
Dom Pedro Conti
O caderno
Um turista parou numa pequena vila do interior. O pequeno cemitério chamou a sua atenção. Estava limpo e em ordem. Entrou. Grande foi a sua surpresa quando reparou no que estava escrito nas pedras junto aos túmulos. Depois do nome da pessoa leu: 9 anos, 6 meses e 2 dias. Uma criança, pensou. Numa outra pedra leu: 8 anos, 7 meses e 10 dias. Outra criança. Por aquilo que estava escrito, viu que eram só crianças. Ficou muito triste. Que lugar era aquele onde todos morriam tão pequenos? Uma senhora idosa, que também estava por lá, viu a aflição dele e, sorrindo, deu-lhe a explicação do mistério.
– Não fique com medo, senhor – disse ela – por aqui temos um costume antigo. Depois dos 15 anos, os pais dão de presente ao jovem um caderno. A partir daquele momento, todas as vezes que ele, ou ela, vive momentos de intensa felicidade vai anotando no caderno quanto tempo durou aquela alegria. Por exemplo: quando encontrou o amor da sua vida, quanto tempo durou a paixão? Quando se formou, iniciou a trabalhar, constituiu família, nasceu o primeiro filho… Quando fez uma viagem tão sonhada. Por quanto tempo ficou feliz pela alegria de outros? Assim a pessoa vai anotando as horas, os dias em que agradeceu pela vida, quando foi bonito viver. Quando ela morre, os familiares pegam o caderno e fazem a soma de tudo. Para nós este é o tempo que ela viveu verdad eiramente. Foram aqueles os momentos preciosos da sua vida.
Todos conhecem, acredito, a página do evangelho de João que chamamos de “ressurreição de Lázaro”. É o último dos evangelhos que, como lembrei nos domingos passados, os Catecúmenos deviam interiorizar antes do Batismo na noite de Páscoa. De novo, João nos conduz para o conhecimento de Jesus e o compromisso da fé. Dessa vez, o que está em jogo é a própria vida, como um todo, no seu sentido mais importante e profundo. À samaritana, Jesus se apresentou como o Cristo, o ungido, pronto a satisfazer plenamente a sede de amor do coração humano. Ofereceu-lhe uma água viva capaz de acabar com a aridez do egoísmo e da indiferença. Com certeza, só do amor br ota outro amor. A mulher tornou-se testemunha. Ao cego de nascença, após ter-lhe doado a visão dos olhos, ofereceu-lhe a visão da fé, condição insubstituível para acolher aquele homem tão diferente, que ensinava um Deus de perdão e misericórdia. Aquele que já foi cego, enxergou, fez o seu ato de fé e se ajoelhou aos pés de Jesus. Tornou-se adorador do Deus vivo e verdadeiro. À Marta e à Maria, as irmãs de Lázaro, Jesus não devolveu simplesmente o irmão, novamente vivo, mas ofereceu-se a si mesmo como “ressurreição e vida”. O amigo Lázaro saiu do túmulo atado de mãos e pés com os lençóis mortuários. Jesus mandou desatar os laços para que voltasse a caminhar. Vida é caminho, busca, encontro. Morte é laço que prende, fecha, mortifica.
Na simbologia do Batismo, o ainda não cristão é chamado de “homem velho”; é mergulhado na água, como se fosse um túmulo, para que saia dela “homem novo”, liberto das correntes do pecado e da morte. O Batismo é nascer de novo, “da água e do Espírito” (Jo 3,5). Nós não nascemos já cristãos, nos tornamos cristãos. Viemos ao mundo de um jeito que não tivemos a possibilidade de escolher. A vida nos foi dada e cada um carrega o seu fardo de qualidades e defeitos, risos e lágrimas. Não nascemos obras acabadas, somos seres sempre em construção. Aprendemos ao longo do caminho da vida. No entanto, a cada encruzilhada podemos escolher o caminho do bem, da humildade e da doação ou o do interesse, do cálculo, do prazer. Podemos nos abraçar e nos confraternizar com os companheiros da viagem ou disputar e excluir o tempo todo. Podemos partilhar alegrias e fazer os outros felizes. Podemos superar juntos obstáculos e colocar as bases de uma sociedade mais justa e solidária. Ou podemos pensar somente na nossa vantagem, na autopromoção e no lucro. Podemos viver mortos pela insensibilidade ou vivos pela compaixão. Para o cristão só o amor, dado e recebido, é vida verdadeira, vida plena, que “não morrerá jamais”. Quantos dos nossos anos ficarão contados no Livro da Vida?
A pipa
Numa linda manhã, uma criança saiu com seus amigos para empinar pipa. O papagaio subia cada vez mais alto, até que se tornou somente um pontinho no céu azul. Lá em cima se balançava feliz. Dois pássaros que estavam dando voltas à toa se aproximaram dele e elogiaram as cores bonitas da sua roupa. Depois um deles sugeriu:
– Vem conosco, vamos ver quem tem mais resistência no voo.
– Não posso – respondeu a pipa – Estou ligada ao meu dono, lá em baixo no chão. Os dois pássaros olharam bem e um deles disse:
– Eu não estou vendo ninguém.
– Eu também não estou vendo ninguém – respondeu a pipa – mas, vez por outra, sinto uma puxada no fio. Ele está lá, com certeza.
