Dom Pedro Conti

Um pobre morto

Em 1916, morreu Francisco José, imperador da Áustria. Por muitos anos, ele soubera conservar, sob o poderio paternal do seu cetro, muitos povos que antes viviam em contínuas guerras. O féretro foi levado à cripta da igreja dos Padres Capuchinhos de Viena, onde jazem outros reis e imperadores. O mestre de cerimônias bateu à porta.

– Quem é – perguntou do lado de dentro, segundo o cerimonial, um padre capuchinho.

Os cortesãos responderam: – Francisco José, imperador e rei.

Lá de dentro, a mesma voz austera do frade respondeu: Não o conheço.

Um momento de silêncio dentro da cripta. Do lado de fora, à porta, deliberavam os senhores e políticos. Batem outra vez. E outra vez insiste de dentro o guardião daquelas tumbas:

– Quem é?

– Francisco José de Habsburgo – respondem de fora os que sustentam em seus ombros o régio féretro. E de novo ouve-se a voz do frade:

– Não o conheço.

Mais um momento de silêncio. Mais um instante de deliberação. Urge, porém, entregar aqueles restos mortais que foram ontem de homem tão grande e que hoje ninguém os quer em parte alguma. Por isso, após um instante de imponente silêncio, outra vez a voz do Capuchinho interroga:

– Quem é? –

E o que responde em nome da política e da grandeza do império austríaco diz agora:

– Um pobre morto.

A voz serena e imutável do guardião daqueles túmulos responde imediatamente:

– Entre! Abrem-se as portas, entra o cadáver e, ali, como pobre morto, foi enterrado o celebre Francisco José, rei e imperador da Áustria. É certo que a morte nivela tudo.

Tem assuntos que nos incomodam. Não gostamos de enfrentá-los. Preferimos sempre deixá-los para depois, achando que será possível evitá-los. Só que eles são tão reais quanto a nossa própria vida. Um deles é a morte, certa para todos. O outro, objeto de tantos conflitos entre os herdeiros, também não oferece opções: nada carregaremos deste mundo, teremos que deixar tudo. Tudo mesmo. Desde quando nascemos e começamos a entender alguma coisa sabemos desta condição humana, no entanto, continuamos a querer acumular bens e dinheiro numa guerra contra os nossos semelhantes ou, como dizem os psicólogos, contra a nossa própria morte. Já somos perdedores antes de começar o jogo. Mas se a vida n&atil de;o serve para provar que somos os melhores, que somos mais inteligentes e poderosos, para que serve? Que gosto teria uma existência sem o prazer de enganar os outros, sem a mola da ganância e do lucro? Ou simplesmente sem ambições, sem pódios, sem medalhas, sem reis e rainhas, sem campeões? Será que Jesus, contando a parábola do rico “louco” queria esvaziar o sentido da nossa vida tão ocupada com os nossos negócios e disputas? O que nos resta, então?

As respostas estão no próprio evangelho deste domingo. Jesus nos apresenta um alerta e uma conclusão clara: “Assim acontece com quem junta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (Lc 12,21). A chamada de atenção é sobre “todo tipo de ganância”. Simplesmente porque “a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. Esse é o grande engano: fazer coincidir o sentido da vida com a fartura. Ele mesmo, Jesus, seria o maior fracassado da história; não morreu somente pobre, mas também condenado e desprezado. A beleza da vida que ele ensinou e viveu foi muito diferente. Ele doou esperança e alegria aos excluídos. Mostrou aos pecadores o rosto misericordioso de um Deus Pai que n ão condena ou castiga, mas ama a todos e festeja o reencontro com quem estava perdido. Com uma vida simples e fraterna, feita de convivência e partilha, ensinou que a felicidade pode ser encontrada somente junto aos outros, carregando, solidários, alegrias e tristezas. Sentiu compaixão e chorou pelo sofrimento dos irmãos; exultou pelo entusiasmo dos pequenos que confiam em Deus. Também de Jesus disseram que estava fora de si. Também ele foi sepultado como um pobre morto. Mas Deus Pai o ressuscitou. Não podia ficar no túmulo aquele que, por amor, tinha doado tudo, até a própria vida. A loucura do amor é o único tesouro que vence a morte.

