Dom Pedro Conti
O reflexo
Uma mulher foi até a fonte do seu vilarejo. Era um pequeno espelho de água limpa e tinha árvores ao redor. Quando ela colocou o seu pote para pegar a água, viu um fruto colorido que parecia dizer para ela: “Me pegue!”. A mulher alongou o braço na fonte para pegar o fruto bonito, mas ele sumiu imediatamente. O fruto apareceu novamente quando a mulher retirou o braço da água. Fez isso duas ou três vezes. Pensou que fosse alguma bruxaria, mas querendo mesmo pegar o fruto, começou a esvaziar a fonte. Trabalhou muito. Quando secou a fonte, o fruto não estava lá. Foi naquele momento que teve a certeza de escutar uma voz que dizia: “Por que procuras em baixo? O fruto está no alto!”. A mulher levantou os olhos e viu o fruto colorido que procurava pendurado num galho. O que aparecia na fonte era somente o reflexo dele.
Nesta Quaresma, a partir do Terceiro Domingo, encontraremos trechos do evangelho de João. Todos os quatro evangelhos, com pequenas diferenças, apresentam aquela que é conhecida como a “expulsão dos vendilhões do Templo”. Mateus, Marcos e Lucas colocam esse acontecimento depois da entrada de Jesus em Jerusalém. Rapidamente se intensifica a perseguição contra ele até chegar à condenação e à morte na cruz. O evangelista João faz diferente, coloca essa ida para o Templo ainda no início do seu evangelho, logo após do “primeiro sinal” da água transformada em vinho nas bodas de Caná da Galileia (Jo 2,11). Isso significa que as atitudes e as palavras de Jesus nesses momentos têm um valor indicativo para começar a entender as disputas, as revelações, os “mal-entendidos” e os “sinais” que virão em seguida. Os discípulos interpretaram a ação de Jesus como consequência do seu “zelo”. Não foi, portanto, uma explosão de raiva momentânea, mas uma ação de denúncia contra aqueles que, para fazer os próprios interesses, aproveitavam do grande movimento de peregrinos e devotos, que cumpriam as suas obrigações com o Templo. De fato, o Templo era o centro vital de Jerusalém, não somente para os cultos e as orações, mas por toda a movimentação humana e financeira que gerava. Tendo certeza do pagamento dos impostos, tudo isso era tolerado pelos romanos que, também, tinham os seus interesses nos negócios do Templo. Até aqui, nada de muito novo: grandes templos, grandes negócios. Também nos dias de hoje. Temos que nos perguntar se ganha mais a fé dos fiéis ou o bolso dos organizadores. Os judeus, evidentemente, reclamaram da atitude de Jesus e pediram explicação. Um “sinal”, algo que justificasse o acontecido tão desagradável para eles. Aqui chegamos ao ponto central do evangelho deste domingo: uma profecia da ressurreição. É um dos tantos equívocos que pedem explicação no evangelho de João. Jesus falava do templo, mas não aquele de pedra onde eles estavam, falava do “templo” do seu corpo ressuscitado três dias após a morte na cruz. Algo impensável e incompreensível para todos, naquele momento, mas uma verdade que se tornará clara para os discípulos depois da ressurreição de Jesus, quando se lembrarão daquelas palavras.
Sem a luz da fé, nenhum sinal, por extraordinário que seja, nos conduz à confiança em Deus e ao seguimento de Jesus. Com fé, “sinais” pequenos e simples, que não dizem nada aos outros, podem ser decisivos para quem acredita. Pode ser um pequeno gesto de bondade e de partilha com um irmão necessitado, um ato de solidariedade com quem perdeu tudo, um abraço para quem chora sozinho. Toda ação que nos proporciona a alegria pelo bem que fazemos com humildade é um pequeno sinal que algo está mudando em nós, começa a aparecer o “homem novo”, o homem da Páscoa, livre da indiferença e do egoísmo. Às vezes, nós também somos tentados a pedir e a acreditar em grandes sinais. Devemos sempre olhar para o alto, ou seja, para a grandeza e a bondade de Deus, que Jesus veio nos fazer conhecer. Nem sempre grandes construções ou grandes eventos ajudam a aumentar a nossa fé. Rezemos para que eles sejam, ao menos, “reflexos” não do nosso orgulho ou sonhos de superioridade, mas sinais de uma fé “grande” de verdade.
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Quaresma e Campanha da Fraternidade 2
A página evangélica da Transfiguração do Senhor (Mc 9,2-8), que encontramos no Segundo Domingo da Quaresma, está bem no centro do escrito de Marcos. Além do acontecimento extraordinário deixamo-nos conduzir pela catequese desse evangelista. Precisamos entender quem é este Jesus para vencer a tentação de fugir na hora da sua Paixão. Só uma fé sólida e luminosa poderá superar o medo do sofrimento e da morte.