Neste quarto domingo de Quaresma encontramos o evangelho do cego de nascença. Mais uma vez, o evangelista João nos apresenta uma situação, uma disputa e um anúncio claro. É o caso de um pobre homem cego desde o nascimento. Situação, essa, considerada, por pessoas que diziam ter fé, como a consequência de um pecado, dele ou dos pais. No fundo, era a visão de um Deus que, antes ou depois, premia o bem e castiga o mal. Nunca perdoa. A discussão é entre os fariseus e o homem que agora enxerga pelas palavras de Jesus. Indiretamente, a crítica é com o próprio Jesus. Ele mesmo é julgado como pecador. Impossível que possa ter ab erto os olhos a um cego. Nem pensar de ver nisto uma obra de Deus. Se ele, Deus, o fizesse deixaria de punir o mal. O perdão é muito perigoso; os homens esqueceriam de ter medo dele! Deus não pode, não deve, mudar o sofrimento do cego em luz e alegria! O anúncio é, no mínimo, surpreendente, luminoso: aquele homem Jesus, considerado igual a todos os pecadores, é a presença amorosa de um Deus que “julga” os seres humanos de outra forma. Ao Deus de Jesus não interessam os pecados das pessoas. Ele olha a fé dos pequenos e dos pobres. Ama e liberta, com gratuidade e generosidade, quem nele confia. Esse Deus tão bondoso não se encaixava nos esquemas mesquinhos dos fariseus. Quem só enxerga os defeitos e os pecados – a cegueira – dos outros, não admite que alguém, nesse caso o próprio Deus, possa desestabilizar uma situação com a gra ndeza do seu amor misericordioso. No entanto quem acolhe Jesus faz a experiência de um fato antes impensável: quem não enxergava, o cego de nascença, agora vê perfeitamente e quem pensava de ver bem, os fariseus, agora ficam confundidos e os seus olhos ficam turvados pela incompreensão, a desconfiança e, talvez, pela inveja.
O grande pecado de todos é, no fundo, sempre o mesmo: duvidar da bondade de Deus, querer saber mais do que ele e lhe dizer o que deve fazer. A fé é o contrário. Vai junto com a “obediência” (ab-audientia) que significa saber ouvir, aprender com quem sabe, com quem conhece o caminho certo. Ou Deus quer enganar a humanidade e zomba de nós a toda hora ou pede para ser escutado, pede que correspondamos ao amor que ele nos oferece sem medidas ou limites? Pobres fariseus de ontem e de hoje. Estão perdidos. O Deus, Pai de Jesus, não se deixa manipular. Fez sim “o que nunca se ouviu”: enviou o seu Filho amado e este nos amou até derramar o seu sangue na cruz d a maldade humana. Esse amor não acabou e nunca mais vai acabar, é sempre de novo oferecido a quem se dispõe a acolhê-lo.
É fácil entender porque era obrigatório refletir sobre este evangelho nas etapas dos Catecúmenos rumo ao batismo. Deviam decidir com quem se ligar. Afinal esse “sacramento” – sinal de pertença e de entrada na Comunidade de Jesus – é uma amarra ou um caminho novo de liberdade e de amor? Sem nos apegar demais à comparação: é a linha que prende o papagaio ao seu dono e não o deixa voar como os pássaros ou é o que o segura lá no alto, na certeza de nunca se perder? Não sei. A liberdade e a fé são dons e buscas. A pipa e os pássaros aproveitam maravilhosamente do vento. Ninguém vê o dono, mas acho bom saber que alguém nos segura, nos solta e nos prende para voar cada vez mais alto. Sobretudo se o dono é Jesus.
A pomba
Fazia pouco tempo que Deus tinha criado a pomba e ela só reclamava. O bom Deus resolveu escutar o que ela tinha para dizer. Assim falou a pomba: – Ó Deus do universo, tem um gato que corre atrás de mim com a clara intenção de me matar e me devorar. Eu passo o dia inteiro correndo desesperada com as perninhas que o Senhor me deu. Não aguento mais.- Deus teve compaixão da pomba e lhe deu um belo par de asas robustas e ágeis. Alguns dias depois a pomba voltou para Deus, novamente chorando. – Ó meu Senhor – disse a pomba – o gato continua atrás de mim. E agora ficou pior. As asas são pesadas e atrapalham os meus movimentos. Estou muito cansada. – O bom Deus sorriu e respondeu à pomba: – Eu não te dei as asas para tu carregá-las nas costas, mas sim par a voar livre pelo céu! –
Neste domingo, em Macapá, festejamos o nosso Padroeiro S. José. Aos seus cuidados Deus entregou a Virgem Maria e o Menino Jesus. Pelo evangelho de Mateus, José é o homem “justo”, confiável, fiel; ele merece toda nossa admiração e devoção. No entanto, estamos também no tempo da Quaresma, já no início da terceira semana. A partir deste e pelos próximos dois domingos a Liturgia nos faz deixar o Evangelho de Mateus. Iremos ler três páginas extraordinárias do Evangelho de João: o encontro de Jesus com a Samaritana, junto ao poço de Jacó, a cura do cego de nascença e a ressurreição de Lázaro. Estes três trechos evangélicos são as leituras obrigatórias para os “escru tínios” dos Catecúmenos antes do Batismo que receberão na Páscoa.
