Dom Pedro Conti

Longitude e latitude

Durante a aula de geografia, uma criança, em sua simplicidade, respondeu às perguntas da professora e disse: “A vantagem da longitude e da latitude é que quando estamos afogando podemos gritar em que longitude e latitude estamos e, assim, poderão nos encontrar”.

 

O evangelho de Mateus, deste 19º Domingo do Tempo Comum, apresenta-nos uma situação inusitada e surpreendente, cheia de simbolismos e de mensagens. Com a costumeira arte narrativa dos evangelhos, as coisas vão acontecendo. Jesus decide se despedir das multidões depois de ter satisfeito a fome delas. Pede aos apóstolos que o precedam, de barco, para a outra margem do lago de Tiberíades. Ele fica sozinho para orar. Aquela que devia ser uma simples travessia ameaça se tornar uma tragédia. Uma súbita ventania contrária agita as ondas e o barco dos discípulos não alcança a terra firme. Era mesmo para ficar com medo. Os experientes pescadores, porém, não gritam por causa das ondas. Ficam apavorados, porque na escuridão da noite enxergam uma figura humana caminhando ao encontro deles por cima das águas. Estava acontecendo algo evidentemente impossível para eles. O evangelista nos diz que o “fantasma” visto por eles era Jesus. O Mestre se aproxima e pronuncia palavras confortadoras: “Coragem! Sou eu. Não tenham medo!” (Mt 14,27). Mas isso não basta para eles acreditarem. Assim, Pedro desafia o desconhecido e pede para poder também caminhar sobre a água. Jesus aceita, mas o apóstolo ainda não venceu a insegurança e o medo e começa a afundar. Contudo Pedro consegue dizer palavras que são um verdadeiro grito de fé: “Senhor, salva-me!” (v.30). Em resposta, Jesus o repreende porque foi fraco na fé e duvidou. No final os discípulos reconhecem quem é Jesus: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (v.33).

 

Desde quando Jesus chamou os primeiros seguidores e disse que faria deles “pescadores de homens”, foi fácil comparar aquela pequena comunidade – que hoje chamamos de Igreja – com um barco enfrentando as ondas, mansas ou agitadas, na travessia dos tempos. Muitas obras artísticas buscaram representar isso. Em geral, na proa do barco está Pedro e, às vezes, os seus sucessores. No entanto, fica a pergunta à qual o evangelho deste domingo nos ajuda a responder: Jesus onde está? Não é ele o único, verdadeiro e “bom” pastor que conduz a sua Igreja? Sem dúvida alguma é assim! Contudo, depois da Ressurreição, o próprio Jesus entregou o dom do Espírito Santo e enviou os apóstolos para continuar a missão que o Pai lhe tinha confiado. Desde então a Igreja de Jesus Cristo, animada pelo Espírito Santo, singra os mares da história enfrentando as inevitáveis turbulências da fragilidade humana. Devemos ser realistas e não ter medo. A comunidade Igreja sempre será formada por pessoas – hoje somos nós – que, ao mesmo tempo, são santas e pecadoras. Ambas essas realidades são visíveis, não só porque experimentamos isso todos os dias em nossas vidas, mas também como conjunto de irmãos e irmãs. Somos chamados à santidade, mas ainda temos que fazer as contas com as nossas imperfeições humanas. A “outra margem” não se alcança tão facilmente. Mais uma vez, o segredo para continuar a travessia é ter fé. Nunca ter receio de gritar a Jesus nas horas difíceis e nas horas de alegria também: “Senhor, salva-me”. Tem até um canto que diz: “Segura na mão de Deus e vai…”. O que acontece é que muitas vezes esquecemos disso. Preferimos confiar mais nas nossas próprias forças ou recorrer a outros “salvadores” que se apresentam como capazes de solucionar todos os nossos problemas e, assim, confundem a nossa cabeça e esfriam a nossa fé. Segurar na mão do Senhor não significa que sempre vai acontecer o que nós pensamos e que ele vai fazer tudo o que nós pedimos. Não, não foi isso que Jesus prometeu e não é esta a Vida Nova daquele Reino que começa neste mundo, mas não acaba por aqui. Ter fé significa acreditar que nunca estamos sozinhos, ele está sempre conosco. Jesus não precisa de latitude e longitude para nos encontrar e salvar. Basta gritar com fé: “Senhor, salva-me!”

