em ampliar a escala de produção, porque só teríamos essa vacina no fim do ano que vem”.
Além da produção, a disponibilização dessas vacinas internacionalmente está sendo discutida em fóruns internacionais, que buscam soluções para que países de menor renda tenham acesso a elas. Uma dessas iniciativas é a Covax, coordenada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a aliança global por vacinas (Gavi) e a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi).
A Covax buscará investir no escalonamento da produção de um portfólio variado de vacinas, para minimizar os riscos e garantir que 20% da população global tenham acesso à vacinação contra a covid-19. Os recursos do fundo partiriam de 70 países mais desenvolvidos, que buscam apoiar cerca de 90 países mais pobres que receberiam as vacinas.
“Existe um acordo entre o fundo e as empresas produtoras das vacinas e, com esse financiamento, já se garante um mercado para as vacinas candidatas. As empresas recebem um incentivo para investir no escalonamento da produção, sabendo que vai ter um mercado ampliado para o mundo inteiro”, explica Cristiana, que prevê que o fundo deve necessitar de US$ 18 bilhões. “Os 90 [países] são os que não têm condição nem de produzir nem de comprar essas vacinas. O Brasil está entre os países que têm capacidade de autofinanciar essas vacinas, os 70. Os países demonstraram interesse, mas a formalização disso está em andamento”.
Estratégias de vacinação
Os países também precisam se antecipar nas estratégias de vacinação, a fim de preparar os postos para receberem as vacinas e aplicar na população. Isso inclui o treinamento de profissionais, a formulação dos sistemas de informação sobre a aplicação das doses e a reserva de espaço para estocagem do produto.
No início deste mês, o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Correia, antecipou a deputados a estratégia de vacinação que vem sendo discutida pelo governo federal. Segundo Correia, foi feito o mesmo cálculo usado para a vacina contra influenza, que é de cerca de 100 milhões de doses no país. A vacinação deve priorizar o grupo de risco, que inclui idosos e pessoas com comorbidades, como cardiopatia e obesidade, além de profissionais de saúde.
Ainda de acordo com o secretário, o Ministério da Saúde já está preparando a aquisição de seringas, agulhas e o planejamento para a distribuição da vacina no país. Também está em curso o levantamento do pessoal disponível para aplicar a vacina e a capacidade da chamada “rede de frios”, que são os equipamentos de estados e municípios em condições de estocar as doses nos 37 mil postos de vacinação do país.
Cristiana Toscano avalia que o Programa Nacional de Imunizações do Brasil é robusto e bastante capilarizado, mas, mesmo assim, precisará de ampliação em sua capacidade de transporte e armazenamento refrigerado para as vacinas de covid-19.
“Toda essa estratégia ainda está sendo estabelecida, até porque ainda depende dos resultados dos ensaios clínicos de Fase 3. São esses estudos que vão dizer se precisa de uma ou duas doses, ou se a eficácia e segurança foi comprovada nesse ou naquele grupo de idade”, afirma. “O Programa Nacional de Imunizações (PNI) é muito robusto, bem estruturado, e tem uma capilaridade importante graças ao SUS. É um programa de excelência internacional, embora nos últimos anos a gente tenha acompanhado com muita preocupação a queda na cobertura de várias vacinas de rotina no nosso país e em outros”.
Por Vinicius Lisboa – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro
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