Os Catecúmenos eram adultos não batizados que após, ao menos, dois anos de preparação iniciavam, ao longo da Quaresma, a última parte do caminho rumo ao Batismo. Os escrutínios tinham duas finalidades: “descobrir o que houver de imperfeito, fraco e mau no coração dos eleitos, para curá-lo; e o que houver de bom, forte e santo para consolidá-lo” (Rito da Iniciação Cristã de Adultos n.25.1). Por que estes três evangelhos? Em cada um deles Jesus se apresenta com uma particularidade: água viva, luz e vida. Também à pergunta se era ele o Messias, o esperado, aquele que devia vir, responde: – Eu sou – e convida a acreditar nele. Aos Catecúmenos era pedido o entendimento claro sobre Jesus e ao mesmo tempo a sua resposta firm e e decidida: abraçar a fé. Tornar-se cristão exigia, portanto, uma boa preparação e, sobretudo, uma escolha corajosa que dali para frente devia nortear todas as demais decisões, grandes e pequenas.
Água e luz são dois símbolos da própria vida. Seca e treva são sinais de morte. Sem água e na escuridão não é possível sobreviver. Jesus é a fonte da vida; ele quer oferecer sentido e plenitude de vida aos que o encontram. Não só. Os que “beberem” da água que é Jesus, também se tornarão fontes “de água que jorra para a vida eterna”. Tudo isto era explicado e celebrado com os adultos que já estavam na preparação próxima ao Batismo. E nós? Provavelmente fomos batizados bem pequenos e recebemos os demais sacramentos da Iniciação Cristã ainda quando criança ou jovens. Talvez nunca tivemos a possibilidade, a oportunidade ou mesmo a vontade de tomar uma deci são mais séria e profunda a respeito da nossa fé. Por isso, muitos adultos se perguntam para que serve o Batismo. Pelo evangelho da Samaritana, a resposta é simples: somos batizados para sermos nós também fontes de água viva para todos àqueles que vêm para beber ao poço da nossa vida.
O que temos para oferece e doar? Um bem que não é nosso porque também o temos recebido, um bem que chamamos de fé e confiança em Deus Pai misericordioso e bondoso. Perdoem a comparação banal, mas o Batismo é como as asas da pomba da historinha. Deve servir “para voar alto”, ou seja, olhar as coisas do mundo com o mesmo olhar de Deus. Tudo – bens materiais, afetos e criatividade – pode servir para o bem, a paz, a justiça e a fraternidade. Ao mesmo tempo, deve servir para fugir dos perigos de confundir as coisas materiais, todas limitadas e perecíveis, com as riquezas de alegria e felicidade que somente o amor a Deus e ao próximo pode proporcionar. Os batizados devem voar alto, voar livres. Com certeza outros se juntarão. Verdadeiros adoradores de Deus Pai, em espírito e verdade.
O exemplo
Numa segunda feira, pela manhã, Jesus passou pelas ruas da cidade. Carregava uma sacola bem pesada. Levava uma cesta básica a uma idosa que morava afastada e não conseguia mais andar. Empurrou por duas horas a cadeira de roda de um jovem paralítico pelos caminhos do parque. Era o que ele mais desejava havia muito tempo. Brincou por uma hora com uma criança que nunca conseguia segurar e arremessar a bola de volta porque estava com deficiência. Foi ao hospital e sentou ao lado de um doente de câncer que não tinha mais ninguém para visita-lo. Nadou na piscina e pulou do trampolim com um adolescente que tinha medo e do qual todos os colegas caçoavam. Conversou e depois dormiu a noite inteira num ba nco do jardim junto a um morador de rua que fedia de suor e cachaça. Na manhã seguinte desapareceu. Nenhum jornalista percebeu que Jesus estava na cidade. No entanto aquela velhinha, o jovem paralítico, a criança com deficiência, o rapaz medroso e o morador de rua diziam a todos aqueles que encontravam: – Ontem foi um dia maravilhoso, encontrei uma pessoa gentil. – Nós também podemos ser Jesus, também se não é nada fácil.
No domingo do evangelho da Transfiguração todos ficamos curiosos com o brilho do evento e com alguma inveja dos três discípulos escolhidos. Quem não teria gostado de contemplar a glória antecipada do Senhor Jesus? No entanto, ninguém ficou por lá. Todos desceram. Ainda estavam assustados e medrosos, mas os acompanhavam as palavras do Pai, ouvidas no meio da nuvem: – Este é o meu Filho amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o! – Por fim, pouco entenderam da ordem de Jesus de não contar nada a ninguém. Somente após a ressurreição tudo aquilo começaria a ficar claro e luminoso. Daquele dia em diante eles seriam as testemunhas destemidas de uma nova esperança. A morte não tinha mais a última palavra. A luz do amor venceu a escuridão do ódio e do mal. Após os primeiros, novos discípulos vieram e depois mais outros e mais outros. Ninguém mais segurou a Boa Notícia de Jesus, nem as perseguições, as calúnias, as divisões ou, simplesmente, o desgaste do tempo.
Ainda hoje quem se deixa alcançar pela luz do Evangelho, muda sua vida, se transforma numa nova criatura. Deixa de buscar somente os seus interesses e começa a preocupar-se pelos outros. Desiste de querer ser feliz sozinho para fazer felizes os outros. Enxerga as necessidades dos irmãos, levanta os caídos, carrega os pesos de quem perdeu as forças e enxuga as lágrimas dos sofredores. Assim deveria acontecer na vida de todo discípulo de Jesus. Deveria deixar de ser uma imagem desfigurada e apagada de Deus para se tornar uma pessoa humana transfigurada, reflexo brilhante da luz divina. Por isso os cristãos trilham os caminhos da Palavra, sobem ao monte da fé, contemplam a grandeza do amor de Deus, par a andar, depois, no meio dos irmãos e serem aquelas pequenas luzes de esperança que tantos almejam e que tão dificilmente encontram.
