Dom Pedro Conti

Teoria e prática

 

Um famoso palestrante ganhava a vida como especialista em educação. O auditório lotava para ouvir suas orientações. Título da palestra: “Os dez mandamentos para educar os filhos”. Tinha resposta para tudo. Era solteiro e sem filhos. Um dia, casou-se com a mulher dos seus sonhos e nasceu o primeiro filho. Diante da nova realidade, mudou o título da palestra: “Dez regras de ouro para a educação dos filhos”. O tempo passou e o palestrante tornou-se pai pela segunda vez. Continuou a dar palestras, com mais humildade. O título agora era: “Dez sugestões para educar os filhos”. A autossuficiência foi substituída pela humildade. A teoria precisou levar em conta a prática.

 

No domingo após Pentecostes, festejamos a Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um único Deus em três pessoas. Usamos para essa realidade divina a palavra “mistério” não porque seja simplesmente incompreensível em si, mas porque sendo algo que diz respeito a Deus, ele estará sempre além dos nossos raciocínios e das nossas experiências. Contudo, nós cristãos acreditamos que foi o próprio Deus a se revelar como Pai, Filho e Espírito Santo e, se assim ele quis ser reconhecido e amado, este “mistério” deve ter um valor e um sentido para a nossa fé e, mais ainda, para a nossa vida. De fato, a partir das Sagradas Escrituras não é difícil perceber como Deus se fez conhecer, digamos, aos poucos, com “acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si” (Dei Verbum n.2). É possível vislumbrar alguma antecipação da Santíssima Trindade já no Antigo Testamento, mas é somente no Novo que nos é revelado o projeto amoroso do Pai que envia o seu Filho. Este comunica aquilo que “ouviu” do Pai (Jo 15,15)  e nos ensina a confiar e a orar chamando-o, nós também, de “pai nosso”.  Por sua vez, o Filho doa aos seus discípulos o Espírito Santo e garante que ele nos conduzirá no conhecimento da verdade (Jo 16.13). No trecho do evangelho de Mateus, proclamado neste domingo, escutamos Jesus enviando os discípulos em missão e a batizar todos os povos “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19).

 

Essa “autorrevelação” de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo nos permite afirmar que o nosso Deus é um “mistério de unidade e de amor” ou, para usar uma palavra que resume tudo isso: um “mistério de comunhão”. Com efeito, para amar precisa ter alguém diferente de nós que possa ser amado e nos amar também. Um solitário não teria ninguém para amar e ser amado. Ao mesmo tempo, o amor realiza algo novo nas pessoas que se amam, o encontro se torna cada vez mais profundo e entre elas surge uma união impensável antes. Outra característica de uma amor verdadeiro é a necessidade de se comunicar, de se expandir (ou “transbordar”, como diz papa Francisco) para que outros participem dessa alegria. O nosso Deus é assim. Na sua absoluta perfeição e na sua plenitude de amor, ele não precisava de nada, mas quis que outros o conhecessem e experimentassem a maravilha do seu amor-comunhão. Então “Deus criou o ser humano à sua imagem, a imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Por isso, nós acreditamos que no fundo do coração de todo ser humano existe uma grande sede de amor, unidade e comunhão também se, muitas vezes, experimentamos o mal como divisão, conflito, exclusão do outro. Mas o projeto do nosso Deus, que é amor-comunhão, só pode ser o de uma humanidade unida e fraterna. Existimos para nos ajudarmos uns aos outros, para caminharmos juntos e não para desperdiçarmos as nossas capacidades no ódio ou na indiferença. Tudo isso parece uma bela teoria, algo inalcançável. No entanto, se lembramos, as horas mais felizes das nossas vidas foram, com certeza, alguns momentos de paz e de união das nossas famílias, das nossas comunidades ou quando povos inteiros depuseram as armas e as trocaram pela colaboração e a ajuda. Não adianta fazer palestras bonitas sobre o amor, a paz e vida fraterna, se não passarmos da teoria à prática. Só poderemos descobrir um pouco da maravilha da Santíssima Trindade praticando a comunhão no dia a dia, com muita humildade, mas também com coragem e determinação.

 

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A fonte

 

Durante as férias, uma família, que morava em uma  grande cidade, foi passear num bosque. Todos admiravam a altura das árvores, o perfume e a variedade das flores. Depois de uma boa caminhada, encontraram uma fonte que brotava da rocha. Na pedra, estava esculpido: “Aprendam de mim!”. O pai perguntou:

 

_ O que podemos aprender com esta fonte? A mãe foi a primeira a falar:

 

–  Esta fonte ensina a persistência. Não desiste. Nasce na profundidade da terra, brota da rocha e vai seguindo o seu caminho até chegar ao mar. A filha apontou a pureza da água e a sua gratuidade:

 

_ A fonte é generosa, se oferece a quem tem sede e nada exige por isso. Para o filho, a fonte servia a todos sem distinção:  – Ela serve aos amigos, aos estranhos, às aves, aos animais, aos insetos…Finalmente o pai observou:

 

– Cada um aprende alguma coisa, de acordo com sua experiência e o seu coração. A fonte é a mesma. Os corações é que são diferentes.