 

 

Tinham direito ao almoço 

 

No início do século passado, uma pobre família do Sul da Europa decidiu emigrar para os Estados Unidos. As viagens eram de navio e duravam muitos dias. Levaram consigo bastante pão e queijo; era o que tinham para se alimentarem durante a viagem. O dinheiro não dava para comer no restaurante do navio. Com o passar dos dias e das semanas, porém, o pão ficou duro e o queijo mofou. A certa altura, o filho do casal começou a chorar porque não aguentava mais aquela comida velha. Os pais, então, juntaram o pouco dinheiro que tinham e decidiram pagar um almoço para o filho. Este foi, comeu e voltou chorando mais ainda, mas, desta vez, de raiva e amargura. Os pais, preocupados, perguntaram por que, depois de ter feito tudo o que podiam, não estava satisfeito e chorava tanto. Entre os soluços, o filho respondeu: “O almoço no restaurante estava incluído no preço da passagem e nós comemos pão e queijo todos estes dias!”.

 

No evangelho de Mateus, deste 17º Domingo do Tempo Comum, encontramos mais três parábolas sobre o Reino dos Céus. Duas delas se assemelham, apresentam a busca por um tesouro escondido e por uma pérola de grande valor. A terceira parábola compara o Reino a uma rede lançada ao mar que apanha peixes bons e peixes que não prestam. Essa última pode ser entendida à luz da parábola do joio e do trigo, que encontramos domingo passado. O final do trecho é curioso. À pergunta de Jesus se os discípulos tinham compreendido o que ele acabava de ensinar, eles disseram que sim. A resposta permitiu ao Mestre fazer mais uma comparação entre os discípulos e um pai de família que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). É a conclusão do discurso em parábolas e serve para nos lembrar da dinamicidade das mesmas. As parábolas não são simples casos para contar, elas nos envolvem e sempre suscitam mais perguntas que respostas. Nesse sentido, as duas parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa são exemplares. Em ambos os casos, estamos à frente de pessoas que sabem dar o valor merecido àquilo que encontraram. Para o que descobre o tesouro escondido no campo pode ser simplesmente um caso de muita sorte. Contudo ele guarda o segredo antes de comprar aquele campo, porque sabe quanto vale o que encontrou. No caso da outra parábola, o comprador de pérolas está atrás mesmo de uma de grande valor. Ou seja: nenhum dos dois pensa duas vezes ou despreza e descarta o achado. Ambos vendem logo “todos os seus bens” para adquirir o campo e a pérola preciosa. A mensagem é evidente: o tesouro e a pérola são o próprio Reino dos Céus. Pelo jeito, os dois consideraram tão valioso o que encontraram que eles decidiram se desfazer de qualquer outro bem. Por que uma decisão tão radical? Não seria, talvez, uma loucura ou uma imprudência? Obviamente não é assim para o Senhor como ele ensinou no Discurso do Monte: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).

 

A lição vale para todos nós. Muitas vezes falamos bonito de Deus, da sua bondade e misericórdia, mas resistimos a arriscar algo da nossa vida por causa do Reino dos Céus. Admiramos e falamos bem daqueles e daquelas que fazem escolhas mais radicais, que empregam os seus talentos a serviço dos pobres, que gastam a sua vida por causa do Evangelho. No entanto, parece que a maioria dos cristãos continua desconfiando do valor inestimável do Reino e prefira preciosidades mais mundanas e passageiras, mas que se possam contar e guardar no cofre. Sem dúvida, a disposição de fazer escolhas mais corajosas é um dom de Deus que podemos pedir, mas as parábolas, desde domingo, convidam a todos nós a superar o comodismo, o medo de ser julgados esquisitos e fanáticos ou, pior, de sermos enganados pelo próprio Senhor. Enfim, continuar comendo pão e queijo, quando os passageiros tinham direito ao almoço, foi burrice. Por que não se informaram antes? O Reino dos Céus está próximo (Mt 3,2), é oferecido a todos, basta reconhecer o seu valor e buscá-lo de verdade.

