Dom Pedro Conti

Já a fizemos

Num dia de mercado na cidade de Assis, Francisco, ao sair do convento, encontrou Frei Junípero. Era um frade simples e bom. Francisco gostava muito dele. Aproximou-se e disse-le:

– Frei Junípero, vem comigo, vamos pregar.

– Francisco, você sabe que tenho pouca imaginação. Como poderei falar às pessoas?

Mas, devido à insistência de Francisco, Frei Junípero obedeceu. Andaram por toda a cidade, rezando em silêncio por todos os que estavam trabalhando. Sorriram às crianças, especialmente às mais pobres. Trocaram algumas palavras com os idosos. Acariciaram os doentes. Ajudaram uma mulher a transportar um cântaro de água; outra, a arrumar a banca onde vendia hortaliças e que as crianças, nas suas brincadeiras, haviam derrubado. Depois de terem atravessado o mercado e a cidade, Francisco disse:

– Frei Junípero, está na hora de regressarmos ao convento.

– E a nossa pregação? – Francisco sorriu e respondeu:

– Já a fizemos, já a fizemos.

Para a nossa reflexão sobre o evangelho deste domingo, o quinto do Tempo Comum, eu poderia, simplesmente, repetir o que escrevi a semana passada. O evangelista Marcos continua a sua “catequese” nos apresentando a maneira de Jesus agir, encontrando as pessoas e fazendo o bem. Como já disse, em Jesus, palavras e ações andam juntas. Jesus “prega” com a sua própria vida e, vivendo, anuncia a boa notícia do amor do Pai para com todos, de maneira especial os doentes e excluídos. No entanto está claro que, a cada página do evangelho, algo novo aparece e vale a pena ser colocado.

O primeiro gesto de Jesus é sair da sinagoga e entrar numa casa. Parece óbvio, mas não é. Depois, na frente da casa se reúne “a cidade inteira”. Exagero do evangelista? Ou um convite para todos os pobres e sofredores? De madrugada, Jesus se afasta de todos e vai rezar num lugar deserto. Por fim, continua a sua missão andando “por toda a Galileia”. Jesus fez um gesto – uma cura – na sinagoga, mas agora anda pelas aldeias, no meio do povo. Dá para entender que a boa notícia não ficará “fechada” em algum lugar privilegiado ou reservado. No templo ou na igreja, para entender. Vai se espalhar.

Jesus é livre e a sua palavra liberta, cura e transforma a vida. Jesus também não é um curandeiro ou um mágico de profissão. Não cobra, não faz negócios. Doa a si mesmo, a sua jornada toda e, sobretudo, a sua compaixão. Prega o amor com a sua vida. Somente se reserva às madrugadas para encontrar o Pai, no silêncio e na oração. É um homem para os outros. Inteiramente entregue à missão. Mas não numa atividade frenética, fazendo qualquer campanha ou promovendo a si mesmo. É uma pessoa “ocupada”, mas, ao mesmo tempo, não esquece de onde lhe vem tanta disponibilidade e generosidade. O Espírito acompanha Jesus, desde o batismo no Rio Jordão, depois no deserto e, agora, na vida pública. É o Espírito Santo que o ajuda a conti nuar na comunhão com o Pai celestial, apesar de estar no meio da humanidade, plenamente humano, em carne e ossos. Discretamente, o evangelista nos apresenta o mistério maravilhoso da Santíssima Trindade.

As lições para a nossa vida de cristãos se resumem numa palavra cara ao papa Francisco: “Saiamos, saiamos” (EG 49). A saída mais difícil para todos, porém, não é só aquela de sair do templo e mergulhar na sociedade para “pregar” o evangelho com a nossa vida. É sair de nós mesmos, ir ao encontro das pessoas com o olhar mais fraterno e o abraço mais solidário. Devemos sair para nos tornarmos próximo dos irmãos! Não tem melhor evangelização que o serviço generoso, a paciência da transformação, a liberdade da indignação e a não colaboração com o mal. Duas vezes, Marcos fala que Jesus “expulsava” muitos demônios. Seria bom que cada um de nós reconhecesse qual “espírito mau” nos impede de ser um evangelizador com a sua vida. A acomodação? O medo de se comprometer? O desencanto? O que entendi é que não saber falar não é desculpa. São Francisco já sabia. Frei Junípero aprendeu. Todos nós “pregamos” muito mais com o exemplo do que com as palavras. Também quando menos pensamos.

O segredo da pessoa feliz

Muito anos atrás, num lugar que pode ser o nosso, também, vivia uma pessoa muito feliz. Certo dia, alguém lhe perguntou:

– Qual é o segredo de tanta felicidade? O homem respondeu cantando:

– Quando estou de pé, quero estar de pé; quando ando, quero andar; quando escuto quero escutar, quando vejo, quero ver; quando bebo, quero beber; quando sonho, ah! mergulho no sonho.

Ninguém entendeu nada.

– Escute aqui – gritou outro – o que você está nos dizendo a gente também faz. Mas por que você é tão feliz? Ele cantou novamente:

– Quando estou de pé, quero estar de pé; quando ando, quero andar… Então, desanimados, alguns o deixaram. Mas outros continuaram refletindo sobre o que tinham escutado.