O evangelho de Marcos se abre com as palavras: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). No momento do batismo no rio Jordão é a voz do Pai que declara: “Tu és o meu Filho amado; em ti eu me agrado”. Na Transfiguração a voz do Pai confirma: “Este é o meu Filho amado. Escutai-o!” Pedro também confessará: “Tu és o Cristo”. Na hora da paixão, aparece o letreiro que Pilatos mandou colocar sobre a cruz: “O Rei dos Judeus”. Rei e Ungido, Cristo, são títulos equivalentes. Por fim, encontramos as palavras do centurião romano: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”. Dois pagãos confirmam a identidade de Jesus. No entanto, Jesus quando fala de si mesmo se apresenta como “o Filho do Homem”, com referência à antiga profecia de Daniel. Voltando à página da Transfiguração, Jesus, luminoso, está entre Moisés e Elias e conversa com eles. Ele, então, é o novo Moisés e o novo Elias, mas também é o Homem Novo, o “novo Adão”. Por que isso é tão importante? O “velho” Adão não resistiu à tentação do orgulho de querer ser como Deus. Por que devia obedecer? Ainda pensamos: quem é Deus para mandar em nós? Uma compreensão autoritária e não amorosa de Deus nos conduz à desobediência. O próprio Deus de amigo e aliado se torna inimigo, alguém que atrapalha os nossos planos de poder e dominação. Jesus é o “novo Adão” que resgata a humanidade com a sua obediência confiante no Pai. Ele venceu a tentação de desistir. Não desceu da cruz quando lhe gritavam para “salvar a si mesmo” . Só assim teriam acreditado. O Filho de Deus, porém, não se tornou humano para salvar a si mesmo, mas para abrir a toda a humanidade um novo caminho para encontrar e reconhecer o Deus verdadeiro: generoso e não interesseiro, respeitoso da liberdade humana e não um fiscal ameaçador. Um Deus “amor” que somente doa e se doa a quem o acolhe e confia nele como Pai amoroso. Sempre, também, quando parece não atender aos nossos pedidos. Isso é ter fé no Deus Pai de Jesus Cristo. Não acreditamos num Deus de parte, que dá privilégios somente a alguns e esquece os demais. Num Deus que deve resolver as questões a nossa vantagem. Esse seria um deus pagão, fabricado à imagem e semelhança nossa, pronto a fazer a “nossa” vontade. Acreditamos num Deus que, no Filho Jesus, acolhe a todos como filhos e filhas amados e nos conduz com paciência e misericórdia no caminho da fraternidade.
Aqui está o fundamento de toda a amizade social, assunto da Campanha da Fraternidade deste ano. Não podemos apelar a Deus para exigir mais respeito, direitos e bem-estar na vida somente para nós. Menos ainda usar o nome de Deus para praticar injustiças ou agredir aqueles que pensam diferente e têm projetos divergentes dos nossos. É justamente o contrário. Ao reconhecer o Deus de Jesus Cristo como Pai de todos reconhecemos os laço que fazem de nós uma única humanidade. Não será uma ideologia, um sistema ou algum iluminado a construir a amizade social, porque ainda seria obra humana limitada e passageira. Precisamos reconhecer Jesus como único Mestre, Deus Pai como único pai de todos e o Espírito Santo como guia a nos conduzir. O “inimigo” é o mal que se aninha em nosso coração e nos impede de enxergar nos outros irmãos e irmãs, com os quais deveríamos construir um mundo de diálogo, de colaboração e paz. Deus nos cria, todos, à imagem e à semelhança dele, mas com muitos dons diferentes, não para disputarmos entre nós, mas para nos enriquecer uns aos outros com as diversidades. A busca da “amizade social” não é “ilusão” do Papa Francisco, é a proposta possível que surge da nossa própria fé para construir uma nova humanidade, mais unida, fraterna e solidária.
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Bombeiro de verdade
“A doença de seu filho não tem cura. Não há mais nada a ser feito”, disse o médico à mãe do menino. Ela sabia das condições do seu filho. Por isso aproximando-se dele, perguntou-lhe qual era o seu maior sonho. Ele respondeu:
– Eu gostaria de poder andar num carro de bombeiros.
A senhora foi até o Corpo dos Bombeiros e expôs a situação ao comandante.
– Vamos torná-lo bombeiro por um dia. Disse o chefe. Na data marcada alguns bombeiros vestiram a criança com um uniforme do seu tamanho e o levaram junto para as atividades marcadas naquele dia. Os olhos do menino brilhavam de tanta alegria. No final da tarde, o devolveram para o quarto do hospital. Dias depois, o menino estava muito mal. A mãe avisou o comandante que o amigo deles “estava partindo”. De pressa, o chefe dos bombeiros foi para o hospital com um grupo de colegas. Colocou uma escada do lado de fora do prédio; entrou no quarto pela janela e abraçou o menino. Ele abriu os olhos e perguntou:
– Eu sou mesmo um bombeiro? – Sim, você é um bombeiro de verdade! Respondeu o comandante. Com o semblante feliz e sereno, a criança deu o seu último suspiro.
O evangelho de Marcos do 5º Domingo do Tempo Comum nos apresenta, as ocupações de uma jornada de Jesus: até o pôr do sol, ele expulsa demônios e cura doentes. Muitas pessoas – “a cidade inteira”- reúnem-se em frente da casa onde Jesus estava. “Todos estão te procurando”, dizem-lhe os discípulos. Ele atende a multidão, mas levanta de madrugada para rezar sozinho num lugar deserto e, em seguida, decide resolutamente continuar o seu caminho andando pelas aldeias da redondeza e pregando nas sinagogas. Novamente, o evangelista não explica o ensinamento de Jesus e dá a preferência àquilo que ele faz: curar de diversas doenças. A novidade do Reino deve ser explicada, mas também, ou antes, experimentada: o Deus Pai que Jesus anuncia é o Deus da vida, da saúde, da alegria, da libertação de tudo o que prende e entristece o ser humano.