Será que Jesus precisa voltar para nos ensinar como amar ao nosso próximo? Terá que ser novamente crucificado para nos convencer que é possível mudar situações de abandono e de morte em lugares de vida e alegria? Quaresma é tempo também de solidariedade, fraternidade e partilha. Não basta proclamar com os lábios a fé na ressurreição, precisa atuar como homens e mulheres “novos”, refeitos pela luz da Páscoa. Todos podemos e devemos ser Jesus; nas nossas famílias, onde trabalhamos, estudamos, onde convivemos com os demais, crianças e adultos, jovens e idosos. Não tem desculpas para a bondade. Dificuldades, sim, têm muitas : o nosso comodismo, a nossa indiferença, a nossa insensibilidade, o medo de ser julgados “diferentes” por aqueles que não toleram a generosidade e sempre suspeitam da caridade. A cidade por onde Jesus quer andar é a nossa. Nós somos Jesus vivo hoje. Aqui e agora. Basta sair na rua para encontrar o que fazer de bem e a quem fazê-lo. Melhor sem fotos ou redes sociais. Só por amor, como ele fez.
CF 2017: “Cultivar e guardar a criação”
Iniciamos, na Quarta Feira de Cinzas, o tempo litúrgico da Quaresma, tempo que nos prepara para a vivência da Páscoa de Jesus, a sua paixão, morte e ressurreição. A vida dele foi um constante convite à “conversão”. Foi com estas palavras que iniciou a sua missão: “Convertei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo” (Mt 4,17). Estas palavras também são repetidas no rito da imposição das cinzas sobre a nossa cabeça. Em geral, quando dizemos de acreditar em Deus, entendemos que “conversão” deve ser algo que pede alguma mudança. Talvez seja necessário pensar um pouco mais nEle, rezar mais, ir mais na Igreja. Também um pouco de “penitência” quaresmal, como comer ou beber menos, não fa z mal. Sempre podemos recuperar nos meses seguintes. Ajudar algum pobre também nos faz sentir altruístas e melhora a nossa autoestima. No entanto estes são somente os primeiros passos da “conversão”. Não porque Jesus seja tão exigente e nos peça algo de heroico. Não, a questão é outra. Deus respeita a nossa liberdade e ama a todos porque é um Pai que não sabe fazer outra coisa a não ser amar os seus filhos, também aqueles que já o excluíram dos seus pensamentos e projetos de vida. Se queremos ser cristãos precisamos aprender a pensar e a olhar as coisas da vida com o mesmo pensar e olhar de Deus, assim como Jesus veio nos ensinar. Esta é a verdadeira “conversão”. Deve ser algo que mexe com toda a nossa vida pessoal e social: ideias, valores, decisões, afetos e sonhos. Quem reza o Pai Nosso, sempre repete: “S eja feita a vossa vontade”. A “vontade” de Deus só pode ser o bem de todos porque o nosso Deus é amor (1Jo 4,8). Somente se temos esta visão grande e bonita de Deus entendemos porque os cristãos não podem ficar indiferentes com o que acontece aos seus irmãos e à própria natureza. A paternidade universal de Deus nos impele para uma fraternidade universal e a sua providência nos convoca para sermos colaboradores com ele dando continuidade à criação e transformando-a para que seja sempre bela e generosa.
Sem estas considerações e sem lembrar as preocupações expressas pelo Papa Francisco na Carta Encíclica “Laudato Sí” sobre o cuidado da casa comum, não entenderíamos porque a Campanha da Fraternidade deste ano nos convida, mais uma vez, a sermos mais responsáveis com as condições do planeta Terra. De maneira especial devemos prestar atenção às riquezas únicas com que a natureza presenteou o nosso Brasil. Temos seis “biomas” naturais que devem ser respeitados e preservados: a Mata Atlântica, a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Caatinga e o Pampa. “Bioma”, explica o Texto Base da Campanha, “é um conjunto de vida (animal e vegetal) constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguo s e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria” (n.4). Cada “bioma” tem seu equilíbrio, seu jeito de se sustentar e sua própria função no conjunto global da região. Não só; a sobrevivência ou o desaparecimento destes “biomas” vai influenciar o clima e o equilíbrio ecológico do restante do planeta. Como sempre, estamos mais interligados do que conseguimos perceber: “somos cidadãos globais”. As condições da vida humana dependem também e cada vez mais da maneira como são usados, explorados ou preservados estes “biomas” com suas riquezas, suas limitações e fragilidades. O lucro das empresas ou o bem-estar de alguns poucos não podem ser mais as únicas motivações para o aproveitamento destes lugares. Está em jogo o futuro dos próprios biomas, das populações, das espécies animais e vegetais que deles tiram o seu sustento. Por isso falamos também de “conversão ecológica”. Precisamos mudar costumes, interesses e leis, se for necessário, antes que seja tarde demais. Devemos fazer isto em nome da nossa fé, se acreditamos que a Mãe Natureza é dádiva de Deus, ou em nome da própria Vida se temos a honestidade de admitir que somos somente hospedes de passagem neste planeta e que, portanto, não temos o direito de destruir o que, afinal, não nos pertence.