– Você diz que quando está de pé, quer estar de pé; quando anda, quer andar…o que há de especial nisso? Finalmente, a pessoa feliz deu-lhes uma explicação:

– Quando vocês estão de pé, querem andar; quando andam, querem escutar; quando escutam, querem ver; quando veem, querem destruir; quando comem, querem beber; quando bebem, mergulham em sonhos; quando sonham, não sabem sonhar, porque têm medo de perder tempo; quando amam, cobiçam; e o que possuem, querem sempre aumentar.

Como tantas coisas, essa pequena historinha pode ser entendida de muitas maneiras. Pode ser lida como um incentivo à desistência, a parar de sonhar ou, simplesmente, como um convite a permanecer firmes naquilo que estamos fazendo ou decidimos fazer. Contínuas mudanças de rumo e de intenções, com certeza, não ajudam a conseguir os objetivos que nos propomos. Talvez este seja mesmo o segredo da felicidade, ou, ao menos, de menos reclamações e depressões. Digo isso porque, no evangelho de Lucas, que proclamamos neste terceiro Domingo do Tempo Comum, encontramos a palavra “hoje”, que várias vezes se repetirá ao longo deste ano na leitura deste mesmo evangelho. O que foi escrito, há tantos anos atrás, pode valer ainda “hoje” para nós? O que tem a ver tudo isso com a nossa fé e, acredito, também com a nossa alegria?

O evangelista declara que fez estudos cuidadosos a fim de nos transmitir um ensinamento “sólido”. Esforço louvável. No entanto, a fé é, por definição, um arriscar. De outra forma seria uma demonstração e não mais uma fé. Também devemos usar a nossa inteligência para não acreditar em tudo e em qualquer coisa. Para isso, precisamos de testemunhas confiáveis, de algo seguro, por onde começar a crer. Todos os dias, pela publicidade comercial e pelos discursos dos grandes e poderosos somos incentivados a acreditar em promessas: o tal produto ou a tal decisão resolverão grande parte dos nossos problemas. Produtos são reciclados e ideias requentadas, mas basta uma nova embalagem ou uma nova linguagem para nos atrair. Somos humanos e alimentamos sonhos e esperanças. A questão é que os trocamos com bastante frequê ncia, sempre insatisfeitos e encantados pelas novidades. Como cristãos deveríamos “sonhar o sonho de Deus”, ou seja, abraçar e confiar no seu projeto de amor mais do que nos nossos anseios interesseiros e mutáveis. É por isso que a fé vai junto com a esperança. O “hoje” de Jesus não acabou naquele dia na sinagoga de Nazaré, porque o nosso Deus nunca desiste e nem muda os seus projetos. Mas para tanto, precisa que também os pobres nunca desistam de anunciar aos seus irmãos a vida nova do Evangelho, que os oprimidos resgatados ajudem outros a se libertar e os cegos de antes reconheçam que já enxergam claramente o caminho da justiça e da paz. Nos dias de hoje, precisamos dos homens e das mulheres, que dizem ter fé, acreditem que ainda estamos no “ano da graça do Senhor”. Não será o lucro sem limites a salvar a humanida de, não será o esgotamento dos recursos do planeta a nos dar paz e alegria. Não serão as armas grandes e pequenas a decidir os destinos de países inteiros. Não serão as drogas velhas e novas a encantar as novas gerações. Ainda ecoam para nós as palavras do profeta Isaías e o “hoje” de Jesus. Sejamos firmes na fé para dar um sentido grande às nossas vidas e assim seremos felizes.

Um concerto inesperado

Jorge, desde pequeno, mostrou interesse pela música. A mãe, sempre orgulhosa do filho, fazia de tudo para incentivá-lo. Certo dia, soube, pela televisão, que um grande pianista se apresentaria na cidade e ela logo pensou em levar o garoto. Comprou as entradas e sentou-se na fila marcada, junto ao filho. Uma velha amiga, atrás dela, chamou-a. Ela foi para lá e as duas começaram a conversar. A distração foi suficiente para Jorge sair do assento e andar pelos corredores. Cheio de curiosidade, o garoto viu uma porta na qual estava escrito “Proibida a entrada”. Para ele, era mais do que um convite a entrar. Aos poucos, as luzes do teatro foram apagadas e a mãe volto ao seu lugar. Olhou para todos os lados, onde estava Jorge? Ele estava lá no palco, agora iluminado, sentado na frente do piano tocando uma das músicas infantis que sabia de cor. No mesmo instante, o grande pianista se ap resentou, cumprimentou o público, viu a criança e disse ao ouvido dela: “Continue tocando, não pare”. Com sua mão esquerda iniciou um acorde para acompanhar o garoto. Com a direita envolveu o menino e acrescentou um acompanhamento de melodia. O mestre pianista transformou uma situação embaraçosa em uma experiência sensacional. O público ficou perplexo, aplaudiu por algum tempo o grande mestre e o jovem iniciante.