 

Cinquenta dias após a Páscoa, chegamos ao Domingo de Pentecostes e celebramos, acompanhando o livro dos Atos dos Apóstolos, o dom do Espírito Santo derramado sobre os discípulos reunidos. O evangelho de João fala do dom do Espírito “ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (Jo 20,19) ou seja, no mesmo dia de Páscoa. Mas já na cruz, ao morrer, Jesus “entregou o espírito” (Jo 19,30). Cada evangelista tem o seu jeito e as suas motivações para nos comunicar a mensagem: o Divino Espírito Santo é o último “dom” de Jesus aos seus amigos, é o cumprimento da sua promessa de não deixá-los órfãos na tarefa da missão (Jo 14,18). Por isso, para o autor do livro dos Atos dos Apóstolos, é o Espírito Santo o protagonista da difusão do Evangelho. É ele que orienta as decisões, acompanha os apóstolos e os sustenta nas dificuldades.

 

A solenidade de Pentecostes é sempre a oportunidade para refletirmos sobre a presença viva do Espírito Santo em nossa vida pessoal e na vida das nossas comunidades. No caminho sinodal, proposto com coragem pelo papa Francisco, somos convidados à escuta uns dos outros e todos juntos à escuta do Espírito Santo. Com efeito, todos nós percebemos que a nossa Igreja deve estar em constante renovação e reavivamento. Numa sociedade que muda rapidamente, métodos e linguagens de outros tempos precisam ser atualizados sem perder, evidentemente, o mais importante: a fidelidade à pessoa de Jesus Cristo e à sua mensagem reveladora e salvadora. Temos uma história milenar de santidade, evangelização e martírio, mas, a cada mudança de época, somos desafiados a encontrar formas melhores para comunicar a novidade do Evangelho aos homens e às mulheres deste novo tempo. Contamos com grandes exemplos, com a Tradição viva, mas, sobretudo, devemos dar atenção aos “sinais dos tempos” – situações, pessoas e formas de pensamento – através dos quais, junto com seus “ministérios” e “carismas”, o Divino Espírito Santo continua a sustentar a sua Igreja. Precisamos melhorar no diálogo entre nós, para superarmos, também, dentro das nossas comunidades as polarizações que destroem a comunhão e aquelas formas de saudosismos  que nos impedem de abrir novos caminhos. A página de Pentecostes do livro dos Atos para apresentar a chegada do Espírito Santo usa as imagens bíblicas do vento e do fogo. Tomo a liberdade de lembrar mais uma imagem do mesmo Espírito, usada por Jesus: a  da água. Lemos em Jo 7,37-39: “No último e principal dia da festa (das Tendas), Jesus, de pé, exclamou: ‘Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim. Conforme diz a Escritura: do  seu interior fluirão rios de água viva’. Ele disse isso, falando do Espírito que haveriam de receber os que cressem nele; pois não havia ainda o Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado”. Jesus é a única e inesgotável “fonte”. Todos teremos sempre muitas coisas para aprender com ele. No entanto, aqueles que saciarem a sua sede  nessa fonte, tornar-se-ão, por sua vez, fontes capazes de satisfazer a sede de outros. A água-Espírito Santo, corre livremente, nunca cansa de se doar a todos, é generosa e gratuita. É a água do amor, da sabedoria, da comunhão. Talvez sejamos nós a ter pouca sede dela.

 

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Mas eles não falharão

 

Eis uma história totalmente imaginária. Quando Jesus ressuscitado chegou ao céu, houve uma grande festa marcada por cantos e muita alegria. Finalmente, os anjos tiveram a oportunidade de falar com Jesus. Um deles observou:

– Agora sim, o Reino de Deus foi implantado na terra! Para a surpresa de todos, Jesus respondeu:

– O Reino apenas começou. Resta agora a tarefa de vivenciá-lo. O anjo quis saber:

– E quem irá cumpri-la? Jesus respondeu:

– Deixei lá um punhado de homens e mulheres que levarão essa missão até o fim.

– Mas, e se eles não assumirem a tarefa com seriedade? Perguntou o anjo preocupado.

– Nesse caso, o Reino não acontecerá – disse Jesus. Mas, para espantar os temores, o Mestre completou com segurança:

– Mas eles não falharão!

Neste domingo, celebramos a solenidade da Ascensão do Senhor. Os evangelhos e, neste caso, também os Atos dos Apóstolos, não apresentam tanto raciocínios ou questões teológicas, usam a forma da narração para nos ajudar a entender e acreditar. Cabe a nós perceber a mensagem. Nós, cristãos, acreditamos que com a morte de Jesus na cruz encerrou o tempo da humanidade do Deus Filho que Deus Pai tinha enviado. Cumprida a sua missão, Jesus ressuscitado participa agora da glória do céu. Não será mais possível, portanto, encontrá-lo nesta nossa realidade material, passageira e mortal, como naqueles anos que passou neste mundo. Essa é a primeira consideração que devemos lembrar para entender o que o evangelho de Marcos (16,19) e os Atos dos Apóstolos (1,9) querem nos dizer com as palavras “Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus”. Antes desse momento, seja no evangelho, seja nos Atos, Jesus envia os discípulos “pelo mundo inteiro” ou “até os confins da terra”. Isto é, ele quer que a obra por ele iniciada continue envolvendo, a partir de então, todos aqueles e aquelas que acreditarem nele e no valor da sua proposta. Os discípulos têm uma “boa notícia” que devem anunciar e testemunhar: a vitória do amor e da vida sobre o mal e a morte. A difusão e a construção do Reino de Deus, iniciado com a própria pessoa de Jesus, terá que passar pelo caminho da cruz para chegar à sua plena realização. Por isso, o evangelho de Marcos, deste domingo, fala de ameaças de “demônios”, serpentes e venenos mortais. Mas os demônios serão expulsos, os venenos não causarão mal, a saúde voltará com a imposição das mãos e com novas línguas serão alcançados novos povos. Será uma verdadeira e grande missão, ao longo dos tempos e no meio da humanidade, até a volta do Senhor (At 1,11), um término a nós desconhecido. O último versículo do evangelho de Marcos, lido neste domingo, conclui:

“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (Mc 16,20).