Uma só refeição
Certo dia, Abraão convidou para almoçar com ele, na sua tenda, um pobre que lhe pedia esmola. Antes da refeição, fizeram a costumeira oração de agradecimento. O homem, porém, começou a blasfemar, dizendo que o nome de Deus lhe era insuportável. Abraão ficou indignado com tanta ousadia e o expulsou da sua tenda. Aquela noite, quando estava orando, escutou a voz de Deus que dizia: “Abraão, aquele homem me xingou e amaldiçoou por cinquenta anos e eu nunca deixei de lhe dar o que comer todos os dias. E tu não conseguiste suportá-lo por uma só refeição?”
Chegamos ao último domingo de fevereiro e em pleno clima de Carnaval. Quarta-feira próxima iniciaremos o caminho da Quaresma. Quando retomarmos o Tempo Comum, já não iremos mais ler o que ainda resta do “Discurso do Monte”. Assim, o evangelho deste domingo é quase um final de quanto Jesus já nos propôs nos domingos passados. Faltaria ler o capítulo 7 do evangelho de Mateus, que se conclui com a famosa comparação entre quem constrói a casa sobre a rocha e quem a constrói sobre a areia. As tempestades da vida são as mesmas, mas o homem prudente escuta e pratica as palavras de Jesus e a “casa” não cai. A rocha sobre a qual alicerçar a nossa vida são, justamente, os ensinamentos do Mestre. Precisa entendê-los e transformá-los em vida. Está em jogo o sentido da nossa existência, o que nos preocupa tanto e o que estamos procurando, todos os dias, com tanto esforço.
Para Jesus não tem dúvida. Quem busca, acima de tudo, as coisas materiais não entendeu nada daquele Deus que ele veio nos revelar. Um Deus Pai bondoso que ama a todos, até os que não o conhecem e os que o amaldiçoam. Com efeito, o sol resplandece para todos e a chuva cai também sobre a roça deles. Este Deus Pai é também “providente”, porque não deixa faltar a beleza às flores e nem o alimento aos pássaros que vivem sem plantar e sem colher. Não é, evidentemente, um convite à preguiça, mas à confiança. Se faltam alimentos no mundo não é culpa de Deus que fez mal as coisas. É porque alguns de nós se preocupam demais com o que comer e com o que vestir. Assim pensam somente em juntar riquezas para si e não deixam nada, ou quase, para os outros. O que Jesus repreende é a acumulação; aquela excessiva preocupação que parece dar ao ser humano a ilusão de ter garantida, para sempre, a sua sobrevivência. Isso é puro engano: a vida é um dom e ninguém consegue negociá-lo por preço algum.
O convite de Jesus é simples e grandioso ao mesmo tempo. Nos diz para buscar, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça e todas as outras coisas nos serão dadas por acréscimo. É uma proposta simples, porque é algo que cada um pode fazer, pobre ou rico, em qualquer lugar do mundo. Basta desistir da cobiça e da ganância. Basta ver no outro a imagem de Deus, respeitar a sua – e nossa – vida. Construir amizades e não barreiras e divisões. É o Reino que começa nos pensamentos, no coração de cada um. No interior da pessoa, onde cada um decide o que é mais importante e o que o é menos. Esse Reino é feito de gestos simples e fraternos: uma porta que se abre para acolher, uma refeição partilhada, um trabalho em mutirão, um ombro amigo para se apoiar. Ao mesmo tempo, porém, o Reino é algo de grandioso, porque pode mudar tudo: as leis de um país, a economia mundial, a convivência numa cidade e entre as nações, a história ainda sangrenta da humanidade.
Quem vai continuar a empreitada do Reino que Jesus começou? Os discípulos dele, cristãos ou não. Tantos homens e mulheres de boa vontade de todas as raças, línguas e religiões, os que são perseguidos ou apontados como loucos sonhadores, porque decidiram não servir mais ao deus dinheiro, porque têm fome e sede de justiça, porque buscam o bem e a verdade. A questão é que nós, ainda, quando conseguimos ser bons, o somos com os que pensam e rezam como nós, do mesmo partido e da mesma cor. Ainda não aprendemos a sermos irmãos, filhos do mesmo Pai.
O último
No paraíso foi organizada a maior ceia de todos os tempos. Todos os santos e santas tinham a vaga marcada com um bilhete dourado. Não faltava ninguém. Era o dia da solene inauguração dos “novos céus e da nova terra”. Um acontecimento esperado por séculos e séculos. O cheiro incomparável da comida chegava das cozinhas celestiais. Até os santos eremitas não conseguiam mais disfarçar a ansiedade e já davam sinais de impaciência. Todos esperavam o sinal para começar. Mas Jesus, sentado na cabeceira da mesa, esperava, esperava… O silêncio era absoluto. O que estavam esperando? Por que não começavam? A grande porta do céu, que parecia fechada para sempre, abriu-se. Um homem aparentando um aspecto triste e como quem vindo de tempos antigos, entrou com passo hesitante. O rosto de Jesus ficou radiante, abriu os braços e correu para abraçar o homem exclamando: “Judas, meu amigo, estávamos esperando somente a ti!”.