 

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As sementes não selecionadas

 

Um irmão falou para o antigo Pai Poimen:

 

– Quando dou um pouco de pão ou algo diferente ao meu irmão, os demônios desvalorizam a minha ação: teria sido dado para agradar o ser humano. O ancião disse:

 

– Mesmo que isso ocorra pela vontade de agradar, não deixemos de dar o necessário ao irmão. E lhes contou a seguinte parábola:

 

– Dois agricultores moravam na mesma cidade. Um deles só semeou poucas sementes, e essas não estavam selecionadas; já o outro desistiu de semear e não colheu absolutamente nada. Quando, pois, surgir o flagelo da fome, quem dos dois terá o suficiente para viver? O irmão respondeu:

 

– Aquele que semeou pouco e sementes não selecionadas. Então lhes disse o ancião:

 

– Deixa que semeemos pouco, mesmo que com sementes não selecionadas, para que não morramos de fome.

 

No evangelho de Mateus, deste 16º Domingo do Tempo Comum, encontramos três parábolas do “discurso” de Jesus que iniciamos a ler no domingo passado. Todas elas são importantes e seria bom poder refletirmos sobre todas. No entanto, a mais famosa, que ganha uma explicação ainda no próprio evangelho, é a do joio e do trigo. Se identificamos o bem com o trigo e o mal com o joio, o Senhor quer nos dizer, em primeiro lugar, que eles estão juntos nos acontecimentos da história pessoal e da humanidade inteira. Ou seja, devemos levar em conta a realidade do mal que também cresce, dentro e fora de nós, muitas vezes sem ser logo percebido como algo de errado. Isso significa que, em certas situações e em certos tempos, o bem e o mal podem ser confundidos. De fato, as espigas do joio são bastante semelhantes às espigas do trigo. Essa é a segunda consideração que devemos fazer. Porém, à medida que as espigas se tornam maiores, é mais fácil distinguir o joio do trigo. Jesus disse isso também de outra forma, quando ensinou que a árvore boa se reconhece pelos frutos bons e o contrário para a árvore má (Mt 7,15-20). Nesta altura, não é mais possível duvidar tanto e confundir o joio com o trigo, mas o que fazer? De acordo com a parábola, a vontade dos empregados seria arrancar logo o joio para salvar o trigo. O final da parábola surpreende. A separação do joio e do trigo, do bem e do mal, não será agora, quando ainda as plantinhas estão crescendo, mas somente na hora da colheita. Naquele momento, sim, haverá o julgamento e a separação definitiva. A motivação do dono da roça para não deixar cortar logo e de vez o joio deve chamar a nossa atenção: cortando às pressas o joio, pode ser que os ceifadores acabem cortando também o trigo. Essa última consideração nos lembra que o julgamento final entre o bem e o mal será tarefa do “dono” da messe, mas, sobretudo, nos ensina a paciência, ou, talvez muito mais, a própria misericórdia de Deus que, até o fim, espera para não decidir só pelas aparências. Talvez o que parecia joio na realidade era trigo ou vice-versa. Teria sido cortado e jogado fora antes do tempo e punido injustamente.

 

A mensagem desta parábola é sempre extraordinária. É uma lição para os intolerantes, aqueles cristãos que apontam sem piedade os pecados dos outros a partir da própria suposta perfeição. Se déssemos ouvido a eles, na Igreja só teríamos os puros e os “santos” porque os pecadores seriam expulsos ou, de alguma forma, deixados às margens. A parábola, porém, é uma lição também para aqueles e aquelas que querem desistir da luta do bem contra o mal, por desânimo, por não ver logo os frutos do bem, por ter que fazer sempre as contas com as fraquezas humanas próprias e dos demais. A parábola não é um incentivo para fechar os olhos ou fingir que está tudo bem, quando não está. É um grande impulso a continuar a fazer o bem sempre, por pequeno, mal feito, limitado que seja. Se for bem, mesmo, no final aparecerá. Gastamos muitas energias para apontar e querer corrigir os defeitos dos outros quando, ao contrário, deveríamos aprimorar mais a nossa fraternidade, a nossa comunhão, praticar o bem da melhor maneira possível. Sempre abertos à surpresa da bondade dos outros que, talvez, julgávamos já condenados. Não fiquemos “selecionando” o bem, nosso e dos outros, vamos praticá-lo.