A Ascensão é a festa da confiança do Senhor Jesus nos seus seguidores. Ele nos conhece muito bem. Sabe das nossas fraquezas, desânimos, altos e baixos. Contudo nos entregou a continuidade do Reino que é de Deus, sem dúvida alguma, mas também se torna “nosso”, porque somos chamados a colaborar na difusão e na construção dele. (cfr. Oração Eucarística V). Parece uma tarefa superior às nossas forças. No entanto, as parábolas do Reino que encontramos nos evangelhos nos falam de algo muitas vezes simples ou escondido que cresce e é descoberto no seu grande e misterioso valor. Deus fez o mesmo com a criação; a entregou em nossas mãos para que cuidássemos dela e pudesse ser um jardim de paz e fraternidade. Estamos muito longe de realizar isso, mas cada dia somos obrigados a reconhecer que o único caminho para a sobrevivência da vida neste planeta exige esforço, boa vontade, união de todos. Digamos que Deus fez o necessário, criou até os jardineiros inteligentes para que se envolvessem na bondade e na beleza da obra. Igualmente para o Reino de Deus. Jesus começou, mas não pode impor a nossa colaboração, porque respeita a nossa liberdade. Somos ainda só um “punhado” de homens e mulheres? Vamos falhar? Não. Ainda temos muitos sinais da sua presença.

 

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As mãos que oram

 

Esta é a história de um quadro famoso de Albrech Duerer. No fim do século XV, dois amigos desejavam ardentemente tornarem-se pintores. Precisavam estudar, mas ambos eram muito pobres. Por isso, decidiram que um ficaria trabalhado até que o outro se formasse, depois de vender os primeiros quadros, trocariam. Albrech foi o primeiro a estudar e o outro trabalhou num restaurante. O tempo passou. Quando chegou a vez do amigo estudar para ser pintor, ele percebeu que, devido ao duro trabalho, as suas mãos já não tinham mais a agilidade necessária para segurar a palheta e os pincéis. Teve que desistir do seu sonho. Certo dia, porém, o já conhecido pintor Albrech Duerer viu o amigo ajoelhado de mãos postas rezando. Comovido, o artista decidiu: “Jamais poderei devolver a essas mãos a agilidade que perderam. Mas posso demonstrar ao mundo a gratidão que sinto pelo que meu amigo fez por mim: pintarei essas mãos como as vejo agora. Pode ser que ao vê-las o mundo aprecie o que elas fizeram. Talvez sirvam de inspiração a outros para realizarem atos de generosidade e desprendimento”.

 

No Sexto Domingo da Páscoa, continuamos com a leitura de um trecho do evangelho de João. Desta vez, o forte pedido de Jesus para “permanecer” unidos a ele é exemplificado através da alegria plena de quem entende o valor das suas palavras, do mandamento do amor e da amizade de quem está disposto a dar até a sua própria vida pelos amigos. O amor que Jesus pede é exigente. Ele nos deixa o mandamento de nos amarmos uns aos outros “como” ele nos amou (Jo 15,12). Um amor que reconhecemos total, fiel até o fim. Um amor que – sabemos – se antecipa também quando não é correspondido por nós. Isso nos parece tão acima das nossas forças, que somos tentados a desistir. O importante é que tenhamos Jesus à nossa frente, como modelo e não nos conformemos com a mediocridade e a acomodação. Renunciar de antemão a amar mais seria esvaziar e tornar inútil o amor de Jesus, seu exemplo, sua proposta de vida. Seria viver uma vida fechada em nós mesmos, talvez somente cobrando o amor dos outros sem nenhuma disponibilidade de nós mesmos tomarmos a iniciativa de amar. Por isso, Jesus diz que o amor maior é aquele de quem está disposto a dar a sua própria vida pelos amigos. Com efeito, o amor verdadeiro não tem como finalidade a própria satisfação, o próprio orgulho, o reconhecimento e os aplausos. Esse amor deve ser um dom para os amigos – e até para os inimigos – como lemos no evangelho de Mateus (5,43-48)  para que eles possam ter uma vida melhor, mais digna, ou simplesmente, mais humana e fraterna.  Jesus sempre doou vida, quando curava os doentes, acolhia os excluídos e oferecia o perdão aos pecadores para que pudessem recomeçar uma nova existência, tendo experimentado o seu amor compassivo e misericordioso. Cabe a nós não deixarmos passar as oportunidades que temos de doar algo praticando a solidariedade e a partilha. No entanto, não têm bens materiais ou dinheiro que possam substituir o maior dom possível que é, justamente, a capacidade de sermos nós, ao mesmo tempo, o dom e os doadores.