O soldado e o ovo

Num hospital servido pelas Irmãs de Caridade, achava-se um soldado em tratamento. Certo dia, pediu que lhe trouxessem um ovo cozido. Poucos instantes após, uma das irmãs servia ao enfermo o ovo cozido; mas aquele indivíduo, querendo provar a paciência da religiosa, rejeitou o ovo, bruscamente, dizendo:

– Está duro demais.

Retirou-se a Irmã, em silêncio e, depois de alguns minutos, trouxe outro ovo; mas o doente o rejeitou, de novo, alegando:

– Está mole demais.

Sem mostrar o menor indício de impaciência, foi a Irmã, pela terceira vez, à copa e trouxe ao soldado um vaso com água fervente e um ovo fresco e disse-lhe com toda calma:

– O senhor tem aqui tudo o que é necessário para cozinhar o ovo, prepare-o do modo que lhe agradar.

Essa paciência inalterável da boa religiosa causou ao soldado tal impressão que não pôde deixar de exclamar:

– Agora compreendo que há um Deus no céu, uma vez que há tais anjos na terra. Por aí se vê que pela paciência se pode fazer um grande bem ao próximo.

O evangelho deste domingo nos apresenta, entre muitas outras coisas, a situação do amigo “impertinente” que de noite perturba a tranquilidade do vizinho pedindo-lhe comida emprestada por causa de uma visita inesperada. É tão grande a insistência do homem, que o outro vai atende-lo, diz o evangelho, se não por amizade para se ver livre dele e, digamos nós, voltar a dormir em paz. É evidente, porém, que o principal assunto desta página de Lucas não é a paciência do amigo – ou a própria paciência de Deus – mas a oração. Vendo Jesus rezar, os discípulos pedem que ele os ensine. Temos aqui a versão do Pai N osso segundo o evangelista Lucas. Somente um pouco mais curta da que usamos na liturgia e que encontramos no texto paralelo de Mateus.

Podemos resumir o ensinamento de Jesus dizendo que a oração deve ser, em primeiro lugar, “confiante”; como a atitude de um filho pequeno que, se espera, confie serenamente no próprio pai. Somente pais que não amam os seus filhos deixam de satisfazer os pedidos simples – peixe, ovo – que estes lhe apresentam. Outra característica da oração cristã deve ser a “perseverança”. Pedir ao Pai, insistentemente, não é uma humilhação para os filhos, mas sim o reconhecimento que não tem outro pai, mas somente um no qual confiam plenamente. Nesse sentido, a oração se torna também “de entrega”; a nossa vida está segura nas mãos e no coração de quem nos ama e que nós também amamos. Por fim, para não pensar que “busca” signifique pedir qualquer coisa e de qualquer jeito, Jesus nos ensina a pedir o dom do Espírito Santo. Sem a luz do Espírito a nossa oração correria o perigo de ser egoísta, interesseira e, quem sabe, capaz de pedir até vinganças e castigos para irmãos e irmãs que, infelizmente, ainda consideramos inimigos e não filhos do mesmo Pai misericordioso.

Quantas lições encontramos nesta página do evangelho! Por exemplo, para os pais que se acham na obrigação de satisfazer qualquer pedido dos seus filhos. Nesse caso, eles precisam também de “discernimento”, de “inteligência” e de “sabedoria”. Para todos os cristãos que desistem facilmente da oração, porque fraquejam na fé ou acham que Deus os ama pouco, porque não satisfaz na hora os seus caprichos. Esses precisam de muita “fortaleza”. Para todos aqueles que pensam ser Deus um velho bonachão, um inútil, fácil de se enganar, que – se ainda não desapareceu – irá passar a mão na ca beça de todos e de qualquer jeito, e, por isso, nunca rezam, porque, afinal, Deus não é coisa séria. Esses precisam mesmo do “temor de Deus”. Viram como foi fácil lembrar alguns dos dons do Espírito Santo? E ainda podemos pedir a fé, a esperança, a caridade. Precisamos de paz, de união, de honestidade, de “vergonha na cara”, e assim por diante. No entanto, insistimos em pedir sobretudo saúde, dinheiro, sucesso e poder. Que o Espírito Santo me perdoe: ele é mais do que a panela para cozinhar a nossa oração, ele é o fogo! É o que nos falta muito.