Pode ser que a nossa primeira reação ao refletir sobre páginas evangélicas como esta seja pensar que, afinal, certas coisas somente Jesus podia fazer. Curas? Só ele. Nós podemos admirá-lo, chegar até a invejar aquele povo que não tinha hospital, mas tinha Jesus que resolvia qualquer tipo de doença. Chegamos à conclusão que tudo isso talvez seja mais propaganda que verdade e, portanto, não nos toca de perto. Hoje, as coisas funcionam de maneira diferente. Na realidade, o evangelista Marcos quer nos conduzir a perceber outro tipo de “milagre”, que todos podemos praticar quando decidimos seguir Jesus e entendemos que o “extraordinário” dos evangelhos faz parte daquele anúncio de vida nova, que busca transformar o nosso coração de pedra num coração de carne, mais humano, amoroso e solidário. Jesus nos ensina a gastar tempo e energias em favor dos irmãos mais pobres e sofredores, com dedicação e paciência. Facilmente delegamos o compromisso de fazer o bem – incluindo muitas obras de assistência e caridade – a alguns encarregados religiosos ou não. O importante é que os pobres não nos incomodem e não fiquem na frente da porta da nossa casa. Não queremos ver e nem saber. A desculpa é aquela de sempre: não podemos fazer milagres e nem ajudar todo mundo. Também fomos enganados tantas vezes com casos lacrimosos que agora duvidamos quase sempre da palavra de quem pede socorro. O resultado é que, talvez, desse jeito não ajudamos mais ninguém. Temos medo de nos envolver. Aqueles que pedem sabem muito bem que não vamos resolver todos os problemas deles, mas, muitas vezes, um gesto de compaixão, de solidariedade, de paciência para escutar uma história mal contada, já é algo diferente que quebra o gelo da nossa indiferença. Esquecemos que um sorriso pode ser precioso para alguém que todo dia experimenta a rejeição ou mesmo o desprezo. Jesus cura a nossa falta de amor, dando o exemplo e também ensinando, cobrando o amor ao próximo para que não seja falso o nosso amor a Deus. Os bombeiros não salvaram o menino da morte, mas, por um momento, o fizeram feliz. Também isso é milagre de amor.
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Não é fácil
“Não é fácil: pedir desculpa, começar tudo de novo, reconhecer que erramos, ser generosos, aceitar um sorriso de desprezo, ser perseverantes nas dificuldades, aprender com os erros, perdoar e esquecer as ofensas, refletir e agir corajosamente, usar ao máximo os dons de Deus, aceitar uma repreensão não merecida, dominar um temperamento agressivo, corrigir uma língua maliciosa, colocar-se à disposição da comunidade, defender a vida. Não, não é fácil.”
No 3º Domingo do Tempo Comum, o evangelho de Marcos nos apresenta o início daquela que chamamos de “vida pública” de Jesus. Quase nada sabemos a respeito dos mais ou menos trinta anos anteriores. Agora, depois que João Batista foi preso, Jesus começa a falar e agir. Ele tem um anúncio para dar e uma missão a cumprir. As duas coisas, se assim podemos chamar, aparentemente tão diferentes, de fato acontecem juntas. Jesus anuncia a chegada, o início ou, melhor ainda, a presença do Reino de Deus e lança o convite à conversão, ou seja, à adesão comprometida a este Reino. Esse “anúncio”, como todas as notícias, boas ou não, é feito através de palavras, porém o Reino de Deus é um acontecimento. Com Jesus, no falar e no agir dele, o Reino se torna visível, pode-se encontrar, já está acontecendo. A “boa notícia” de Jesus não é simplesmente uma palavra nova, uma manchete, é uma pessoa – ele mesmo – que começa a fazer acontecer uma presença diferente, inédita, de Deus na história humana. A acolhida do Reino coincide, portanto, com a adesão à mensagem e à pessoa de Jesus. Por isso, ele chama discípulos a segui-lo, não simplesmente a compreender e a gostar dos seus ensinamentos, mas os chama para estar com ele, vivendo assim, no dia a dia, o evento do Reino de Deus. A “conversão” ao Evangelho do Reino pede uma mudança de vida, um deixar “redes e barcos”. Jesus chama aqueles primeiros a uma missão: serão enviados para serem “pescadores de homens” (Mc 1,17), não mais de peixes.
É sempre animador ver a resposta imediata de Simão, André, Tiago e João, os primeiros quatro. Foi fácil? Aparentemente sim, mas, de fato, os evangelhos não escondem as dúvidas, os mal-entendidos, os medos e a covardia dos apóstolos, sobretudo na hora da cruz: “Então, abandonando-o, todos fugiram” (Mc 14,50). Seguir Jesus, aceitar entrar na dinâmica do Reino não é nada fácil. No entanto, não é para desanimar, ao contrário, saber que um caminho é difícil e desafiador deve nos estimular à resistência, à perseverança, à fidelidade. Não estamos sozinhos nessa empreitada, estamos com Jesus, com o Espírito Santo, com a Comunidade dos fiéis, com os santos e as santas, os mártires, todos aqueles que nos precederam no seguimento do Senhor. Precisamos lembrar tudo isso para não desistir e desanimar com as quedas e as derrotas.