 

Jesus, que outras vezes chamou os discípulos para o serviço a ele, dessa vez os chama de “amigos” e não de servos, porque não é mais questão de obedecer às ordens de alguém superior, mas de colaborar livremente e por amor ao projeto de salvação do Pai que ele veio manifestar. Por fim, Jesus diz que não foram os discípulos a escolhê-lo, mas foi ele a chamá-los ao seguimento para serem enviados e produzir muitos frutos de paz e justiça. Sendo assim, deveríamos agradecer muito por fazer parte da obra do Reino, deixar de pensar no que ganhamos ou perdemos fazendo o bem e fazê-lo porque é isso que dá sentido à nossa vida. Se o amigo do pintor Albrech Duerer tivesse pensado antes e avaliado os riscos que corria, provavelmente não teria trabalhado tanto pelo amigo, mas então não seria mais uma amizade fiel à palavra dada. Talvez a força dessa generosidade lhe veio da oração e mereceu que as suas mãos orantes fossem imortalizadas numa obra que desafia os tempos. Rezemos pelos amigos e para sermos mais amigos ainda.

 

 

Para que a vida seja preciosa    

 

“Eu observa… o modo como meu pai olhava um passarinho deitado de lado à margem da calçada perto da nossa casa.

– Está morto, pai? Eu tinha seis anos e não sentia a coragem de olhá-lo.

– Por que morreu?

– Tudo o que vive, deve morrer.

– Tudo?

– Sim .

– Tu também, papai? E mamãe?

– Sim

– E eu?

– Sim, disse ele. Depois acrescentou:

Mas será talvez depois de ter vivido uma boa e longa vida, meu filho.

– Eu não consigo compreender. Fiz um esforço para olhar o passarinho.

– Tudo o que vive, será um dia como esse passarinho? Por quê? Perguntei.

– Foi assim que o Eterno fez o seu universo, meu filho.

– Por quê?

– Para que a vida seja preciosa, meu filho. Uma coisa que tu possuas para sempre, nunca é preciosa.”

No evangelho do Quinto Domingo da Páscoa, encontramos mais uma comparação que Jesus faz dele mesmo e do Divino Pai. Ele diz: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor” (Jo 15,1). A exemplificação continua com o trabalho do Pai que corta os ramos improdutivos e limpa os frutíferos para que produzam mais. Para serem produtivos os ramos devem “permanecer” sempre unidos ao tronco da videira, que é o próprio Jesus. Separados dele, os ramos não produzem frutos, aliás, não podem “fazer nada” (Jo 15,5). Sem “união” com Jesus, os ramos secam, são lançados ao fogo e queimados. A união dos ramos com a videira acontece através da palavra de Jesus que “permanece” nos discípulos. Consequência dessa união será a fartura de frutos para a glória do Pai e a certeza de serem atendidos em suas invocações.

Nesse trecho do evangelho de João, duas palavras são repetidas inúmeras vezes: o verbo “permanecer” e a palavra “frutos”. Devem ser importantes. Entendemos que o sentido do “permanecer” “com” se ou, melhor, “em” Jesus não quer dizer ficar parados como se isso correspondesse ao estar sempre num mesmo lugar. Ao contrário: é um participar ativamente daquela vida humano-divina que o Mestre viveu e ensinou. Por isso, é muito clara a comparação com a videira e os ramos. Algo vital passa do tronco para os ramos para que esses possam desenvolver e produzir frutos. Sem essa “linfa” os ramos secam.

Contudo, há frutos que podemos, ou devemos, “produzir” juntos, porque a união dos cristãos seria o sinal visível e maravilhoso que estamos unidos, acima de tudo, porque seguidores do único Senhor e Mestre. As nossas divisões enfraquecem o  testemunho daquilo que dizemos acreditar. Quando falamos mal dos nossos irmãos na fé, quando nos separamos entre nós, não ficamos afastados somente dos demais, acabamos ficando longe do próprio Jesus. Não adianta cobrar paz, justiça, união entre as nações da terra se usamos o nome dele para defender os nossos particularismos. Divididos, ou até contrapostos, vamos secar e morrer. Parece ouvir de novo a oração de Jesus na última ceia: “Pai que todos sejam um, como tu Pai estás em mim, e eu em ti” (Jo 17,21).

Talvez a “comunhão” entre nós e com Jesus seja, ao mesmo tempo, fruto e condição para produzir com abundância outros frutos de bem para toda a humanidade. A comparação da videira e dos ramos me parece ser um convite sério a participar da vida comunitária. Ainda há cristãos e cristãs que teimam em ficar isolados, acham que a fé e a vida cristã seja algo individual que não precisa ser partilhado com outros irmãos e irmãs. Parece que não acreditam que Jesus está vivo e presente na comunidade que celebra e mantém viva e atual a sua memória. Jesus nos evangelhos fala muito de “vida”, vida “eterna”, vida “plena”. Se a vida que passa é um bem tão precioso, justamente porque não a possuímos para sempre, o que pensar da vida plena, da vida de Deus, da verdadeira vida, que podemos perder afastados de Jesus e dos irmãos? Vamos caminhar juntos!