A voz de Santo Antônio

Conta o escritor Súrio que, estando Santo Antônio a pregar em certa cidade, uma devota senhora, que morava distante, tinha imenso desejo de ouvir as pregações do santo. O marido, homem perverso, não lhe permitia de modo algum. Ouvindo que, devido à multidão, o santo iria pregar fora da cidade em campo aberto, a boa senhora, aflita e desconsolada, subiu ao terraço da casa para olhar, ao menos de longe, o lugar onde o ele pregava. Coisa admirável! Apesar da grande distância, a voz do pregador chegava-lhe aos ouvidos forte e distinta, como se o púlpito estivesse ali mesmo. Admiradíssima chamou o marido, o qual, reconhecendo naquele acontecimento o dedo de Deus, entrou em si, converteu-se sinceramente e foi, dali em diante, um ouvinte assíduo da palavra de Deus. E assim recompensou Nosso Senhor a fé e o amor que aquela senhora demostrava pela palavra divina.

Uma história de outros tempos, quando ainda não existiam os potentes aparelhos de som e precisava do “dedo de Deus” para ouvir de longe a pregação de Santo Antônio. Hoje, temos quilowatts de potência, rádio, televisão, celulares, internet e redes sociais, mas talvez falte mesmo o mais importante: a vontade de escutar com atenção o ensinamento do Mestre Jesus.

Neste domingo, ouviremos a página do evangelho de Lucas com o conhecido caso das duas irmãs, Marta e Maria. A primeira está muito atarefada, preparando uma digna acolhida para Jesus, hospede sempre bem-vindo naquela casa. A segunda está sentada aos pés dele, ouvindo as suas palavras. Ao pedido de Marta para que Jesus diga a Maria de ajuda-la nos afazeres, ele responde que ela está preocupada e agitada por muitas coisas. Maria, ao contrário, “escolheu a parte melhor e esta não lhe será tirada”. Parte que Jesus define como a “única coisa necessária”. Essa resposta dele já deu muita conversa e ainda dará. Sempre haverá defensores da incompreendida e explorada Marta e outros que aproveitarão destas palavras de Jesus para ficar sentados, numa confortável poltrona, não para escutar, de verdade, a palavra de Jesus, mas por certa dose de preguiça. Podemos ter quase certeza que esta discussão também esquentava os ânimos dos cristãos, aos quais Lucas dirigiu o seu evangelho.

Deixando de lado as intermináveis controvérsias, vamos ao que interessava a Jesus e que deve nortear também a nossa vida. Maria escolheu a “única coisa necessária”, porque todo o agir, correr e trabalhar do discípulo de Jesus só pode ser iluminado pela Palavra do Senhor. Isso não significa que esta Palavra nos dará uma resposta cabal a todo e qualquer questionamento ou curiosidade nossa. Por exemplo, não vai nos dizer com quem devemos casar ou qual pobre devemos ajudar. A Palavra de Deus irá nos dizer que sem o amor, que é doação, partilha, perdão e justiça, nenhum casamento irá dar certo e nenhum programa social conseguirá erradicar a pobreza. Caberá a nós a fadiga, mas também a liberdade de escolher, assumindo toda a responsabilidade e todas as conseq uências das nossas escolhas. Os erros, inclusive, fazem parte da dinâmica da escuta e da prática da Palavra. Eles nos obrigam a voltar a escutar sempre de novo, a buscar entender melhor e a reconhecer, com humildade, que, certas vezes, nós nos achamos mais sabidos que a Sabedoria. Queremos ensinar a Deus. “Escutar” não significa simplesmente ler. A Bíblia não é um romance mais ou menos histórico, um livro de autoajuda ou um catálogo de receitas milagrosas. Através de palavras humanas – e por isso compreensíveis – chega até nós, hoje, a revelação do amor misericordioso de Deus. Este Deus, que Jesus nos ensinou a chamar de Pai, fala a cada um, e, ao mesmo tempo, a todos nós juntos como comunidade, Povo de Deus a caminho na história. A Palavra de Deus é viva para quem quer dar um sentido grande à própria vida. S e acreditamos que é o próprio Deus que continua a falar, precisamos escutá-lo com atenção e… em silêncio. Nada de gritaria. Deus nos fala muito perto, fala ao nosso coração.

Indiferença ou compaixão?