Nunca Jesus disse que ser amigo dele seria fácil. Falou de perseguições e cruzes. Além disso, ele nos ensinou, através das parábolas, que o Reino cresce aos poucos e muitas vezes precisa procurar bem para chegar a encontrá-lo. Igualmente Jesus disse que o Reino é oferecido a todos, mas nem todos o acolhem. Por isso, às vezes, temos a impressão de sermos muitos, outras vezes devemos reconhecer que somos bem poucos. Se para seguir Jesus, esperamos que “todos” o façam, não sabemos quando e como isso acontecerá. Perderíamos a chance de decidir com a nossa liberdade, vontade e responsabilidade. E o amor, entra nisso também? Nós cristãos temos medo, como todos os seres humanos, de errar, de ser enganados, de não ser felizes por causa das nossas escolhas. Não é fácil arriscar. “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada apanhamos, mas, por tua palavra, lançarei as redes” (Lc 5,5), disse certa vez Simão Pedro a Jesus e a pesca foi extraordinária. Todo dia, todos nós tomamos decisões, falamos muito, somos fascinados e nos encantamos por coisas e pessoas. Por que tanto medo de nos envolver com Jesus, com o Reino de Deus, a justiça, a verdade, o amor e a paz? Não é fácil escolher o bem. Mas por que tanta desconfiança? Jesus continua a nos chamar. Vamos responder?
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O que estais procurando?
Um homem encontrou o seu vizinho ajoelhado e procurando alguma coisa no chão.
O que o senhor está procurando? – perguntou.
– Minha chave perdida – respondeu o vizinho. Então, puseram-se os dois, de joelhos, a procurar a chave. Depois de algum tempo, o homem perguntou:
– Onde foi que o senhor perdeu a chave?
– Na minha casa – respondeu o vizinho.
– Mas, santo Deus, porque a procura aqui?
– Porque aqui há mais luz. Foi a resposta.
Chegando ao Segundo Domingo do Tempo Comum, encontramos um trecho do evangelho de João. É uma página cheia de afirmações, perguntas e respostas, uma mais intrigante que a outra. Tudo começa com uma declaração de João Batista que, ao ver Jesus passar, diz: “Eis o Cordeiro de Deus”, palavras carregadas da lembrança de tantas profecias. Seguem duas perguntas. A primeira é do próprio Jesus para os dois discípulos de João que começaram a segui-lo: “O que estais procurando?” Por sua vez, os dois indagam: “Mestre onde moras?”. Em resposta Jesus os convida: “Vinde ver”. Eles foram e “permaneceram com ele”. Nenhum detalhe, nenhum endereço, só uma das ações “chave” na linguagem do evangelho de João: permanecer. Não é o lugar que vale, casa ou templo que seja, o importante é entrar na intimidade com Jesus, ao ponto de lembrar o horário do início daquela nova aventura: as quatro da tarde. As consequências são imediatas. André, um dos dois que tinham seguido Jesus vai atrás do seu irmão Simão para conduzi-lo ao Mestre e lhe diz: “Encontramos o Messias”, o Cristo, o Ungido, o Esperado. Por sua vez, Jesus olha bem para Simão e troca o nome dele. Será chamado Cefas, pedra. Um nome novo, como nas grandes vocações do Antigo Testamento.
Depois dos Tempos litúrgicos do Advento e do Natal, temos alguns domingos antes da Quaresma. Através das leituras, a Igreja quer nos ajudar a nos aproximar de Jesus para conhecê-lo melhor e, assim, decidirmo-nos a segui-lo de verdade. Na realidade, não somos nós a escolher Jesus, é ele que nos chama como Deus chamou, por exemplo, o profeta Samuel (primeira leitura). A iniciativa é sempre dele, também se, como vimos no evangelho, se serve de intermediários, neste caso João Batista e André. Jesus respeita a nossa liberdade, não quer ser o Mestre de quem nunca encontra tempo para estar junto com ele. Por isso, pergunta também a cada um de nós o que estamos procurando. Ele quer nos ajudar a descobrir e a reconhecer aquilo que mais nos interessa, aquilo para o qual estamos dispostos a gastar a nossa vida. É na “casa”, na convivência, na veracidade e espontaneidade das perguntas e respostas que conhecemos as pessoas. Sem a preocupação de cumprir papeis oficiais, sem aparências a serem preservadas, sem outros interesses que não sejam a verdade e o bem. O Mestre Jesus se deixa encontrar e reconhecer por quem o procura com coração limpo e livre. Quem quer fazer negócios, quem quer usá-lo para algum lucro ou vantagem própria, quem ainda não sabe o que procura na vida, pode ir atrás de outros mestres. Tem de sobra. Sempre terá muitos oferecendo felicidade, recompensas e prosperidade neste mundo ou no outro. Talvez falem de perdão, de fraternidade e de paz. Provavelmente ninguém falará de amar os inimigos, de fazer o bem aos perseguidores, de perdoar quem está crucificando um inocente, de construir unidade para que o mundo creia que somente ele, o Messias, pode anunciar a ressurreição e a vida plena. É possível começar a seguir a Jesus quando admitirmos que é ele mesmo que estamos procurando, quando temos fome e sede de justiça, quando não ficamos mais satisfeitos com as nossas conquistas individuais e nos sentimos chamados a servir a um projeto maior de vida, dignidade e respeito para todos. Hoje é fácil perder o entusiasmo da fé, a paciência da esperança, a energia do amor. Onde, como, quando perdemos tudo isso? Não será aproveitando de qualquer meia luz por aí que conseguiremos reencontrar o sentido grande da nossa curta existência humana. Não tenhamos medo de nos repetir uns aos outros: encontramos o Cristo e não queremos nunca mais perdê-lo.