 

Os nomes de Deus

 

Conta-se que os monges do Tibet, nas montanhas da Ásia, procuravam desde séculos reunir em um grosso código todos os nomes com que os homens, pelo mundo inteiro, tivessem designado Deus. Tratava-se de, aproximadamente, nove bilhões de nomes a serem consignados naquele volume. O trabalho parecia muito lento. Estimavam que fossem necessários 200.000 anos para  concluir a tarefa. Um deles, então, lembrou-se de uma máquina que podia ajudá-los. Alugaram um computador que trabalhava rapidamente e imprimia os nomes. Os monges mal tinham tempo para colar os nomes no enorme livro. Uma dúvida, porém, começou a surgir: “Por que procuramos reunir todos os nomes de Deus?”. Eles perceberam que essa era, e ainda é, a busca de todo ser humano: chegar a designar Deus pelo seu nome verdadeiro. A vida não tem outro objetivo a não ser a procura de Deus. Conhecê-lo e encontrá-lo é a maior alegria.

 

No Quarto Domingo da Páscoa, a liturgia da Palavra nos oferece um trecho do capítulo 10 do evangelho de João. Lá, encontramos um “nome” com o qual Jesus se apresenta e com este nome podemos reconhecê-lo e invocá-lo. Ele disse, dele mesmo: “Eu sou o Bom Pastor” (Jo 10,11). Podemos então chamar Jesus assim, sobretudo se, como lemos no evangelho, ele está em contraposição ao “mercenário”, ou seja, àquele que se importa mais com sua vida e seu lucro do que com o bem-estar das ovelhas. Quando chega o lobo, na hora do perigo, o mercenário foge e abandona o rebanho. O verdadeiro pastor, que é o dono do rebanho, está pronto a dar a própria vida para defender as ovelhas ameaçadas. O Bom Pastor e as ovelhas se conhecem de uma forma única e extraordinária comparável com a intimidade entre Deus Pai e Deus Filho, que somente podemos pensar como uma comunhão perfeita de amor. A missão do Filho é conduzir, ao único redil e ao único Pastor, também ovelhas de outros rebanhos sem mais divisões, agressões e disputas entre elas. Para que isso aconteça, precisamos escutar a voz do Bom Pastor que chama todos à unidade. Por fim, o Filho entrega livremente a sua vida para a salvação da humanidade, porque sabe que é amado pelo Pai, nele confia e a ele obedece.

 

Quantas pessoas generosas criam filhos de outros e conseguem amá-los como se fossem os próprios, apesar de encontrar enormes dificuldades para educá-los… Tem grupos de famílias que “adotam” outras famílias sem recursos ou atribuladas por doenças e calamidades. Cuidar de uma ou mais pessoas idosas, que vivem sozinhas, é uma verdadeira missão que demanda carinho e fidelidade. Cuidar de alguém que precisa, até de um animal ou de uma planta, faz bem e se tornou hoje uma terapia para curar do desinteresse, da indiferença ou de problemas ainda mais sérios. Não podemos esquecer dos “bons” pastores e pastoras que tomam conta das nossas Comunidades do interior ou das periferias, sobretudo aquelas mais afastadas, de difícil acesso ou de bairros mal-afamados e perigosos. Muitas vezes, essas pessoas que fadigam nas Comunidades, muito dedicadas e fiéis, são vistas com suspeita. São julgadas como interesseiras ou até “mercenárias”, porque os que pouco ou nada entendem de vida cristã acham impossível que exista alguém que “trabalhe” de graça para os outros ou mesmo só para a glória de Deus. Ser generosos e dar um pouco do seu próprio tempo, da sua competência, do seu zelo, parece demais fora do comum e, de fato o é, se o avaliamos com a mentalidade gananciosa e calculadora que domina a nossa sociedade. Esses nossos irmãos e irmãs não aguardam o prêmio simplesmente para mais tarde no céu. Eles sabem que fazer o bem, cuidar dos necessitados e das coisas de Deus dá gosto e alegria já nesta vida. O que virá depois será gratuidade de Deus. Eles e elas conheceram não só o nome de Jesus “Bom Pastor”, encontraram-no e seguiram o seu exemplo.

 

Uma viagem no escuro                       

 

Um pequeno avião avançava em meio à noite. De repente, caíram os sistemas de comunicação, a orientação da rota e o painel de controle apagou-se. O avião voava às cegas. Os pilotos tentaram inutilmente concertar o defeito. Já estavam em pânico e pediram à aeromoça para descobrir se entre os passageiros tinha algum técnico em eletrônica. Não tinha. Mas uma passageira levantou e foi até a cabine de comando perguntando repetidamente:

– Diga-me qual é o problema, talvez eu possa ajudar. Logo, perguntaram para ela se entendia de aparelhos eletrônicos. Se não soubesse mexer, devia voltar para o seu assento e não atrapalhar. Mas a mulher insistia e disse que sabia de algo que nunca tinha falhado no passado e que, talvez, também ajudasse naquele momento. A mulher era astrônoma. Pediu o mapa da viagem, a partida e o destino. Olhou bem para as estrelas que apareciam luminosas no céu na frente deles. Ao lado do piloto, ela conseguiu orientar o voo. Algum tempo depois, o esplendor da aurora anunciou que eles estavam salvos.