Certa noite, o diabo veio à terra, com um grande saco nos ombros, para levar consigo tudo o que Deus não quer no céu. Ao caminhar, tropeçou num bêbado e lançou-o no saco, dizendo:

– Os beberrões são meus, Deus não os quer. Ao inferno com eles!

Seguiu andando e encontrou um ladrão:

– Para o saco – disse com uma grande gargalhada – de ladrões está cheio o inferno.

Continuou andando e encontrou um escandaloso.

– Oh, oh, este é pior do que o demônio! Os escandalosos são sujeitos infernais.

E assim foi metendo no saco a todos os que tinham a alma manchada com pecados de maledicência, orgulho, inveja, luxúria, e não sei quantas coisas mais. Até um hipócrita caiu no saco do diabo.

– Desses entram milhões no inferno – disse o diabo – é pena que nenhum deles consiga ir para o céu, pois eu tenho que aguentar a todos.

Depois encontrou um tal que não era bêbado, nem ladrão, nem escandaloso; mas também não era bom, porque Deus não o quis levar.

– Quem és? – perguntou-lhe o diabo, abrindo o saco para metê-lo dentro.

– Eu – respondeu o tal – nunca fui amigo nem inimigo de ninguém; a todos e a tudo fui indiferente.

– Um indiferente? – perguntou o diabo – não serviste para Deus, nem para mim serves, não prestas nem para o inferno!

Com certeza, ao longo deste Ano Santo da Misericórdia, refletimos muitas vezes sobre a parábola do Bom Samaritano. A encontramos no evangelho neste domingo do Tempo Comum. Jesus a contou para explicar ao mestre da lei quem é o nosso próximo, mas também para responder à pergunta inicial dele: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Pela parábola fica claro que o nosso próximo é todo aquele que encontramos, ferido, nos caminhos da vida e que socorremos com cuidado e generosidade. O rosto do próximo necessitado depende do nosso olhar compassivo. Cabe a cada um de nós decidir se paramos, socorremos e carregamos quem entendemos que está precisando da nossa ajuda. Todos nós, muitas vezes, enxergamos o outro, mas encontramos uma desculpa para não nos incomodar e continuamos indif erentes. Outras vezes, por várias razões, deixamo-nos envolver. Pode ser por boa vontade, por solidariedade humana, pela propaganda de um desastre, pela empolgação com o exemplo de outros, ou, simplesmente, para aquietar a nossa consciência. Ajudar é sempre bom, melhor que ficar indiferentes, mas pensamos ainda na vida eterna ou já nos esquecemos dela? Perdemos o horizonte final do nosso amor? Assim, gestos de solidariedade convivem, em nós, com um coração amargo, violências, mentiras e corrupção. Fazemos atos de caridade, mas construímos uma sociedade injusta e excludente. Acreditar na vida eterna que Jesus prometeu é mais que juntar gestos de bondade, significa mudar de vez o nosso coração, humanizar as relações entre nós.

Cada gesto sincero de bondade deveria ser um exercício para aprendermos a amar sempre; um compromisso para construirmos uma convivência humana, alicerçada na fraternidade universal. Quando ajudamos alguém ou lutamos por uma causa justa estamos colaborando com o bem no mundo, mas todo gesto tem um antes e um depois, ou seja, precisamos nos educar para a compaixão e não esperar uma catástrofe para nos comover. Precisamos nos organizar para que violências e injustiças sejam superadas nas suas raízes e não somente nas consequências sociais que nos incomodam.

Acreditar na vida eterna não significa diminuir a grandeza dos gestos concretos e deixar de dar respostas imediatas às necessidades das pessoas, mas acreditar que é muito mais o que devemos mudar. Estamos muito preocupados com o nosso bem-estar individual. O “bem comum” – de todos, a começar pelos mais pobres – nos interessa pouco ou nada. Até a “vida eterna” pode ser pensada como um prêmio exclusivamente individual. Porém se faltar alguém, sobretudo os “pecadores”, não será a vida plena que o Pai quer para todos os seus filhos No coração dele tem mais lugares do que o diabo pensa. Para estar lá, basta colocar a compaixão no lugar da indiferença. Muda tudo.