Feliz ano novo!
O casamento deles já tinha completado os 24 anos. Todas as vezes que deviam se separar, nem que fosse por um só dia, eles trocavam três beijos. As filhas e os amigos ironizavam sobre esse costume. Até que um dia o pai explicou: “Os três beijos não são de despedida, mas para recordar o que significa a nossa união matrimonial. O primeiro beijo é para o coração, porque os nossos corações devem estar unidos no amor e na compreensão mútua. O segundo beijo é para a mente. Todos passamos por muitas provas e tribulações. Algumas vezes, não estamos de acordo sobre algumas questões, mas nos momentos importantes somos uma só pensamento e uma só decisão. O terceiro beijo é para dizer obrigado, porque estamos em paz e, assim, lembrar o quanto lutamos para construir esta união ao longo de tantos anos. Tudo é dom de Deus por isso devemos sempre agradecer. Podem rir de nós, mas é assim que mantemos vivo o nosso amor.”
Com o Domingo da Sagrada Família de Jesus, Maria e José temos a oportunidade de fechar o ano velho e de iniciar o novo pensando e refletindo sobre as nossas famílias: o que tem de bom e o que poderia ter de melhor. Apesar de vivermos na sociedade da pressa, das comunicações e dos compromissos, as nossas “famílias”, ainda, são lugares onde podemos ser, nós mesmos, mais espontâneos, mais livres. Em nossas casas, também, temos tarefas e responsabilidades, mas por nossa escolha e não por interesse ou obrigação. Em casa, somos nós que decidimos se seremos gentis e amáveis ou ríspidos e grossos. Os nossos familiares não são clientes para agradar ou convencer, cobradores de serviços ou de resultados. A nossa família não pode funcionar como uma empresa que visa o lucro e a eficiência. As relações são outras, os laços que nos unem são bem diferentes. No entanto, é comum ouvir dizer que em lugar de ser o ambiente familiar a transformar a sociedade, num conjunto mais humano, fraterno e solidário, é a sociedade do consumo, do sucesso e do individualismo a condicionar as nossas famílias banalizando os afetos, esfriando os relacionamentos, rompendo aqueles laços que deveriam ser, sobremaneira, amorosos. Toda família deveria surgir por uma escolha de comunhão e de amor e não deveria se deixar vencer pela indiferença, o egoísmo e a provisoriedade.
No evangelho deste domingo da Sagrada Família, o velho Simeão, depois de ter anunciado que aquele menino seria “luz para iluminar as nações e glória do povo de Israel”, declara que Jesus será também “causa de queda como de reerguimento… Ele será um sinal de contradição. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações”. (Lc 2,32-35). A profecia significa que o “Messias” não terá caminho fácil e até a mãe Maria irá sofrer. Mas nos convida, também, a não ter medo de confrontar os nossos pensamentos com a mensagem de Jesus, com o seu projeto de amor e de paz. Quando refletimos sobre o matrimônio e a família, talvez achamos que o Senhor seja exigente demais. Apavoram-nos compromissos duradouros. As palavras “para sempre” são bonitas, mas acabamos acreditando pouco nelas. Parecem-nos mais amarras que nos prendem de que caminhos a serem percorridos juntos até o fim com decisão e confiança, com esforço e humildade. Dessa forma, não somente duvidamos da força que Deus não deixa faltar aos seus amigos, mas também das nossas próprias possibilidades de viver um amor único e exclusivo com quem decidimos partilhar a vida, com tudo o que somos e temos. Como todas as coisas humanas, a vida matrimonial, também se abençoada por Deus, não tem garantia absoluta de êxito feliz, porque sempre será o resultado de muitos fatores que incluem as nossas fraquezas, as circunstâncias da vida e, sobretudo, a nossa fé. No entanto, devemos ser nós cristãos os primeiros a acreditar no amor e na fidelidade das pessoas. “Ser família” é um chamado, uma missão, um sinal de esperança para quem nunca conheceu a acolhida, a gratuidade, o perdão. Somente de famílias em paz podem surgir homens e mulheres construtores daquela paz que ainda tanto falta no mundo. Benditos os três beijos daquele casal. Quem quiser pode ironizar.
Os dois burrinhos
No dia de Natal, também dois burrinhos chegaram à gruta de Belém. Estavam magros e cansados. As suas costas estavam feridas por causa dos duros golpes de bastão e dos pesados sacos de farinha de trigo que o patrão os obrigava a carregar todo dia. Tinham ouvido os pastores falarem da chegada do Rei dos Reis e eles também se animaram e correram para lá. Ficaram um momento a contemplar a Criança recém-nascida. A adoraram e fizeram orações como todos. Quando saíram, o terrível patrão estava à espera deles. Partiram de volta cada um com a sua carga pesada na garupa.
– Não serve para nada – disse um deles – Rezei ao Messias que me tirasse o peso das costas, mas ele não o fez.