Com o Segundo Domingo do Tempo Comum, iniciamos o período de algumas semanas que antecipa o Tempo da Quaresma. Os trechos de evangelho proclamados nos próximos domingos apresentam os primeiros momentos daquela que chamamos de “vida pública” de Jesus. O “Filho” amado no qual o Pai colocou o seu bem-querer começa a falar e agir e, aos poucos, pelos gestos e palavras, torna-se mais claro que o “messias” será Jesus: muito diferente do esperado pelos tradicionalistas, os nacionalistas e os revoltados. Ele será um “salvador” pobre, sem poder humano, um pregador itinerante, um profeta “causa de queda e de reerguimento para muitos em Israel, um sinal de contradição” enfim (Lc 2,34). Para nos ajudar a acreditar e a confiar nele, a Liturgia nos oferece a página do evangelho de João das bodas de Caná. Atrás do relato de uma festa de casamento , na qual começa a faltar o vinho, está a reflexão teológica do evangelista, que define o acontecido como “o início dos sinais de Jesus” (Jo 2,11). Depois virão outros “sinais”, mas o primeiro indica o rumo do caminho. A “hora”, o tempo certo, virá somente no final, será a hora da cruz e da ressurreição. Tudo acontecerá no amor e por amor. O casal que festeja o casamento não aparece. O verdadeiro noivo é Jesus, ele está no lugar de Deus, como na primeira Aliança. A verdadeira noiva pode ser o antigo povo de Israel, como sempre foi entendido pelos profetas, ou o “novo” povo dos amigos e seguidores daquele que, agora, selará uma “nova e eterna aliança” com a entrega de sua vida e o derramamento do seu próprio sangue. A água é transformada em vinho e esse vinho é melhor.

O reencontro definitivo de Deus com o seu povo, que a água das abluções não conseguia realizar, acontecerá, uma vez por todas, na vida doada do Filho. Através das imagens e da simbologia bíblicas, João evangelista nos deixa o seu recado: nós também podemos ser os discípulos que “creram nele”. Com isso, somos convidados novamente a caminhar com Jesus, a acompanhá-lo e escutá-lo com atenção e humildade. Devemos estar prontos a nos deixar “transformar” por ele, para passar de homens e mulheres “velhos” em homens e mulheres “novos”, cada vez melhores, mais amorosos e fraternos.
Tudo é questão de confiança. A mãe de Jesus sempre nos repete: “Fazei o que ele vos disser”. No entanto, nós insistimos em fazer o que nós mesmos achamos certo, o que julgamos bom para os nossos interesses. Nunca é fácil acreditar que alguém possa transformar os nossos projetos, ideias e capacidades, em algo melhor. Temos medo de ser enganados, usados e depois deixados para trás. Jesus é o Mestre que nos envolve com o seu amor. Vai nos ajudar a fazer o que nós ainda não aprendemos: nos amar mais. Acreditemos. Nós mesmos aplaudiremos felizes.

A estrela verde

Certa vez, milhões de estrelas procuraram o Senhor, o Deus do universo, e lhe disseram:
– Senhor Deus, queremos dar uma volta na terra para estar junto às pessoas.
– Assim será feito – respondeu Deus – mas conservarei vocês todas pequeninas, como os homens lhes veem no céu, e cada uma com a sua cor: branca, lilás, dourada, vermelha, azul…
Naquela noite houve uma linda chuva de estrelas sobre a terra. Algumas ficaram em cima das torres das igrejas, outras passearam pelos campos, outras se misturaram entre as crianças e a terra ficou maravilhosamente iluminada. Porém, passado algum tempo, as estrelas resolveram voltar para o céu e deixaram a terra escura e triste. Disseram a Deus:
– Não foi possível permanecer na Terra. Lá existe muita miséria, fome, violência guerra, maldade, doença…
– Entendo – respondeu Deus – o vosso lugar é aqui no céu, aqui tudo é perfeito, eterno, harmonioso. Na terra, as coisas ainda são imperfeitas, é o lugar onde as pessoas erram, morrem… Mas, já estão todas aqui? Deus contou as estrelas e viu que uma faltava.
– É a estrela verde, a única desta cor, a do sentimento da esperança – disseram as demais – ela resolveu ficar por lá entre as pessoas.
– Mas onde ela foi se meter? Todas olharam para a terra e viram que estrela verde já não estava mais sozinha. A terra estava novamente iluminada, porque havia uma pequena estrela verde em cada pessoa.
Uma estorinha imaginária de estrelas e de esperança para o domingo da Epifania. Conhecemos bem a página do evangelho de Mateus que nos fala de sábios vindo do Oriente em busca do “rei que nasceu”. Uma misteriosa estrela os guia e, depois de muitas incertezas e mentiras, encontram “o menino com Maria, sua mãe”. Muito alegres o adoram e oferecem os seus presentes: ouro, incenso e mirra. Depois disso, por sua vez, enganam Herodes e voltam por outro caminho. Essa página do evangelho é “boa notícia”, não um relato para crônicas ou filmes. Em primeiro lugar, tudo é “caminho”, movimento, encontros e desencontros. Estamos no começo de um novo ano civil e nos primeiros momentos, também, do ano litúrgico. A vida de todos nós é “caminho”. Para onde vamos? Por quem nos deixamos conduzir? Em quem confiamos? De uma man eira ou de outra, conscientemente ou não, todos respondemos a essas perguntas no nosso dia a dia. Administramos o nosso tempo; decidimos o que vale mais e o que vale menos; quem queremos encontrar e quem queremos evitar. Sorrimos para alguns e viramos o rosto para outros. Sentimos alegria, quando encontramos certas pessoas, e raiva quando encontramos outras. “Adoramos” certas coisas e suportamos outras. No entanto, o caminho da vida continua, o tempo vai passando e o desafio aperta: já decidimos em quem acreditar e confiar ou deixamos sempre tudo para depois, na espera de novidades surpreendentes que não virão? Todos precisamos de luz para acertar o caminho da vida. Mas não vamos confundir. “Estrelas” humanas são passageiras. Quem quer ser luz de si mesmo, se apaga, muitas vezes, antes ainda de brilhar. “Ilusão” é fogo, mas de artifício. Se espalha e faz barulho, mas nada mais. A estrela dos Magos para sobre a casa onde estava o Menino-Deus. Mateus, o evangelista, nos propõe Jesus como meta da busca humana, luz que alegra os corações, alguém que abre “outro caminho”. É o caminho sempre novo do amor de Deus, do seu reino de paz e justiça. No entanto, cabe a nós “caminhar”, ou seja, abrir os caminhos da história humana, seguindo a luz do bem e da verdade que Jesus nos ensinou. Isso custa, é arriscado, incomoda, exige mudanças, sobretudo pede a firme esperança que algo melhor pode e deve acontecer. Entendemos que a meta é grande demais, mas é feita de pequenos passos e esses já são os sinais certos que o novo é possível e que já está acontecendo. A luz da estrela, que é Jesus, não será desligada junto às árvores de Natal, porque é de sempre e para sempre. Ele é meta e caminho ao mesmo tempo, experimentamos luz e penumbra juntas, mas nunca mais só escuridão. Se deixamos de caminhar, de seguir a Jesus, é porque nos falta a luz da esperança. Verde mesmo? Não sei. O importante é que nunca nos falte, junto com a fé e a caridade.