Uma história imaginária, como sempre. No entanto, muito fiel aos ensinamentos e ao exemplo de Jesus. Infelizmente, a nossa experiência nos diz que é mais fácil ter inimigos e adversários do que amigos e companheiros de caminhada. É instintivo, talvez até natural, revidar quem nos bate. Pensamos que seja sempre melhor bater um pouco mais, para o outro não pensar somos fracos ou dispostos a apanhar. Andar espontaneamente mais do que formos forçados a fazer nos parece, no mínimo, loucura. A lei do máximo proveito com o mínimo esforço funciona demais. Vale no cumprimento das obrigações da profissão, dos horários no trabalho, dos deveres na escola. Quem fizer algo mais do previsto no regulamento é considerado bajulador, alguém que quer aparecer, traidor da classe trabalhadora ou, simplesmente, diferente, do qual é bom ficar longe. Quem grita por justiça, muitas vezes, quer vingança porque, no fundo, quer ver o outro sofrer. Rezar pelos perseguidores? Um absurdo! O que tem que pedir a Deus é o castigo para eles. Assim pensamos, assim agimos. Vivemos na defensiva. Podemos não ter armas nas mãos, mas o nosso coração é pior que um tanque de guerra: solta fogo a toda hora e em todas as direções. São palavras grosseiras, julgamentos, ameaças, gritarias. No melhor dos casos chegamos à indiferença e ao desprezo; muito dificilmente oferecemos a reconciliação, o abraço, a conversa amiga e fraterna.
Posso ter exagerado, mas os noticiários nos espantam, o medo nos torna violentos e a nossa “humanidade” fica, cada vez mais, “desumana”. Teríamos condição de pensar e agir de maneira diferente? Não seria este mais um exagero de Jesus pedindo-nos o impossível? A resposta dele é clara: Deus Pai “faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). Ou seja, Ele ama a todos e a todos oferece a possibilidade de serem melhores. Os filhos verdadeiros só podem assemelhar-se ao Pai! Esse Pai é bondoso e misericordioso. Assim deveriam ser os filhos. Se acontecer o contrário, os que ainda não conhecem o Pai poderiam pensar que Ele é cruel e vingativo, que gosta mais de fazer sofrer do que de resgatar sempre de novo a dignidade dos seus filhos. Acabariam acreditando num Deus falso ou deixariam mesmo de acreditar. Se nem Deus é bom, a que serve a bondade? Por exemplo: perdoar, em certas circunstâncias, pode parecer um ato de heroísmo. No entanto deveria ser natural para os que se declaram filhos de um Pai que perdoa. Suportar incômodos para que os que causam isso entendam e se corrijam, antes de armar o barraco ou devolver o troco, deveria ser normal para quem diz ser filho de um Pai paciente e carinhoso. Assim acontece que, em lugar de aprender com Jesus a sermos “perfeitos” como o Pai é perfeito, chegamos a pensar que seja Ele o errado. Continuamos a dar-lhe sugestões para que nos ajude nos nossos planos, nada fraternos, de castigo, vingança e poder. Como sempre, os que devem mudar são os outros. Po r que nunca pensamos que os “Judas” poderíamos ser nós mesmo? Ainda bem que Jesus aguarda sempre a nossa volta. Ele não tem inimigos, só pobres “amigos” confusos.
Palavra que aquece e ilumina
O dia era bonito. A jovem mãe levou os dois filhinhos para brincar no parque. Sem deixar de reparar nas crianças, sentou-se num banco e começou a ler com atenção um volumoso livro. No banco ao lado, um senhor bem vestido fumava, com ar entediado, um cigarro. Olhando ao seu redor, ficou curioso e perguntou à senhora:
– Desculpe, mas, o que está lendo de tão interessante?
– É a Bíblia, a Palavra de Deus – respondeu a mulher.
O homem fez uma careta e disse:
– A Palavra de Deus? Quem garante isso?
– Está tão claro – continuou a senhora com simplicidade.
– Nada menos que a Palavra de Deus. Como a senhora sabe disso?
– A mãe levantou os olhos para o céu e questionou:
– Como o senhor sabe que no céu tem o sol?
– Que bobagem, senhora. Sei porque o sol aquece e ilumina tudo.
– Isso mesmo – continuou a mulher com os olhos brilhando – as palavras deste livro aquecem e iluminam a minha vida. Este é o efeito da Palavra de Deus! –
Continuando a leitura do “discurso do monte” encontramos, a partir do evangelho deste domingo, umas palavras de Jesus repetidas como um refrão: “Vós ouvistes que foi dito…Eu, porém, vos digo…”. Jesus diz claramente que não veio para abolir a Lei e os Profetas, mas para dar-lhes pleno cumprimento. Ele confiava que as pessoas já tivessem prestado ouvido às palavras antigas e, sobretudo, as tivessem acolhido como Palavra de Deus. Faltava, agora, porém, completar o que Deus tinha falado. Não estava tudo dito e nem tudo escrito na Lei e nos Profetas. Tinha algo novo para aprender. Era necessário escutar novamente a Palavra de Deus que, agora, tinha se tornado carne, pessoa humana e “ensinava” com palavras e gestos. Finalmente o Reino de Deus tinha chegado!