– Eu, ao contrário, – respondeu o outro, trotando com certo vigor – pedi-lhe que me desse a força para carregá-lo.
Estamos acostumados, neste tempo de Natal, a nos desejar paz e alegria uns aos outros. Todos caprichamos em encontrar as palavras mais bonitas para expressar os sentimentos mais altos e valiosos. É muito bom, porque, ao menos por alguns dias, todos concordamos que a nossa convivência humana poderia ser melhor. Devemos aproveitar bem esses momentos, para que o Natal não se transforme numa formalidade quase obrigatória de cumprimentos e troca de presentes. Cabe a cada um de nós ser sincero e honesto com nós mesmos e com os demais. Temos a oportunidade de pedir desculpa se fizemos algo errado e ofendemos alguém. Podemos abraçar de novo quem nos virou as costas ou nós mesmos excluímos das nossas conversas. É sempre possível lembrar momentos bons e esquecer para sempre situações constrangedoras.
É Natal! E com o Menino Jesus que nasce tudo parece recomeçar. Cabe a cada um de nós decidir o que será diferente ou se, muito em breve, tudo voltará como antes. Retomaremos a nossa rotina de família, de trabalho, de luta pela sobrevivência, de disputas pelo poder, de espertezas para derrubar os outros e afirmar as nossas pequenas superioridades. Cabe a nós mudarmos as coisas, as relações e os sentimentos. Foi isso que Jesus nos veio ensinar. Não resolveu todos os problemas, não quis nos obrigar a sermos bons se não queremos, mas ele começou algo novo, tão diferente que foram poucos o que o compreenderam. Quando curava aos sábados, as autoridades o acusavam de colocar o ser humano doente e excluído no lugar de Deus. Quando perdoava os pecados em nome de um Pai misericordioso e convidava a mudar de vida, foi considerado perigoso porque acabava com o medo do castigo de Deus. Quando proclamava felizes os pequenos e os pobres e convidava a olhar a beleza das flores dos campos, foi chamado de louco e sonhador. Foi crucificado porque anunciava um Reino de Amor que não cabia em nenhum esquema, em nenhuma ideologia e nem na religião do Templo. Mas ele começou. Foi algo novo que continua sempre novo ainda hoje. É o novo que incomoda, que mexe na nossa indiferença, no nosso comodismo e bem-estar, no nosso bom-senso, equilíbrio e prudência. Jesus foi exagerado em tudo, na pobreza, no amor até o fim, no perdão a quem o matava. Ele só começou, cabe a nós cristãos continuarmos a missão dele. Ainda esperamos que seja ele a resolver os problemas que nós criamos, a acabar com as guerras que nós iniciamos, a refazer o jardim da criação que nós destruímos. Rezamos muito para que ele faça o que nós não temos coragem ou vontade de fazer. Reclamamos e achamos que Deus deveria intervir. Ele já veio e nos mostrou que é possível fazer diferente, que é sempre possível recomeçar na humildade, no reconhecer que precisamos de ajuda, de luz, de esperança, que precisamos de um Deus mais humano que caminhe conosco e nós prontos a seguir os seus passos. Agora, a responsabilidade é nossa. É o peso da história que a humanidade está escrevendo, mas não estamos sozinhos, não estamos sem rumo, sem projeto, sem fé. Neste Natal, peçamos ao Menino Jesus a força de fazer a nossa parte, de colaborar com a nossa carga de amor e de paz. Sem desistir. Será difícil, mas não impossível. Feliz Natal para todos e todas!
O trem silencioso
Voltando de uma viagem, um casal contou que no trem que vai da estação central de Oslo para o aeroporto, em vinte minutos, tem um vagão reservado como “Área de silêncio”. Ninguém pode falar. O trem oferece aos seus passageiros alguns minutos de silêncio “obrigatório” e, como está escrito num painel, convida-lhes a aproveitar da viagem. Com a língua parada, ativa-se o ouvido: também o trem é realmente silencioso. No silêncio, começa a funcionar a cabeça. Os pensamentos chegam. Rapidamente, aquele silêncio parece importante como se revelasse algo mais profundo que as palavras interrompidas. Ao chegar, o casal se perguntou: “sobre o quê estávamos discutindo tão animadamente?”. Aquele silêncio lembrou algo mais essencial, menos banal e superficial. Saudade de refletir mais, de escutar mais. Talvez silêncio, poesia e fé andem juntos.
Na Liturgia do Segundo Domingo de Advento encontramos o início do Evangelho de Marcos, que nos acompanhará ao longo deste novo ano litúrgico. Logo se diz qual é o assunto: é a “Boa Notícia” de Jesus Cristo, Filho de Deus. Um anúncio importante precisa de um mensageiro que prepare o povo à escuta e à acolhida. Essa foi a missão de João Batista que, no deserto, convidava todos a um batismo de conversão e de perdão dos pecados. Era um ritual de purificação, um batismo de penitência, nas águas do Rio Jordão. A pregação do Batista é clara: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu…ele vos batizará com o Espírito Santo” (Mc 1,7-8).