 

 

Precisa salvar a semente

 

Num velho filme, daqueles ainda em preto e branco, o padre Camilo conversa abertamente com o seu amigo, o Senhor Jesus, pendurado no grande crucifixo da Igreja paroquial. É bonito, porque entre eles tem muita familiaridade. O padre reclama da situação. A humanidade está enlouquecendo, está indo de mal a pior. Jesus responde que se, ao final, a maldade dos homens fosse mais forte que a bondade de Deus, a sua missão no mundo teria sido um grande fracasso. Padre Camilo concorda, claro, mas rebate que, apesar de tanto progresso, o ser humano se parece ainda com aquele das cavernas. Então, ele pergunta a Jesus o que pode fazer. O Crucifixo responde com um suspiro e diz: “Padre Camilo, o que tem que fazer é aquilo que os camponeses sempre fazem quando acontecem as enchentes dos rios. Eles guardam as sementes. Eles sabem que, quando as águas baixarem, poderão plantar novamente e tudo florescerá e dará os seus frutos no tempo certo”. Conclui Jesus: “Precisa salvar a semente! E a semente é a fé!”.

O evangelho de Mateus do 15º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a primeira parte do discurso de Jesus em parábolas. Continuaremos com ele também nos próximos domingos, mas, por enquanto, precisamos entender a novidade desta forma tão particular que Jesus usou e que os evangelistas “sinóticos” conservaram. De imediato, podemos dizer que as parábolas são um jeito popular de explicar as coisas. Nesse caso, “popular” não significa banal ou superficial. Ao contrário, por não precisar de grandes conhecimentos, mas aproveitando simplesmente da experiência da vida comum das pessoas, as parábolas conseguem alcançar a todos, a começar pelos “pequeninos”, sem excluir os “sábios e entendidos” dispostos a lhes prestar atenção. Já sabemos que o assunto principal das parábolas é nada menos do que o “Reino dos Céus” do qual Jesus repete que “é semelhante a…” e apresenta um fato, uma situação, um acontecimento. Em lugar de dar alguma definição do Reino, Jesus prefere as comparações. Não é que assim o Reino se torne indefinito ou indescritível, não. Ele é apresentado de maneira dinâmica, como justamente deve ser porque é algo que já está acontecendo e sempre vai acontecer, também em situações impensadas ou imprevisíveis. O Reino “surpreende” quem se deixa envolver, pelo bem ou, às vezes, pelas conclusões desastrosas. As parábolas não respondem a perguntas específicas, mas abrem à participação dos ouvintes, convidam a buscar as respostas, abrem novos horizontes.

A primeira parábola é a que dá o tom e a direção às demais. É a do semeador. Esse agricultor não é alguém que desperdiça a semente, mas alguém que confia na força da própria semente. O resultado, portanto, não dependerá da má qualidade do que foi semeado, mas dos terrenos dispostos a acolhê-la. Quando o terreno é bom, a colheita é extraordinária, naquele tempo e ainda nos dias de hoje. O próprio evangelho explica o sentido da parábola do semeador, e a semente é identificada com a palavra do Reino que pode ser acolhida ou não. As causas da falta de frutos também são bem exemplificadas. Pouco mudou. Sempre encontramos inúmeras dificuldades e desculpas para jogar de lado ou, até manipular, a Palavra e assim não a deixar produzir os frutos abundantes que poderia oferecer. Talvez sejamos tentados a dizer que hoje ficou pior, que a surdez e a indiferença humanas ou o barulho das nossas confusões abafaram a mensagem. Seria muita falta de fé. A própria parábola ensina que a Palavra continua a ser semeada e que uma parte sempre cai em terra boa e produz fruto. O que cabe a nós é sermos o melhor terreno possível e reconhecermos que nada nos garante que não exista terra boa, além dos limites dos nossos julgamentos. Nos faz bem olhar ao nosso redor e ver não só o mal e os erros. Tem também muita bondade e amor que crescem por causa daquela semente boa que só Deus sabe como chegou lá. Em qualquer situação, devemos conservar a fé, porque o Semeador continua a semear, até onde nós menos pensamos. Graças a Deus!