Todos os dias, nós escutamos muitas conversas, notícias, informações. Se não queremos ficar sufocados por tantas palavras, devemos discernir e escolher a quais delas damos atenção e quais podemos descartar. Essa decisão depende daquilo que nos interessa, mas também dos valores que norteiam a nossa vida. Acontece que essa distinção está se tornando, cada vez mais, incerta por causa da nossa dificuldade de separar o que é importante do que não é no meio de tanta palavras e ideias apresentadas em embalagens cativantes e tentadoras. Precisamos afinar os nossos ouvidos, aprender a descartar os ruídos e acolher o que vale a pena guardar na mente e, mais ainda, no coração.
“Ouve, Israel!” é a ordem que encontramos no livro do Deuteronômio 6,4. Não bastava a Lei em si, escrita ou decorada. Precisava saber ouvi-la sempre de novo, deixa-la ecoar no coração, saber aplicá-la nas situações da vida para que a própria Vida e a Justiça fossem sempre respeitadas. De outra forma, as normas podiam, e sempre podem, tornar-se mera formalidade e assim não serem obedecidas. Ou podiam ser entendidas tão ao pé da letra, a ponto de perder o sentido pelas quais foram ditas por Deus, que tinha provado ser o Deus libertador, misericordioso e compassivo com o seu povo.
Os três mandamentos que Jesus lembra no evangelho deste domingo são um exemplo claro dessas possibilidades. A Lei diz “Não matarás”; sempre, sem nenhuma brecha. No entanto continuamos a matar. Inventamos “guerras santas” para poder eliminar aqueles que decidimos serem incômodos para o nosso interesse e bem- estar. “Não cometerás adultério”, diz o mandamento. Mas, hoje, isso parece uma piada. A estabilidade do amor entre o homem e a mulher é, de antemão, considerada não só impossível, mas geradora de tédio, frustração e até causa do fim do amor entre os dois. A fidelidade reciproca, que deveria garantir a solidez da família, é considerada um empobrecimento, uma privação de liberdade e criatividade. O falso juramento tornou-se tão corriqueiro que os que juraram dizer a verdade mudam, depois, os depoimentos e precisam de prêmios e incentivos para ser, talvez, sinceros. Duvidamos tanto das palavras das pessoas, que é a verdade que deve ser provada. Ou seja: logo pensamos que os outros estejam mentindo, a não ser que tenham como provar que estão dizendo mesmo a verdade. Quem esfriou e escureceu? Nós ou a Palavra de Deus?
A caverna
São Pacómio queria conhecer o sentido da vida e, todos os dias, meditava as Sagradas Escrituras e os escritos de tantos sábios. Certa noite, o Senhor quis satisfazer a sua curiosidade e lhe enviou um sonho para que entendesse o segredo da vida. Pacómio viu que o mundo era uma grande caverna mergulhada na escuridão. Nela os seres humanos andavam às apalpadelas, tropeçavam uns nos outros, caiam e se machucavam muito. Andavam cada vez mais tristes e sem esperança por não encontrar nenhuma saída. Um dia, de repente, um homem (ou uma mulher) acendeu uma luz. Era muito pequena e fraca, mas não tem escuridão que não possa ser vencida pela luz, por menor que ela seja. Com a luz, é sempre possível encontrar o caminho. Assim, todos se colocaram atrás de quem tinha a luz. No começo, foi aquele empurra-empurra. Todos disputavam um lugar. Depois, resolveram se organizar em fila. Enfim, cada um pegou na mão do outro e, assim unidos, começaram a buscar a saída.
Após a página das Bem-aventuranças, no “discurso do monte”, que continuamos a ler nestes domingos antes da Quaresma, Jesus nos fala de “sal e luz”. Ele diz aos ouvintes, aos seus seguidores de ontem e de hoje, que eles são “o sal da terra e a luz do mundo”. As imagens do sal e da luz são eloquentes por si mesmas. Sobretudo se comparadas com o seu contrário. De fato, quando o sal não tempera mais a comida, torna-se inútil. É jogado fora. Mais fácil, ainda, é entender como a escuridão – o contrário da luz – seja a negação da vida, das atividades humanas e da compreensão das coisas. Luz si gnifica entendimento, clareza, coragem, alegria. Quando estamos tristes, tudo parece negativo, incompreensível, duvidoso, incerto e inseguro. E vice-versa.
A luz sempre fascinou a humanidade. Ainda hoje os cientistas buscam explicações; e as distâncias entre as estrelas e os planetas são medidas em “anos-luz”. A maior velocidade medida é a da luz. Também, por exemplo, um ambiente luminoso e arejado nos dá ânimo, ao passo, que um lugar sombrio e fechado nos leva à tristeza. Quem não se encanta com uma queima de fogos coloridos numa noite escura? E quem nunca parou para contemplar, em silêncio, um céu estrelado que nos faz sentir tão pequenos e cheios de perguntas sobre a vida e o seu sentido? A noite, entendida como escuridão e escondimento, parece nos conduzir mais para coisas erradas, coisa s que nos envergonharíamos de fazer à luz do sol. Mas até um simples sorriso transmite conforto.