Todos já sabemos que o Tempo de Advento são aquelas semanas que nos preparam para o Natal. Com tanta movimentação nas ruas e no comércio, com a chegada das festas do fim de ano, será que ainda conseguimos viver um pouco daquele clima de espera, que nos ajuda a acolher aquele Jesus que se faz criança para entrar pequeno e humilde em nossas vidas? Talvez precisemos fazer novamente a experiência de um pouco de silêncio, um espaço de “deserto” para dar atenção à voz do Batista: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” Tudo, ou muito, depende daquilo que esperamos para nós, para as nossas famílias, para a humanidade inteira. Todos vivemos a grande tentação de buscar logo o que é mais fácil, mais perto, o que parece nos dar alguma imediata satisfação. Perdemos o gosto de percorrer um caminho, de aprender aos poucos, de esperar para ser surpreendidos por algo novo e cada vez melhor. Não estou falando de algum produto que possa ser comprado depois de lançamentos badalados, de longas filas ou de alguma inacreditável promoção. Estou falando da nossa própria fé. Sem a paciência de interiorizar, de refletir e avaliar por onde anda a nossa vida, dificilmente descobriremos que, afinal, mais do que nós, era o próprio Senhor que vinha ao nosso encontro. É isso que celebraremos no Natal: a sua vinda na carne humana, irmão de todos para nos dizer, com a sua vida e as suas palavras, que Deus está mais perto do que pensamos e nos ama mais do que conseguimos imaginar. Mas para que nos seja possível saborear a sua presença viva precisamos preparar o caminho, arrumar um pouco de espaço no nosso coração apressado, confuso e distraído. Fazer um pouco de silêncio dentro e fora de nós, não é perder tempo, ao contrário, é um grande presente. Somente quando olhamos honestamente para dentro de nós, podemos perceber o que nos interessa realmente: os nossos afetos, as nossas escolhas, as pedras de tropeço que poderíamos tirar do caminho. Sem dúvidas, existem palavras “mágicas” que nos aproximam mais das pessoas que amamos: obrigado, desculpa, te quero bem… Existem, porém, silêncios que falam por si mesmos, quando, infelizmente, nos fechamos e nos tornamos indiferentes uns aos outros, mas também existem silêncios que surpreendem, porque se transformam em gestos de amor e amizade, em abraços e sorrisos. Será que precisamos ser “obrigados” ao silêncio, como no trem de Oslo, para aprender a olhar mais e a escutar mais antes de falar o que nos passa na cabeça em discussões sem fim? Lemos no profeta Oseias (2,16) o que Deus queria fazer com o seu povo/noiva: “… a conduzirei ao deserto e lhe falarei ao coração”.
O novo Missal
Com o Primeiro Domingo de Advento iniciamos o novo Ano Litúrgico. No Brasil, a partir deste domingo, começaremos a usar, em nossas missas, o novo “Missal”. Para quem não sabe, este é o nome que damos àquele “livro” grande do qual o padre que celebra a missa tira as palavras que pronuncia, proclamando algumas e falando em voz baixa outras. Diferente é o livro do qual são lidas as leituras da Palavra de Deus, chamado de “Lecionário”. Todo padre deve seguir o que está escrito no Missal, não por mera obrigação, mas porque ele não está celebrando um ritual fruto de sua própria criatividade. Ele está dizendo palavras que, apesar de serem traduzidas e adaptadas para as diversas línguas do mundo inteiro, são as mesmas para todos os cristãos representando, assim, a mais firme unidade e a mais sólida comunhão. De fato, tudo começou com uma edição do Missal, chamada “típica” (escrita em latim!), ou seja, de referência para todos. Depois, coube a cada Conferência Episcopal a tradução e a escolha daquelas partes que serão próprias de cada país. Por exemplo, depois dos Santos e Santas que são venerados no mundo inteiro, têm Santos e Santas propriamente brasileiros, conhecidos somente por aqui. Outra questão diz respeito a certas expressões da linguagem, que assumem sentidos diferentes também se os países falam e usam a mesma língua. Toda língua viva, ou seja, falada por um povo, vai se modificando e se torna necessário introduzir palavras novas, justamente porque as mais antigas caíram em desuso e não expressam mais, como deveriam, o seu rico sentido. No entanto, o que é fundamental para a celebração permanece igual para todos em qualquer lugar. Poderíamos dizer que o novo Missal é mais uma atualização necessária da nossa maneira de rezar para que continuemos a vivenciar, com participação ativa e alegre, as nossas celebrações litúrgicas e, assim, sermos confirmados em nossa fé, conforme o antigo ditado: “Lex orandi, lex credendi”, o que rezamos é o mesmo que acreditamos. Rezar diferente, poderia parecer que cremos também diferente!
Quis explicar um pouco tudo isso, porque ouviremos muitos católicos dizer que “agora a Missa mudou”. Nada disso! As novas fórmulas de oração e de respostas foram introduzidas para ajudar a rezar melhor e, esperamos, entender melhor o que estamos dizendo e fazendo. Com certeza, serão essas novas palavras a chamar a nossa atenção e precisaremos de um tempo para nos adaptar. A Liturgia católica, porém, não é feita só de palavras, ela é um conjunto de muitas outras formas de participação do povo fiel, que nunca deve ser um mero expectador de uma representação ou encenação feita pelo presidente da celebração mais alguns ministros e cantores em destaque. Papa Francisco no n.42 de sua Carta Apostólica sobre a Liturgia “Desiderio desideravi” apresenta um breve elenco desses “elementos que são exatamente o oposto de abstrações espirituais: pão, vinho, óleo, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaços, movimento, ação, ordem, tempo, luz”.