O evangelho do Terceiro Domingo da Páscoa é a continuação da página bem conhecida dos discípulos de Emaús. Os dois peregrinos, antes desanimados, após o encontro com Jesus e reconhecendo que lhes ardia o coração, quando ele falava, voltaram para Jerusalém. Contaram o que havia acontecido e como tinham reconhecido Jesus “ao partir o pão”. O evangelista Lucas apresenta, assim, mais uma “aparição pós-pascal” do Ressuscitado. Desta vez, a comunidade está reunida e Jesus age e fala para confirmar a fé dos discípulos e explica qual será a missão deles. Lembramos que o evangelho de Lucas foi escrito para os cristãos da segunda geração, ou seja, aqueles que não tinham conhecido Jesus e, provavelmente, nem os apóstolos. Portanto o que é apresentado vale igualmente para nós, porque quer responder àquelas perguntas que sempre aparecem quando queremos entender melhor a novidade da Páscoa de Jesus e aprender a acolhê-la na fé. Com efeito, não temos palavras capazes de explicar algo que não faz parte da nossa experiência comum que passa, necessariamente, pelos nossos sentidos. O Ressuscitado é um fantasma? Alguém irreal? Pura imaginação? A essa questão, o evangelista responde com o pedido de Jesus para comer junto com eles. O Ressuscitado é outra pessoa diferente daquele Jesus que morreu na cruz? Os sinais da paixão confirmam que é o mesmo Crucificado que agora está vivo, mas não com a mesma vida mortal anterior. É uma vida diferente, porque a morte está vencida pela ressurreição. Como o Ressuscitado ajuda os discípulos a acreditar? Explicando as Escrituras, ou seja, lembrando as obras de Deus do passado, as promessas antigas, mas, sobretudo, afirmando que aqueles acontecimentos confirmavam definitivamente o amor de Deus com a humanidade. Esse anúncio de conversão e perdão dos pecados deverá ser proclamado a “todas as nações”, a começar por Jerusalém. Os discípulos terão que convencer os outros com uma vida “nova”.

Essas palavras de envio para serem testemunhas “de tudo isso”, ou seja, do “evento” Jesus com sua vida, paixão, morte e ressurreição continuam atuais para nós hoje. Não temos condições de explicar a ressurreição a não ser praticando “a conversão e o perdão dos pecados”. Conversão significa vida nova, atitudes novas, capacidade de colocar o bem onde o mal toma conta, a fraternidade onde as divisões causam ódio e morte. O perdão dos pecados é o abraço alegre e misericordioso de Jesus que quer dizer  a todos: “Vá em paz e não peque mais!”. Ser testemunhas com a nossa vida de tudo isso não é um voo no escuro, sem rumo e direção. Não é acreditar num Ser superior qualquer, sem rosto e identidade. Ao contrário, é ter “os olhos fixos em Jesus”, luz que vence as trevas. Mais que confiar nas nossas “técnicas” cheias de raciocínios e palavreados, é acreditar nele e seguir o seu exemplo. É nos deixar guiar pela novidade da sua Páscoa no dia a dia, semear esperança para salvar do desespero, ser pequenas auroras de amor para salvar da escuridão da indiferença. É ser “astrônomos” de bondade.

 

 

No coração da Igreja…eu serei o amor

 

Estas são palavras de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, mais conhecida como Santa Teresinha. Nos primeiros dias, após o Domingo de Páscoa, recebemos, em Macapá, as relíquias desta Santa, uma das mais populares no mundo inteiro. Não fomos nós que escolhemos a data, foi a própria organização das celebrações dos 150 anos do nascimento dela que assim decidiu. Tivemos a possibilidade de continuar a alegria da Ressurreição de Jesus lembrando algumas características desta santa proclamada Padroeira das Missões (1927) e Doutora da Igreja(1997).

 

O mais interessante de Santa Teresinha foi a sua insistência nas “pequenas coisas” como caminho de santidade, mas com uma visão muito grande da sua própria vocação. Ela escreveu: “Compreendi que o Amor continha todas as vocações, que o Amor é tudo, que abarca todos os tempos e todos os lugares…em uma palavra, que é Eterno!”. Santa Teresinha compreendeu que só o Amor fazia agir os membros da Igreja; que se o Amor se apagasse, os Apóstolos já não anunciariam o Evangelho, os mártires se recusariam a derramar seu sangue…“Então – as palavras são dela – exclamei: Ó Jesus, meu Amor, encontrei finalmente a minha vocação; a minha vocação é o Amor. Sim, encontrei o meu lugar na Igreja, e esse lugar, ó meu Deus, fostes vós que me destes. No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor. Assim serei tudo…, assim o meu sonho será realizado”.

 

Por ocasião do 150º aniversário do nascimento de Santa Teresinha, o Papa Francisco escreveu uma Exortação Apostólica (C’est la confiance)  apresentando a atualidade do exemplo e do ensinamento desta Santa. Tudo começa com a confiança total que ela tinha no Senhor Jesus e na misericórdia do Divino Pai. Estava convencida que os possíveis merecimentos dela não tinham valor algum, tudo era dom de Deus. Deste abandono nas mãos do Senhor surge o desejo de doar a sua vida como dom total para os outros. É a confiança que nos conduz ao Amor e assim nos liberta do temor; é a confiança que nos ajuda a desviar o olhar de nós mesmos e nos torna disponíveis para procurar o bem dos irmãos. O que fez de tão extraordinário Santa Teresinha? Isso também é surpreendente. Entrou na clausura do Carmelo com 15 anos e faleceu com 24, após grande sofrimento devido à tuberculose. No entanto, buscou um caminho de santidade, “uma pequena via muito direita, muito curta; uma pequena via completamente nova”. É o “doce caminho do amor”, aberto por Jesus aos pequeninos e aos pobres, a todos. Nesse caminho das coisas pequenas, Teresinha realça sempre o primado da ação de Deus. Por isso, ela nunca usou uma expressão frequente naquele tempo: “hei de fazer-me santa”. A santidade também é fruto da confiança no Senhor.