O shopping dos maridos

Esqueci o endereço, mas tinha uma loja especial na qual as mulheres podiam escolher os maridos. Eram cinco andares e a cada andar aumentava a qualidade da mercadoria. Mas tinha uma regra: cada vez que se subia um andar, não era mais possível voltar aos andares inferiores, só era permitido sair da loja. Duas jovens amigas quiseram visitar o shopping. No primeiro andar estava escrito: “Os homens deste andar são bons trabalhadores e gostam de crianças”.

– Que bom – disseram as amigas – seria pior se não trabalhassem e não gostassem de crianças. Mas como serão os homens do andar de cima? – Subiram mais. No segundo andar, a placa informava: “Os homens deste andar trabalham, têm salários excelentes, gostam de criança e cuidam do seu aspecto exterior”.

– Viu! – disse uma das amigas – subimos mais, vai ser melhor ainda! No terceiro andar estava escrito: “Os homens deste andar trabalham, têm salários excelentes, gostam de crianças, são ordenados e ajudam nos trabalhos em casa”.

– Que maravilha! – pensaram as duas amigas. A curiosidade venceu e subiram correndo ao quarto andar. A placa rezava: “Os homens deste andar trabalham, têm salários excelentes, gostam de crianças, são ordenados, ajudam nos trabalhos em casa e são muito carinhosos.

– Incrível! – exclamaram as duas amigas – Se os do quarto são assim, como serão os homens do quinto andar? Subiram mais uma vez. O andar estava vazio. Leram: “Este andar serve somente para demostrar que é impossível satisfazer todos os vossos desejos. Por favor, sigam as indicações da saída e tenham um bom dia!”

Não têm shoppings de maridos ou mulheres. Nem de crianças. Gente não pode ser mercadoria. Não existem pessoas perfeitas, já prontas. Graças a Deus, somos pessoas reais, com qualidades e defeitos, sempre em construção, que se encontram, escolhem-se e amam-se. Assim nascem as nossas famílias. Assim continua a aventura da vida humana. Quem está disposto a fadigar para aprender com a vida, descobre a beleza do encontro e sente a falta do amado ou da amada, aceita o desafio da correção própria e dos outros, feita de pequenos passos, de egoísmo e generosidade, de palavras e silêncios, de descobertas e frustrações, de muita espera e paciência. Todas as nossas famílias são escolas de vida. Os bons exemplos e os acertos ensinam, mas aprendemos, talvez até mais, com os erros e as lágrimas. Aprendemos a caminhar caindo. Remendo também ajuda, torna-nos mais humildes e capazes de perdoar-nos uns aos outros.

No domingo da Sagrada Família, somos convidados a olhar para aquela família singular de Maria, José e o menino Jesus. Os chamados “evangelhos da infância”, os primeiros capítulos de Mateus e Lucas, antecipam de forma simbólica e proféticas os acontecimentos que virão na vida de Jesus. Perseguição e coragem, angústia e fé, incompreensão e obediência, recusa e acolhida, alternam-se, como na vida de todo ser humano. A sombra da cruz ilumina de longe os acontecimentos. Maria, a mãe, “conservava no coração todas essas coisas” (Lc 2,51). Talvez seja isso que está faltando às nossas famílias: aprender com o próprio caminho, sem perder o foco na meta da comunhão e do amor. Precisamos acreditar mais que Deus Pai, na sua bondade, vai nos moldando aos poucos, para que todos, em qualquer idade, cresçamos “em sabedoria…e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). Nenhuma família começa perfeita. É algo que se aprende a construir como qualquer outra realidade humana. Não tem o último lançamento de marido, ou mulher, melhor que o anterior. Não serve trocar, precisa aceitar as correções e mudar juntos. Não tem um filho ou uma filha ideal. Tem pais aprendendo a ser pais e crianças e jovens aprendendo a ser filhos. Ninguém de nós é mercadoria com defeito para ser devolvida. Somos todos aprendizes da fraternidade e da partilha; descobrimos as diferenças dos outros e aprendemos a amá-los como eles são. Em qualquer andar do shopping da vida, têm pessoas capazes de amar e ser amadas. Não há outro segredo para sermos melhores, só aquele que Deus Pai escolheu: o amor.