Talvez alguns se perguntem se vai ter espaço para a criatividade das pessoas ou dos diversos grupos. Vai ter sim, porque alguns momentos, gestos e palavras são deixados sob a responsabilidade do presidente da celebração. No entanto, a Missa não pode ser pensada como algo a ser construído “a gosto do freguês”, porque o que estamos celebrando não é propriedade nossa, é de toda a Igreja, dela a recebemos e em comunhão com ela a realizamos. Por reservada que seja, nenhuma Missa é “particular” ou privativa, ela é sempre o memorial da Páscoa de Jesus Cristo, o evento daquela salvação que é oferecida e alcança a todos. Limitar a própria criatividade não quer dizer celebrar as Missas de forma mecânica, fria e impessoal. Significa acolher com confiança aquilo que nos é proposto no Missal dando ênfase às expressões que lá estão, preparadas por quem, com certeza, fez isso para nos ajudar a rezar melhor. Espero que o uso atencioso do novo Missal seja uma excelente oportunidade para todos, para redescobrir e valorizar mais a beleza e a alegria das nossas celebrações litúrgicas. Porque junto a isso vai sempre a nossa fé.
Folhas e frutos
Disse um velho sábio: “Quem tem palavras, mas não tem obras, é como uma árvore que tem folhas, mas não tem frutos. Contudo, como uma árvore com frutos tem muitas folhas, assim aquele que cumpre boas obras tem também palavras boas”.
No 33º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do capítulo 25 do evangelho de Mateus e encontramos a parábola dos talentos, uma das mais conhecidas e comentadas. Lendo-a somos tentados de identificar cada personagem com alguém e os próprios talentos com qualidades e aptidões que, muitas vezes, reconhecemos em nós e nas outras pessoas. Podemos fazer isso e até imaginar que Jesus esteja nos convidando a multiplicar os talentos com uma visão interesseira de negócios lucrativos. Afinal, este patrão-Senhor chama de bons e fiéis os servos que dobraram o patrimônio recebido. Todas as parábolas correm este risco: ser lidas com o nosso olhar atual, preocupados em manter os nossos pontos de vista. Sem dúvida, a parábola é uma exortação à laboriosidade e não à preguiça e à acomodação. Contudo, a questão que deve chamar mais a nossa atenção é o relacionamento entre o patrão-Senhor e os servos e como eles o reconhecem de maneira tão diferente. O “homem” que vai viajar entrega os seus bens aos empregados e, dessa forma, manifesta uma extrema confiança neles. Distribui os seus bens “de acordo com a capacidade” de cada um (capacidade, não merecimentos) e não lhes dá nenhuma indicação sobre como devem usar aqueles bens. Por isso é bastante evidente que os três empregados agem livremente, mas, ao mesmo tempo, conforme o que pensam do patrão. Os dois primeiros entendem que foram agraciados com aqueles talentos e se sentem na obrigação de multiplicá-los, reconhecendo assim o valor do dom recebido com total gratuidade e confiança do patrão. Quando o Senhor volta, eles apresentam o resultado do seu trabalho com a mesma atitude de generosidade, não pretendem e nem reclamam recompensa. É o próprio patrão-Senhor que os elogia e diz que foram fiéis “na administração de tão pouco”, merecem mais confiança ainda. A relação de gratuidade e colaboração entre eles e o patrão continua na participação da alegria daquele Senhor.
Bem diferente é o pensamento do terceiro empregado que é de medo do patrão. Para ele o Senhor é “um homem severo” que colhe onde não plantou e ceifa onde não semeou (Mt 25,24-25). Esse último empregado não acolheu o talento como um dom, nem pensou na confiança do patrão que queria tê-lo, de fato, como parceiro na plantação e na colheita. Simplesmente ele não fez nada e pensou que o patrão, por sua vez, recebendo o talento inteiro de volta, não podia lhe cobrar mais nada. Assim, o servo “mau e preguiçoso” e ainda “inútil”, não participou da alegria do seu Senhor porque, afinal, não o reconheceu como alguém que lhe dava a maior confiança e a maior liberdade para corresponder com criatividade àquela imerecida gratuidade.
Não preciso juntar mais explicações. Talvez a parábola dos talentos seja, afinal, a parábola da nossa vida, de tudo aquilo que somos e temos e que recebemos da bondade de Deus. De maneira especial, como cristãos, quanto e quantas vezes continuamos a pedir a Deus mais coisas, mais bens, mais solução de problemas que nós criamos, como se nunca tivéssemos recebido nada, como se Deus nunca nos tivesse entregue a vida e o planeta no qual passamos os poucos dias da nossa existência. Quantos talentos desperdiçamos, usamos de forma egoísta e interesseira ou deixamos enterrados por não querer entender a única “cobrança” que o Deus-Pai que Jesus nos fez conhecer nos solicita. Justamente aquela de usar de tantos bens recebidos com tanta variedade, bens materiais e espirituais, para multiplicar a bondade, a solidariedade, a partilha e assim convocar todas as pessoas a participar da alegria do Senhor que nos quer todos irmãos porque todos somos seus filhos amados. Menos palavras inúteis e mais ações então. Ou mais palavras boas que sirvam para entender, amar e agradecer o único Pai de todos.