A grandeza do papado

Encerrada a Revolução Francesa, sentou-se no trono da França um rei herdeiro dos princípios da revolução: Luis Filipe de Orléans. O presidente do Conselho de Ministros era o Sr. Thiers, grande escritor e extraordinário articulador político. Um dia, estando em Roma, quis visitar o papa. O Santo Padre aceitou recebê-lo, mas Thiers colocou uma condição: não ia de jeito nenhum ajoelhar-se diante dele e nem beijar-lhe a mão, como era costume em sinal de reverência. Quando papa Gregório XVI ficou ciente da exigência simplesmente sorriu, nada mais. Chegada a hora, o famoso presidente entrou nos aposentos pontifícios e o papa lhe estendeu a mão para cumprimenta-lo. Ao ver aquela figura branca, tão simples e solene ao mesmo tempo, Thiers experimentou um sentimento indefinível. Vacilou um instante, caiu de joelho e beijou o pé do Santo Padre. O papa perguntou-lhe cheio de bondade: “Tropeçou em alguma coisa, Sr. Presidente?”. E Thiers, comovido, respondeu: “Santidade, tropecei na grandeza do Papado!”.

Mais uma anedota de tempos passados, que hoje nos faz sorrir. No entanto, celebrando a Solenidade de São Pedro e São Paulo a cada ano, como católicos, somos convidados a refletir e a rezar para a missão do Santo Padre, o papa, que hoje se chama Francisco. Não é para desmerecer a “grandeza do papado”, mas para entender, cada vez melhor, a tarefa daquele que, temporariamente, exerce essa autoridade. Se em outros tempos a exterioridade podia chamar atenção e até atemorizar, hoje seria impensável e escandaloso que o papa quisesse competir com os poderosos deste mundo. De fato, se podemos chamar de “poder” a autoridade do Santo Padre, ela é somente “espiritual” ou moral, como alguns dizem.

Antes do Concílio, os membros da então Ação Católica, em vários lugares do mundo, ainda cantavam que “o altar” tinha “um exército” cujo comandante supremo, sobre esta terra, era o papa. Após o Concílio Vaticano II, falamos de Povo de Deus e até quando administro o sacramento da Crisma, evito dizer que, com o dom do Espírito Santo, tornamo-nos “soldados de Cristo”. Essa comparação serve para entender a luta contra o mal, o pecado, as tentações e a ignorância, aproveitando também de palavras semelhantes usadas por São Paulo quando fala, por exemplo, de espada (do Espírito) ou de couraça (da Justiça) (Ef 6,10-17). No bom sentido, essa “guerra santa” nunca vai acabar, porque os “inimigos” a combater somos nós mesmos, quando deixamos de fazer o bem, para vencer o mal. Já entendemos que a única arma digna do cristão é o amor misericordioso que atrai, cativa, conquista e transforma o coração das pessoas. Por isso, hoje, ficam para papa Francisco as “armas” da palavra e do exemplo.

Papa Francisco fala bastante. Fala livremente todo dia celebrando a Missa na Igreja Santa. Marta e se preocupa com a vida real das pessoas, os seus sofrimentos e provações. Todo dia, convida à solidariedade, à paz, à superação da indiferença. Ele sabe que antes das verdades, dos dogmas, da fé e das normas necessárias vem a vivência do evangelho. Muitas vezes, o que ele diz e denuncia incomoda. O mesmo vale para o exemplo dele de humildade e paternidade, quando abraça crianças, doentes, pessoas com deficiências? Já acolheu migrantes e refugiados no Vaticano. Já mandou construir chuveiros para moradores de rua… Já encontrou e fez se encontrar muçulmanos e hebreus, movimentos populares e poderosos, economistas, cientistas, ecologistas. Já visitou hospitais, comunidades de recuperação para dependentes químicos, periferias, sem avisar, sem alarde, como irmão antes que como Papa. Já ouviu vozes opostas e já deu voz a muitos gritos abafados há muito tempo. O seu exemplo também incomoda. Papa Francisco quer uma Igreja em busca, misericordiosa e acolhedora. Deve ser uma Igreja “enlameada” porque missionária; capaz de curar as feridas, mais do que causá-las, porque é um “hospital de campo”. Nós todos estamos “tropeçando” na grandeza da “humanidade” de Francisco.