 

Transcrevo aqui as palavras da Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre a atualidade de Santa Teresinha (n.52). “Em um tempo que nos convida a fechar-nos nos próprios interesses, Teresina mostra a beleza de fazer da vida um dom. Em um período em que prevalecem as necessidades mais superficiais, ele é testemunha da radicalidade evangélica. Em uma época de individualismo, ela nos faz descobrir o valor do amor que se torna intercessão. Em um momento em que o ser humano vive obcecado pela grandeza e por novas formas de poder, ela aponta a via da pequenez. Em um tempo em que se descartam tantos seres humanos, ela nos ensina a beleza do cuidado, de ocupar-se do outro. Em um momento de complexidade, ela pode nos ajudar a redescobrir a simplicidade, o primado absoluto do amor, da confiança e do abandono, superando a lógica legalista e moralista que enche a vida cristã de obrigações e preceitos e congela a alegria do Evangelho”. Podemos chamar Santa Teresinha de “Doutora da síntese” da vida cristã. Uma curiosidade: até o ano de 2000, havia no mundo 1.700 Igrejas dedicadas à Santa Teresinha! No Brasil, com exceção de Nossa Senhora e de Santo António, nenhum outro santo ou santa possui tamanha devoção popular. As “rosas” de Santa Teresinha são as graças de Deus que por intercessão dela continuam chegando até nós.

 

Então todos o abandonaram e fugiram

 

Chegamos à semana central do Ano Litúrgico e decisiva para a nossa fé. Se nos dias que precedem o Natal somos distraídos pelas compras e a correria de final de ano, a Semana Santa pode passar despercebida simplesmente porque estamos ocupados com nossos afazeres, no trabalho, na escola, na diversão. Talvez iniciamos a Quaresma com boas intenções, mas os compromissos e as preocupações nos fizeram esquecer os propósitos. Ainda estamos em tempo para não deixar passar, inutilmente, estes dias tão importantes para manter acordada a nossa vida de cristãos. Antes, porém, é necessária uma pequena consideração sobre os tantos gestos que faremos e as muitas palavras que ouviremos nos próximos dias. A “liturgia” que celebramos é, justamente, feita de “gestos e palavras”, porque quer  envolver inteiramente a nossa pessoa. Nós não nos comunicamos somente com palavras, usamos muitos gestos, sinais e até o silêncio transmite alguma mensagem. Não podia ser diferente com a experiência da nossa fé, porque nós acreditamos que o próprio Deus se fez conhecer através de palavras e acontecimentos e, de maneira única e extraordinária, com a vida, os gestos, as palavras, a morte e ressurreição de uma pessoa: Jesus. O convite, portanto, para esses dias, não é somente aquele costumeiro de participar das celebrações, mas de prestar atenção a tudo aquilo que a Liturgia nos propõe fazer. Perceber o valor dos sinais e interiorizar o sentido dos gestos ajuda a compreender o “mistério” humano e divino que estamos celebrando. Com os olhos e os ouvidos da fé, com o coração aberto e sincero, acompanharemos Jesus no caminho da cruz para chegar a reconhecê-lo vivo e ressuscitado no domingo de Páscoa.

 

Iniciaremos com a procissão dos Ramos cantando Hosana ao Filho de Davi, mas na leitura mais longa da Paixão do evangelista Marcos ouviremos que “todos o abandonaram e fugiram” e o povo gritando a Pilatos: “Crucifica-o”. Continuamos a ter medo da cruz, medo de perder a nossa vida, a não entender o que significa ser fiéis até o fim. Na Quinta-feira Santa, faremos a memória da última Ceia, da entrega da Eucaristia aos discípulos. Receberemos aquele Pão e aquele Vinho, o Corpo e o Sangue de Jesus, sinais da sua presença viva e memorial do seu amor sem limite e exclusões. Como não ficar tocados com o gesto do Lava-pés e as palavras-convite a seguir o exemplo do “Mestre e Senhor” que se fez servo e último de todos? Será uma lição viva para avaliar se estamos buscando poder, vantagens, bens, talvez, desprezando e prejudicando os irmãos mais pobres e humildes. Como “servir” e promover vida e dignidade para todos? Na Sexta-feira Santa, seguiremos Jesus no caminho do Calvário até aos pés da cruz juntos com Maria e o discípulo amado. Será um dia de penitência e jejum. Nos perguntaremos: como corresponder a tão grande amor e qual “salvação” nos trouxe o sangue derramado naquele momento extremo? Rezaremos por todos. Faremos uma grande oração “universal” para que a humanidade encontre o caminho da paz e da fraternidade, muito além das diversidades que nos separam e dividem. Enfim, no Sábado Santo, ao anoitecer, celebraremos a grande Vigília Pascal. Faremos memória também da Páscoa antiga, a grande noite da libertação do povo de Israel da escravidão do Egito, mas, sobretudo, celebraremos a Vida Nova que o Ressuscitado fez desabrochar em cada batizado.