Podem pegar o meu quarto

Guido tinha 13 anos e frequentava a quinta série. Tinha sido reprovado duas vezes. Era um menino grande e meio desajeitado, entendia as coisas com dificuldade, mas era benquisto pelos colegas. Ajudava em tudo, sempre disponível e sorridente. Era o protetor natural dos meninos menores. A apresentação natalina das crianças era o evento mais importante da Comunidade da qual a família de Guido participava. Ele teria gostado de ser o pastor que tocava a flauta, mas a catequista lhe deu uma parte mais exigente: ser o dono da hospedaria, porque ia dizer poucas palavras e o seu porte físico daria mais força à recusa de acolher Maria e José. Na noite da apresentação, o pequeno salão comunitário estava cheio de pais e parentes. No palco aconteceria a encenação. Chegou o momento no qual José bateu palmas para que o dono do albergue abrisse. Foi a vez de Guido pergunt ar:
– O que vocês querem?
– Buscamos hospedagem. Respondeu José apresentando Maria grávida.
– Busquem outro lugar, aqui não tem vaga. Disse Guido conforme a parte decorada. José continuou:
– Senhor, por favor, já procuramos muito e não encontramos nada. Estamos muito cansados.
– Aqui não tem lugar. Continuou Guido, fazendo cara feia.
– Bom senhor, tenha compaixão de nós, a minha esposa está para ter o seu primeiro filho, com certeza irá encontrar um lugar para ela. De repente, o rosto do hospedeiro pareceu ficar mais doce; houve uma grande pausa de silêncio e o público ficou preocupado.
– Não tem lugar! Ide embora! Sugeriu baixinho a catequista escondida de lado.
– Não tem lugar! Ide embora! Repetiu automaticamente Guido.
Triste e de cabeça baixa, José abraçou Maria e começou a se afastar com ela. Guido ficou olhando para o pobre casal, pensativo, os seus olhos se encheram de lágrimas. De repente, a peça tomou outro rumo.
– Não vai embora não, José! – Gritou Guido. – Traz aqui Maria! – O rosto de Guido se iluminou. – Podem pegar o me quarto. Disse com a maior satisfação. O público ficou pasmado. Alguns acharam que ele tinha estragado de vez a peça, mas muitos, instintivamente, aplaudiram. Disseram que tinha sido a mais natalina de todas as peças de Natal.
Um caso da vida dentro da história do Natal, com um final diferente. E o nosso Natal o que terá de novo? Ainda estamos no último Domingo de Advento, mas o clima é natalino. Como outras vezes, estamos ocupados em repetir palavras e gestos que consideramos obrigatórios para esses momentos. Sem compras, sem presentes, sem luzes e sem votos de Feliz Natal, este dia seria igual a tantos outros. Não deve ser assim, mas não só porque repetimos o que consideramos tradicional. Aquele primeiro Natal foi tão único e extraordinário, que nunca mais vai acontecer algo semelhante. Naquela criança recém-nascida se revela, uma vez por todas, a grandeza do amor de Deus Pai que “amou tanto o mundo que deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Por bonitos que sejam os enfeites natalinos, incluindo o Papai Noel brincalhão, as árvores e tudo mais, não teria sentido para um cristão esquecer, desvalorizar ou confundir tanta exterioridade com o fato que o Natal é de Jesus, o Filho de Deus, obra do Espírito Santo em Maria. Enviado pelo Pai “não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17).
Cabe a nós, cristãos, celebrarmos a alegria do Natal à luz da nossa fé, na contemplação e comunicação de um “mistério” que supera todos nós, mas que nos envolve e nos salva das armadilhas do consumo, da superficialidade e das decepções humanas. O Deus no qual confiamos, não brincou de salvador, comprometeu-se pessoalmente, fez da sua vida um dom até o seu último suspiro e continua a propor a si mesmo como o sentido maior e mais profundo da existência humana. O Natal de Jesus é a festa de quem ainda sabe maravilhar-se, de quem continua “esperando contra toda a esperança” (Rm 5,18), de quem caminha “como se visse” o invisível (Hb 11,27). Vale a pena ceder a ele o nosso quarto, o mais íntimo do nosso coração. Para que nos ensine sempre, de novo, a amar.

Os vizinhos

Conta Madre Teresa de Calcutá: “Certa noite, um senhor veio na nossa casa para pedir comida para uma família hindu com oito filhos. Peguei um pouco de arroz e logo fui para lá. Pelos rostos das crianças, vi que estavam com muita, muita fome. No entanto a mãe pegou o arroz, o dividiu em duas partes e saiu. Quando voltou perguntei a ela: ‘Onde foi? O que fez?’ A resposta foi de poucas palavras: ‘Eles também estavam com fome’. Eram os vizinhos da porta do lado, uma família muçulmana, e ela sabia que estavam com fome. Eu não fui buscar outro arroz naquela noite. Quis que experimentassem a alegria de doar. Não fiquei surpreendida que aquela mãe sentisse o desejo de doar. O que me surpreendeu foi que ela soubesse que eles também estavam com fome. Nós também sabemos? Temos tempo de saber? Temos tempo ao menos para sorrir a alguém?”