O livro da vida

Certa vez, um homem conseguiu permissão para entrar numa grande gruta, onde estavam guardados os livros da vida de cada um com seu passado e futuro. Ele poderia ficar lá por alguns minutos, durante os quais era possível modificar o rumo do seu próprio destino e o de quantas pessoas desse conta no prazo marcado. Decidido, ele achou que primeiro devia aproveitar para se vingar dos seus desafetos. Foi direto no livro da vida do seu maior inimigo e corrigiu muitas coisas, juntando desgraças, doenças e pobreza. O mesmo fez com outros. Riscava o que tinha de bom e escrevia misérias e desventuras. Ele fazia tudo muito rápido, mas o tempo corria também e já estava para terminar. Quando, finalmente, resolveu pegar o livro da vida dele para anotar fortunas, saúde e bem-estar, o encarregado tocou no ombro dele e lhe disse:
– Amigo, o tempo acabou.

– Ainda hoje – o infeliz lamenta – tive o livro da minha vida nas mãos, mas, fiquei tão ocupado em fazer o mal aos meus inimigos, que perdi a chance de fazer o bem para mim mesmo.

Continuando a leitura dominical do evangelho de Lucas, encontramos uma página que nos apresenta duas atitudes opostas: de um lado, temos a “firme decisão” de Jesus de ir a Jerusalém e, do outro, as desculpas de alguns discípulos que, apesar das declarações clamorosas, pedem tempo para decidir mesmo se acompanham, ou não, Jesus na sua missão. Entre as escolhas difíceis aparece, também, aquela de um povoado de samaritanos que resolve não acolher Jesus porque, indo para Jerusalém, provava que pertencia a outro grupo religioso. Não é difícil entrever atrás desses casos a situação dos cristãos daquele tempo e, também, a nossa. A acolhida de Jesus e da sua mensagem, não pode ser algo de forçado e, menos ainda, o resultado do medo de algum possível castigo. Jesus repreende Tiago e João que queriam jogar pragas contra aquele povoado. A liberdade de escolha e as diferenças religiosas, nesse caso, devem ser respeitadas. No entanto precisa entender que qualquer decisão tomada terá consequências e que também quando, aparentemente, não decidimos nada ou deixamos tudo para depois, de fato, estamos escolhendo: sempre algo irá acontecer. Porque para ninguém a vida é um passeio inútil ou um enganar o tempo que passa. Ou decidimos o rumo da nossa existência ou, talvez, lamentaremos, depois, as ocasiões perdidas sem poder voltar atrás. Uma dessas decisões é, sem dúvida, a fé: ser cristãos para valer ou fazer de conta. É um tema extremamente atual num tempo de tantas propostas religiosas, algumas mais prometedoras – ou enganadoras – que outras.

Jesus caminha rumo a Jerusalém. Entende que lá acontecerá o grande confronto entre a sua mensagem e o conjunto daqueles poderes religiosos e políticos que não admitem novidades, sobretudo, quando estas têm a pretensão de vir de Deus. Também os doutores da Lei, os fariseus, os sacerdotes do Templo e os anciãos do Sinédrio estavam convencidos de falar em nome do seu Deus. Nem por isso Jesus desiste. Ele tem coragem, vai em frente, ainda que já vislumbre a sombra da cruz. Bem diferentes são os três candidatos ao seguimento. Aparecem aqui os maiores medos para tomar uma decisão séria: o conforto dos bens que poderá ser perdido, a incerteza sobre o sucesso da missão, a separação do ambiente familiar tranquilo e seguro. Quem declara que quer seguir a Jesus, mas não sabe renunciar a nada é como quem parece ir para frente, mas continua olhando para trás. Não é possível seguir o Mestre que será crucificado sem passar pelo desconforto do abandono, da pobreza, da insegurança. Todas coisas, porém, que afinal não dão segurança alguma, porque são tão frágeis como a própria vida que passa. Somente no Pai de Jesus é possível encontrar força, coragem e a certeza do amor. Ele sabia que não estava sozinho.

Na vida não existe “destino”, como se alguém – quem? Deus? – já estivesse tudo planejado e nós fôssemos vítimas inocentes dessas decisões. Na vida existem oportunidades e escolhas que dependem de nós. O bem e o mal, amizades e inimizades, fé, esperança e amor se constroem. Melhor não perder tempo.