 

Com a Ressurreição de Jesus, aprendemos que o sofrimento e a morte não são as últimas realidades que nos aguardam. A nossa fé deve ser uma luz que nos orienta na vida já neste mundo. Com efeito, se o medo da morte nos faz viver na defensiva para nos proteger ao ponto de agredimos ou matarmos os outros para resguardar a nossa sobrevivência, a esperança da ressurreição nos torna corajosos defensores da vida de todas as criaturas. Não viveremos mais dias buscando nos salvar sozinhos. Daremos um novo sentido à nossa vida e ela será mais plena e feliz quando nos amarmos uns aos outros, quando unirmos as forças para construir uma nova humanidade sem ódios e inimizades.

 

Este homem conhece o Pastor

 

No término de um jantar em um castelo inglês, um famoso ator entretinha os hóspedes declamando textos de Shakespeare. Disse que, a pedido, estava disposto a declamar outros textos. Um tímido padre sugeriu que ele declamasse o Salmo 23(22). O ator respondeu que faria isso somente se o padre, depois, também recitasse o mesmo Salmo. O padre, um pouquinho acanhado, aceitou o desafio. O ator interpretou o Salmo maravilhosamente: “O Senhor é o meu Pastor, nada me falta…”. Ao final, todos aplaudiram. O padre, então, também começou a recitar as mesmas palavras do Salmo. Quando terminou, não se ouviram aplausos, só um profundo silêncio. Também se viram discretas lágrimas nos rostos de algumas pessoas. O ator, depois de guardar mais um pouco de silêncio, tomou a palavra e disse: “Senhoras e senhores, espero que todos tenham percebido o que aqui se passou nesta noite: eu conhecia as palavras do Salmo, mas este homem conhece o Pastor!”.

 

No Quarto Domingo da Quaresma, encontramos um trecho do diálogo entre Jesus e Nicodemos que está no 3º capítulo do evangelho de João. É nesses momentos que Jesus abre o seu coração e explica muitas coisas. Ele diz que o Filho do Homem será “levantado” como naquele episódio da serpente de bronze, que encontramos no livro dos Números 21,4-9. Quem olhava para a serpente “ardente” era curado das mordidas mortais das cobras. O ser “levantado” é uma clara referência ao levantamento na cruz. Se quisermos viver – ou ser salvos – devemos crer em Jesus, o Filho unigênito que o Pai enviou. Ao contrário, estaremos na morte – ou condenados. A “boa notícia” é que o Filho do Homem não veio para condenar o mundo, ou seja, fazê-lo ou deixá-lo morrer, mas veio para salvá-lo e todos aqueles que nele crerem terão a “vida eterna”. O “julgamento” já está acontecendo porque “a luz” – ou seja Jesus – “veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas” (Jo 3,19).

 

Encontramos, aqui, algumas das contraposições típicas do Evangelho de João: vida e morte, luz e trevas, salvação e condenação, verdade (bem) e “más ações” e, no “mundo”, aqueles que acreditam e aqueles que se recusam a acreditar. A mensagem do evangelho é um convite à decisão que cada um deve tomar a respeito de Jesus. Como naquele tempo, ainda hoje, ninguém está condenado ou perdido de antemão. A possibilidade de conhecer Jesus e acreditar nele é oferecida a todos, mas alguns dão a preferência às trevas e odeiam a luz. Surge de imediato a pergunta: de qual “vida” Jesus está falando e de qual condenação? Porque com certeza todos nós, acreditando ou não, vamos morrer. É nessa altura que entra em campo a fé no Filho do Homem, não como um seguro contra a morte, porque ele mesmo irá morrer, mas como certeza de uma vida “eterna”, que somente Deus pode dar a quem acreditar e confiar nele. O mais importante da questão é entender que o “julgamento” do qual fala o evangelho não acontecerá após a nossa morte e que Jesus não está falando do céu, mas desta vida que passa. A fé não serve mais depois desta vida, porque poderemos já estar, ou não, contemplando as maravilhas de Deus. A fé deve ser agora, já neste mundo, aquela luz necessária para que tomemos a decisão de confiar em Jesus enviado do Pai. A vida “plena”, a comunhão com Deus, no qual resolvemos acreditar, começa aqui, no nosso dia a dia, no nosso agir à luz do bem e da verdade e não na escuridão de más ações que serão desmascaradas. A “vida eterna” ou “vida plena” que Jesus promete a quem acreditar nele, não é questão de duração no tempo, mas de intensidade da fé, da esperança e do amor, que só podem aumentar ao passo que crescemos na familiaridade com ele, seguindo os seus passos e atraídos pelo seu exemplo. Conhecer Jesus é muito mais que decorar fórmulas de fé, saber dar explicações brilhantes ou sustentar debates doutrinais. Qualquer um que tenha lido ou estudado um pouco pode fazê-lo. Crer em Jesus é arriscar sobre a sua palavra. Aprender a recitar um Salmo é fácil, conhecer e confiar no Pastor do qual o Salmo fala, é outra coisa. É uma questão de “vida”.

 

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