No terceiro domingo de Advento, encontramos um evangelho onde ecoa uma única pergunta feita por pessoas diferentes a João Batista: o que devemos fazer? As respostas mudam conforme os questionadores: as multidões, os cobradores de impostos e os soldados. No entanto também a resposta pode ser considerada uma só: aprender a partilhar comida e roupa com quem não tem, não abusar do próprio ofício, do poder ou da força, ser honestos nas cobranças e rigorosos na verdade. Um convite claro ao respeito à vida dos irmãos, praticando a solidariedade e a lisura. Quase uma antecipação do mandamento evangélico do amor; sem dúvida, um bom começo para acolher a novidade do Messias Salvador, que João Batista estava anunciando. Nesse sentido, é importante a resposta do próprio João a quem o indagava para saber se era ele mesmo o grande espe rado. “Não sou digno” diz o Precursor. Mais tarde, Jesus reconhecerá a missão profética do Batista e a sua grandeza entre os “nascidos de mulher” (Lc 7,24-28).

Voltamos à primeira pergunta que os diferentes grupos fazem a João Batista: “o que devemos fazer?” Nos versículos anteriores do evangelho, lidos domingo passado, o convite era para a conversão dos pecados. Com essa nova pergunta, fica claro que a verdadeira conversão não consiste em meras declarações ou num banho penitencial e purificador no Rio Jordão. Sem mudança de vida, de escolhas e atitudes, não há novidade nenhuma. Maquiagem exterior ou roupa nova, não transformam o nosso interior. Na prática, continuamos a pensar e agir como antes, presos em nossos preconceitos, desconfianças e medos. Por isso, uma conversão séria exige tempo, esforço e perseverança, mas também reconhece que, antes de tudo, é dom e ação do próprio Deus. O que cabe a nós é manifestar o desejo de mudanç a e aceitar as consequências. Essas podem ser o afastamento dos amigos anteriores, o desprezo de quem não entende as nossas novas escolhas, a perseguição de quem se considera prejudicado por não compactuarmos mais com planos e costumes antes tolerados, mas agora inaceitáveis para nós. Quem entra no caminho da conversão deve confiar mais nas consolações de Deus que nos aplausos dos homens. Para nós, cristãos, o “fazer” ou agir da nossa vida é norteado pelos princípios da “moral”, que dizem a respeito do que é entendido como bem ou como mal. Mas quem decide isso? E, sobretudo, na base de que? Existem normas universais válidas para todos e em qualquer lugar? Para muitos o bem e o mal, o certo e o errado são decididos pela maioria. Jovens e adultos justificam suas escolhas dizendo: – Todos fazem assim! Como se o número de quem age d aquela forma, e que sempre imaginamos muito grande, fosse suficiente para torná-la justa e boa. Um exemplo fácil, nos dias de hoje, são a vantagem e o lucro. Se eu ganho, o meu agir é bom. Talvez o seja para mim, mas eu não vivo isolado dos demais e sou sempre responsável pelas consequências, às vezes prejudiciais, para os outros. Para nós cristãos, continua valendo a “regra de ouro” do evangelho: “Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também a eles. Isto é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). Sem amor não há conversão. Nunca ligaremos para a fome dos vizinhos.

As bananas do monge

Um viajante resolveu passar algumas semanas num mosteiro do Nepal. Certa tarde, entrou num dos muitos templos do mosteiro e encontrou um monge sorrindo, sentado perto do altar.
– Por que o senhor sorri? Perguntou ao monge.
– Porque entendi o significado das bananas, disse o monge, abrindo a bolsa que carregava e tirando uma banana podre de dentro. – Esta é a vida que passou e não foi aproveitada no momento certo, agora é tarde demais. Em seguida, tirou da bolsa uma banana ainda verde. Mostrou-a, tornou a guardá-la e disse: – Esta é a vida que ainda não aconteceu, é preciso esperar o momento certo. Finalmente, pegou uma banana madura, descascou-a e, dividindo-a disse: – Este é o momento presente. Saiba vivê-lo sem medo.
No segundo domingo de Advento, encontramos João Batista “pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados”. O evangelista Lucas coloca este acontecimento numa determinada situação histórica, citando os nomes das autoridades do tempo, a começar pelo imperador romano até os sumos sacerdotes da época. Essa é uma primeira maneira para nos dizer que a nossa vida é feita de pessoas e acontecimentos limitados no tempo. Não adianta se refugiar no passado, que não volta mais, ou tentar fugir para um futuro que ainda não existe. Isso significa que cada um de nós deve enfrentar o seu presente com liberdade e responsabilidade, aprendendo a tomar decisões e, assim, dar um rumo sensato à própria vida.
Com efeito, deveríamos ter aprendido com os erros e os acertos do passado. Também já sabemos que, muito do que colheremos no futuro, depende daquilo que já semeamos ontem e daquilo que estamos semeando hoje. Evidentemente toda decisão de “conversão” da nossa vida é tomada no presente; no entanto ela foi preparada no passado e se sustenta somente se acreditarmos que é urgente mudar algo para que aconteça o melhor no futuro.
Na prática, essas são as grandes perguntas da vida que, antes ou depois, vamos ter que enfrentar se não quisermos desistir da nossa inteligência e humanidade: de onde viemos e para onde vamos. Se, por exemplo, temos medo de Deus, ou achamos inútil acreditar e confiar nele, nós mesmos poremos obstáculos – valas e montanhas – para afastá-lo e tirá-lo da nossa vida. Basta substitui-lo com qualquer um dos ídolos deste mundo para trilhar outros caminhos na vida em busca do sucesso, do dinheiro e do nosso exclusivo bem-estar. Ao contrário, talvez já percebemos que o sentido mais bonito da vida é outro. O que nos faz mais felizes é fazer o bem e gastar mais as nossas capacidades para sermos úteis aos nossos irmãos, praticando mais a fraternidade e menos o egoísmo e a indiferença. Essas são as montanhas mais altas, que devem ser rebaixadas , e os vales mais profundos, que devem ser aterrados para podermos encontrar e experimentar o amor a Deus e ao nosso próximo.
Na mensagem aos jovens do mundo inteiro, convocando-os para a Jornada Mundial da Juventude no Panamá, em janeiro de 2019, o Papa Francisco, chama tudo isso de “revolução do serviço”. Significa aprender a doar mais do que querer ganhar sempre, a ver as grandes necessidades dos outros mais do que as nossas, talvez, bem pequenas. Tudo isso é conversão. Muda muito ou… tudo, porque junto vai a visão que temos da sociedade, da política, do dinheiro, dos pobres e sofredores. Igualmente Deus Pai e seu Filho Jesus Cristo não serão mais ideias abstratas, mas alguém vivo que nos convoca para uma grande missão, que antes de transformar os outros, iluminará a nossa vida. A Igreja também não será mais uma organização qualquer, mas uma comunidade de irmãos que juntos enfrentam os mesmos desafios e travam as mesmas lutas contra o mal e a morte. Agora, qual foi a banana que nos fez refletir mais? Espero que seja a madura, doce e gostosa. Repartida. A verde, também, logo estará pronta. E a podre? Foram as chances de bem que desperdiçamos.