Como sempre, Jesus, quer nos conduzir rumo a algo maior. O anúncio do Reino, iniciado com a sua pessoa, a sua pregação e as suas palavras das Bem-aventuranças, são algo luminoso. Quem encontrar o Reino só pode exultar de felicidade. Agora tem um rumo na vida. Tudo, até as perseguições, por causa do evangelho, tem valor e sentido. A luta do bem contra o mal, que pode ser comparada com a luta entre as trevas do erro e a luz do bem e da verdade, já começou a ser vencida pela luz. Pode demorar, mas as trevas estão sendo afugentadas. Essa luta é, em primeiro lugar, interior, acontece no coração de cada um de nós, mas, ao mesmo tempo, &eac ute; também exterior, na história da humanidade toda. O nosso coração é um campo de batalha e, muitas vezes, a nossa luta é sofrida, demorada, cheia de contradições. É fácil entender que, para os discípulos de Jesus serem “sal da terra e luz do mundo”, eles devem ter o “sal”, o sabor, o gosto pela vida, dentro de si e ter luz suficiente para comunicá-la aos demais. Somente assim, com a união de tantas, incontáveis, pequenas luzes, a grande luz do bem e do amor vai clarear a história do mundo. Por isso, os cristãos, devem permanecer sempre unidos a Jesus Cristo, a luz plena, a luz que não conhece sombra, e entre si. É urgente essa corrente de luzes. Ainda temos medo ou até vergonha de falar das maravilhas de Deus entre nós e pouco aparece da luz da fé e do amor no nosso agir como cristãos. A luz tem s entido se clareia ao seu redor. Luzes apagadas ou escondidas não são mais luzes. O sal também, se não dá sabor, será pisado.
A igreja demais cheia
Certo dia, um santo homem estava na entrada de uma igreja muito famosa, porque lá aconteciam celebrações e orações sempre com grande participação do povo. O homem, porém, ficava parado na porta e se recusava a entrar.
– Por que o senhor não entra? – perguntaram-lhe.
– Não posso – respondeu.
– Mas, por que não? – insistiram. O homem respondeu:
– Esta igreja está cheia de uma parede a outra, do piso ao telhado, de palavras bonitas, de ensinamentos superiores, de intercessões, de invocações e orações de fieis bem preparadas, caprichadas, politicamente corretas. Não tem lugar para mim aqui dentro.
As pessoas não entenderam e ficaram olhando espantadas. O santo homem continuou:
– Celebrantes e fieis pronunciam com os lábios milhões de palavras. Mas no céu chegam somente aquelas que vêm do coração. Todas as outras ficam por aqui, mesmo, abarrotando a igreja de parede a parede, do piso ao telhado!
Na leitura do evangelho de Mateus, deste ano litúrgico, encontraremos vários discursos de Jesus. O primeiro é o chamado “discurso do monte”. Ocupa três capítulos e vai nos acompanhar por alguns domingos. No início está a página bem conhecida das bem-aventuranças. Jesus proclama felizes algumas categorias de pessoas. No entanto, mais do que agrupar os possíveis bem-aventurados e discutir onde nós e tantos outros iríamos ficar, precisamos entender a mensagem que, de imediato, parece um conjunto de contradições. Algumas bem-aventuranças ainda podemos entender. Faz bem ser mansos e puros de coração; é empolgante promover a paz, ter fome e sede de justiça; é gratificante ser misericordiosos. Difícil é aceitar que sejam chamados “felizes” os pobres, os que choram e os que são perseguidos e injuriados. Na realidade, todas as bem-aventuranças são um desafio à mentalidade do mundo, que exalta o dinheiro, a vida cômoda e os privilégios. A paz para o mundo é o silêncio comprado com o medo ou com a corrupção. A justiça é a lei do mais forte. A mansidão é a cabeça dobrada de quem não tem mais força para reagir. Essas situações não são de felicidade, mas de opressão, fruto de alienação ou de consciências adormecidas.
O que Jesus propõe é mais do que uma promessa, é um mundo novo em construção. Tudo começa com a primeira das bem-aventuranças, a pobreza em espírito. O ser humano tem surpreendentes capacidades, mas deveria reconhecer a própria “pobreza”, ou seja, a própria incapacidade de construir relacionamentos respeitosos da vida, dos direitos e da dignidade de todos. Após tantos milênios, continuamos a ser fascinados pelo poder das armas, do dinheiro, da mídia, da politicagem e da corrupção. O ser humano é extremamente criativo, quando quer passar na frente dos outros, custe o que custar. O caminho de Jesus para mudar tudo isso &eacu te; aquele de aprender a ver a vida e a história não com o olhar dos poderosos e vencedores, mas dos pobres, o olhar de quem está em baixo e não em cima da pirâmide social, sempre criticada, mas nunca derrubada.
Uma sociedade verdadeiramente humana será aquela onde as pessoas aprendem a enxugar as lágrimas dos aflitos. Onde se reparte o pão com os famintos e se pratica a justiça não por obrigação, mas pela alegria de ver o irmão feliz. Onde a paz é fruto do diálogo, do perdão e da solidariedade. As bem-aventuranças são o projeto do Reino de Deus que é Pai de bondade e misericórdia. É o Reino da Vida, sem mentiras e perseguições, porque a Verdade ilumina todo coração humano. Jesus não somente proclamou as bem-aventuranças, as viveu até o fim. Foi humilde, pobre, perseguido e morto. Enxugou l&aa cute;grimas, consolou os pequenos, perdoou prostitutas e cobradores de impostos. Abriu olhos a cegos, fez falar mudos, caminhar entrevados. Praticou o milagre da partilha. Encontrava a força na oração. Passava a noite rezando, na mais profunda comunhão com o Pai. Podemos nos perguntar se as nossas orações nos impelem a praticar as bem-aventuranças ou somente enchem as nossas igrejas e de lá nunca saem. Se não mudamos a vida as nossas orações não sobem para o céu.