Dom Pedro José Conti

A depressão do galo

Era uma vez um grande quintal onde reinava, soberano, um poderoso galo. Era especialmente orgulhoso de si mesmo, da sua força e da sua beleza. Toda manhã acordava pelo clarão do horizonte e bastava que cantasse duas ou três vezes para que o sol se elevasse para o céu.

– O sol nasce pela força do meu canto – dizia ele – Eu pertenço à linhagem dos levantadores do sol!

Um dia, porém, aconteceu que o galo dormiu mais do que o normal. Quando acordou, o sol já estava alto no céu. Ele tentou cantar, mas tinha um nó apertando sua garganta.

– Então não sou eu quem levanta o sol? – comentou desolado consigo mesmo. Com este pensamento, caiu em profunda depressão. Questionou a sua própria competência e duvidou da sua utilidade. Finalmente decidiu consultar um velho galo que tinha fama de sábio. Contou tudo o que estava lhe acontecendo e aguardou ansioso algum conselho. O sábio galo lhe disse com toda clareza:

– Meu caro irmão, você está vivendo duas ilusões. A primeira é a da “Onipotência” porque se acha o dono do sol. A segunda, que está vivendo, agora, é a da “Incompetência”, ou seja, da sua inutilidade. O perigo é viver alternando as duas e continuar a viver iludindo a si mesmo. A solução está na realidade. Você era, é e vai continuar a ser um galo absolutamente normal, cumpridor da sua função de gerenciar o galinheiro, de acordo com a tradição. Nem mais e nem menos. Volte para o seu lugar, viva a verdade e não siga as ilusões da sua cabeça.

Peço desculpa pela historinha, talvez, banal. No entanto devemos reconhecer que, a respeito da verdade, experimentamos e vivemos muitos equívocos. Muitos de nós construímos a nossa própria verdade e pensamos que seja mesmo assim. Consideramos velho tudo o que nos foi ensinado, pensamos saber mais sobre qualquer assunto, deixamos de usar o espírito crítico para viver de imaginação e ilusões. Ter consciência da nossa realidade humana e, portanto, também das nossas limitações, é o mínimo que a verdade exige de nós. Um dos princípios mais antigos da sabedoria humana, e condição fundamental para o conhecimento da verdade, é admitir que não sabemos tudo. Somente assim começamos o difícil caminho da sua busca. Essa procura é angustiante e heroica ao mesmo tempo. Muitos de nossos irmãos e irmãs tombaram por causa da verdade em todas as suas expressões. Temos os mártires da liberdade, da dignidade humana, da luta pela vida, pela terra, pela água, por um espaço de sobrevivência. Muitos também morreram por resistirem firmes na própria fé. Certos direitos que hoje consideramos intocáveis foram fruto de grandes sofrimentos. Parece que a humanidade sempre esteve, e ainda esteja, dividida entre quem tem todos os poderes, privilégios, forças e direitos e quem pode ser cerceado na sua dignidade humana. Quantos ainda pensam impor a própria verdade com a força das armas, do dinheiro, de promessas e ilusões!

Jesus diz a Pilatos que é rei, sim, mas está na pior das condições: preso, condenado, abandonado pelos seus, prestes a morrer. Que força ele tem? Onde ficou o seu poder? Esse é o paradoxo da nossa fé: o poder de Deus não se revela quando esmaga os inimigos ou quando faz milagres, supostamente, para ser acreditado. A força de Deus está na verdade e no amor. Deus não pode aniquilar os inimigos porque não tem; todos somos seus filhos e ele ama a todos e quer vida para todos, nunca a morte. Deus não pode fazer milagres para nos obrigar a acreditar, porque neste caso não seria mais fé, mas maravilha e medo do seu poder. Em Jesus, Deus escolhe o único caminho digno dele: prefere morrer que matar, prefere ser amado que temido. O Reino de Deus é diferente dos reinos humanos, tanto quanto é diferente a nossa maneira de pensar da dele. Nós queremos mandar, dominar, impor. Os resultados estão aí, visíveis. Ele somente pode e quer amar a todos. Esta é a verdade que o Filho veio nos revelar. Ter fé não é alimentar uma ilusão, é confiar no testemunho da verdade que ele nos deu. Força tão grande que nem a morte venceu.