O ouro do avarento

Um avarento juntou tudo o que tinha e o transformou numa barra de ouro que enterrou em seu jardim: com ele enterrou, também, sua alma e todos os seus pensamentos. Desde então, diariamente, ia inspecionar seu tesouro. Um de seus empregados, observando aquele vaivém, viu logo de que se tratava. Desenterrou a barra de ouro e levou-a. Pouco depois, o avarento foi fazer sua inspeção. Quando viu o buraco vazio, começou a se lamentar e a arrancar os cabelos. Vendo-o nesse estado, um transeunte perguntou o que tinha acontecido e, compreendendo o que afligia o avarento, disse-lhe: “Por que ficar assim desolado? Tinhas o ouro e ao mesmo tempo não o tinhas. Basta pôr uma pedra no lugar onde estava a barra de ouro e imaginar que ele está lá. Pelo que vejo, mesmo quando o ouro estava lá, não fazias uso dele”. Ter bens e não usufrui-los é mesmo que não ter.

A antiga fábula de Esopo nos ensina que ter um tesouro, mas não conhecer o seu valor ou, simplesmente, guardá-lo e não usá-lo, é como se não o tivéssemos. Assim penso que aconteça com muitos que se declaram cristãos, mas, depois, apressam-se a dizer que não são praticantes. Pode ser que, para desculpá-los, nunca tenham tido a possibilidade de apreciar, de verdade, o valor do presente que receberam quando foram batizados. Ou, apesar de achar bonito o fato de ser cristãos, por enquanto, não sentem necessidade disso para caminhar na vida. Assim a luz da fé fica escondida e não lhes serve para nada.

Com o primeiro domingo de dezembro, iniciamos o novo Ano Litúrgico e o Tempo de Advento, os dias que nos preparam para o Natal. Se fosse pelo comércio, já estaríamos celebrando as Festas de Fim de Ano, mas, como cristãos, nos damos de presente um pequeno tempo para lembrar e reconhecer o valor e o sentido desse evento. A fé cristã não é algo que se adquire uma vez por todas ou que seja reduzível a algumas questões doutrinais. A lista de verdades que repetimos de cor, quando rezamos o Credo, são mais que afirmações, são, perdoem a comparação, quase que a carteira de identidade do cristão, que se reconhece com filho amado daquele Deus no qual professa acreditar.

Como os traços de uma pessoa vão se formando ao longo da vida e são o resultado de herança biológica, mas também da educação recebida, sobretudo na formação do caráter, assim também a personalidade de cada cristão. Além disso, nós acreditamos nas maravilhas do Espírito Santo que distribui os seus dons com generosidade, dando coragem aos medrosos, sabedoria aos humildes, perseverança aos fracos. Por isso, não tenho dúvida em afirmar que a fé é um dom comparável a um tesouro preciosíssimo, mas do qual nem todos sabem apreciar o valor e a serventia na própria vida. Se, depois, à Fé juntamos a Esperança e a Caridade, também dons do Pai, nada falta ao cristão para cumprir a sua missão de paz e de amor ao longo dos poucos dias que passa neste mundo. No entanto &eacut e; fácil esquecer ou desvalorizar a fé, jogá-la fora ou deixá-la num canto, achando-a inútil ou até um empecilho para as próprias ambições individuais. Talvez, como muitas vezes acontece, descobrimos o valor de alguém, ou de alguma coisa, quando a perdemos.

A Igreja, como uma boa mãe, tem muita paciência e repete sempre de novo o anúncio da fé e do amor de Deus. Proclama de muitas formas a grandeza e a misericórdia do Pai, a obediência amorosa e exemplar do Filho e a incansável animação do Espírito Santo, fogo de toda missão. Se recomeçamos com o Tempo de Advento e, depois, com o Natal é porque a primeira descoberta do amor de alguém para nós é o sua atenção, a sua aproximação gratuita, sem cobrança ou interesse. Pura generosidade. Mais ainda quando, conscientemente ou não, gritamos por socorro, perdidos e confusos nas encruzilhadas da vida. Na escuridão, uma luz é sempre bem-vinda. A luz da fé, por fraca que seja, já serve para encontrar o caminho rumo ao único bem insubstituível, para encontrar o qual vale a pena deixar todo o resto: o próprio Deus e o seu amor infinito. Pensar que uma pedra e a nossa imaginação resolvem é pura ilusão. O verdadeiro Deus não tem substituto.

O Ano Nacional do Laicato 2

No último domingo de novembro, deste ano, celebramos a Festa de Cristo Rei e concluímos o ano litúrgico. Logo iniciaremos, com o Tempo do Advento, um novo caminho, naquela busca incessante da santidade que é o chamado de todos os batizados. Mais uma vez, neste domingo concluiremos, um “ano temático”, o Ano Nacional do Laicato, que teve o seu início também na Festa de Cristo Rei de 2017. No evangelho deste dia, no diálogo com Pilatos, Jesus afirma ser “rei”, mas de um reino todo especial, um reino que “não é daqui” (Jo18,36). Para este “reino” diferente não valem os critérios e as medidas deste mundo que passa. O evangelista João nos apresenta Jesus, totalmente despojado de qualquer poder humano, machucado e já condenado pelo Sinédrio, numa posição “real”, altiva, em condição de responder com segurança aos questionamentos do todo poderoso representante do Império Romano. São os contrastes chamativos do evangelho de João. Por exemplo, Jesus sem balde, oferece “água viva” à samaritana (Jo 4). Com cinco pães e dois peixes, ele satisfaz a fome de cinco mil homens (Jo 6). Agora sem exército algum, lembra a Pilatos que o poder, que ele acredita ter, lhe foi dado do alto e, por isso, um dia irá perde-lo (Jo 19,11).

Todos os reinos e os poderosos deste mundo, com todas as suas riquezas e seus abusos irão passar, mas o “Reino” que é de Deus, aquele que somente quer reinar na vida e nos corações dos seus amigos, na liberdade e na alegria do amor, nunca acabará. Com Jesus e com a sua Páscoa, este “Reino” já começou, já está no meio de nós (Lc 17,21). O Reino da justiça, do amor e da paz, acontece na vida, na história humana, dentro e fora da Igreja , tem o alcance da misericórdia do Pai que não deixa ninguém longe do seu amor.

Lembrarei agora os legados do Ano Nacional do Laicato para que possamos todos dar continuidade à animação e à reflexão que esse tempo especial nos trouxe.

O primeiro legado é o esforço para ter em cada diocese e prelazia do Brasil o Conselho Diocesano de Leigos. Não será uma nova pastoral ou um novo organismo. Será um espaço de encontro das várias e ricas expressões do laicato católico. Vale lembrar as Comunidades Eclesiais de Base, com todos os seus animadores e animadoras, as Pastorais, os Movimentos e as Novas Comunidades. É dom do Espírito Santo realizar de maneira diferente a mesma e única missão da Igre ja. Vivemos tempos difíceis para a evangelização, que nos pedem colaboração e união das forças. Uma Igreja dividida ou ocupada em disputas não somente escandaliza e afasta, mas, sobretudo, deixa de cumprir a contento a missão pela qual o Senhor Jesus a chamou: ser testemunha de Cristo “até os confins da terra” (Atos 1,8).

O segundo legado é o empenho para que aconteça o mais rapidamente possível uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública brasileira. Pagar as próprias dívidas é questão de honestidade e justiça. No entanto quando a dívida se torna uma extorsão, quando pode ser renegociada ou ainda, talvez, em boa parte já foi paga, exigir uma auditoria cidadã, ou seja, pública e acessível a todos, não significa fugir das próprias responsab ilidades ou querer dar um calote, mas encontrar uma possível saída honrosa de um negócio vantajoso só do lado dos credores. Com efeito, entendemos muito bem que, afinal, o pagamento da enorme dívida pública, recai sobre as costas do povo mais necessitado daquelas políticas públicas (saúde, educação…) cujos recursos estão sendo cortados com a desculpa da dívida. Como cidadãos e cristãos não podemos compactuar com uma situação claramente injusta e prejudicial para esta e as próximas gerações.

Um último lembrete. O tema do Ano Nacional do Laicato foi: “Cristãos leigos e leigas, sujeitos na ‘Igreja em saída’, a serviço do Reino”. E o lema: “Sal da Terra e Luz do Mundo” (Mt 5,13-14). Não precisa explicar mais. O Reino acontece com a participação e a colaboração responsável, consciente e generosa de cada cristão e cristã. Somos todos membros ativos do único Povo de Deus, na diversidade dos dons e dos minist& eacute;rios, mas sempre em comunhão, diálogo e fraternidade. Para o bem de todos.