 

 

Totaliter aliter

 

Quando ainda a língua latina era em uso, uma lenda medieval conta que dois monges de nome Rufo e Rufino, fizeram um juramento entre si: o primeiro que morresse devia voltar para dizer ao outro como era Deus. Combinaram que a explicação consistiria em pronunciar uma só palavra: taliter! (tal e qual) se Deus fosse como eles o tinham pensado. Se, porém, Deus fosse diferente de como eles o tinham imaginado, a palavra devia ser: aliter! (outro, diferente). Uma tarde, quando estava tocando o órgão, o coração de Rufino parou. O amigo Rufo ficou de vigília, rezando e esperando a mensagem do companheiro. Não aconteceu nada e Rufo continuou rezando, jejuando, esperando nas semanas e nos meses seguintes. Finalmente, no aniversário de sua morte, Rufino apareceu, circundado de luz, na cela do amigo. Rufo, vendo que o amigo ficava calado, perguntou: taliter? (é tal e qual?). Rufino abanou a cabeça em sinal negativo. Ansioso, Rufo perguntou: aliter? (é diferente?). De novo recebeu um sinal negativo. – Então, como é Deus? Rufino respondeu: Totaliter aliter! (totalmente diferente).

 

Peço desculpa pelo latim, mas achei que aquela antiga lenda pudesse nos ajudar a refletir sobre o evangelho deste domingo. O evangelista Mateus, depois do discurso missionário e antes do discurso em parábolas, que iniciaremos a ler a partir do próximo domingo, coloca dois capítulos com vários questionamentos a Jesus por parte dos enviados de João Batista e dos fariseus. As curas dele também suscitam dúvidas. Mateus quer nos preparar para entender que a novidade do Reino dos Céus, que Jesus ensinava e apresentava com as suas palavras e com os sinais que realizava, não recebeu toda aquela acolhida que se esperava. O jeito de Jesus foi, de fato, muito diferente e não se encaixou em nenhum dos “messianismos” em auge entre os grupos religiosos daquele momento. Quem sobrou para entender Jesus? Ele exulta e louva ao Pai porque são os pequenos e os simples que o acolhem. Tinha algo que impedia aos “sábios e entendidos” de compreender a novidade daquilo que estava acontecendo e, acreditamos, sempre acontecerá.

 

Quem acha de ter a resposta sobre tudo, de saber tudo aquilo que Deus pensa e quer, quem se considera dono da verdade, quem pensa de poder manipular a história e a vida das pessoas com as próprias ideias, se exclui de antemão de qualquer surpresa, sobretudo se tem medo que a novidade possa prejudicar o seu prestigio, o seu poder, o seu saber. Por isso, os primeiros a acolher a Boa Notícia do amor de Deus foram os pequenos, os sofredores, os excluídos, os errados, os “fadigados e cansados” que finalmente fizeram a experiência de alguém que cuidava deles, os curava e, sem pedir nada em troca, lhe doava a possibilidade de uma vida nova mais humana e mais digna. Os “pequeninos” se sentiram amados. Este é o único caminho para compreender um pouco mais de Deus, assim como Jesus veio nos fazer conhecer. Quem continua pensando que Deus só pode estar do lado dos perfeitos, dos melhores, dos que tem sucesso, dos ganhadores, e considera tudo isso “benção de Deus”, ainda não entendeu a missão reveladora de Jesus.

 

Ele não foi um “vencedor” deste mundo, foi condenado como malfeitor, rejeitado e descartado. No entanto, o que os “sábios e entendidos” consideram um jugo, um peso, uma desgraça, se transforma em força para pequenos quando aprendem a caminhar juntos na paz e na simplicidade, na fraternidade e na partilha solidaria. Quando o “jugo” das fraquezas humanas, das nossas limitações e egoísmos, é carregado junto com compaixão, misericórdia e bondade, sempre se torna mais leve. Sabemos que o caminho da nova humanidade, do Reino dos Céus, é longo, mas a mansidão e a humildade podem fazer de cada um de nós um construtor deste Reino e não um ganancioso promotor do seu próprio “império” individual e passageiro. Jesus não pode nos deixar quietos. Deve continuar a nos surpreender a todos, grandes e pequenos, abastecidos e pobres, cultos e analfabetos, porque sempre será “totaliter aliter”, muito diferente de como o gostaríamos controlar e medir. O amor dele é grande demais, sempre será como deve ser: o “Outro”.

 

 

Remédio infalível

 

Um vendedor ambulante percorria os povoados oferecendo remédio contra coice de burro. Instalou-se numa pracinha e começou a gritar com aquela habilidade própria dos charlatões:

 

– Alô, pessoal! Ouvi dizer que aqui há muito burro brabo. É só a gente passar perto e vem o coice. Mas tenho aqui um remédio infalível. Querem experimentar? Os curiosos se juntavam. Então, ele passou a mostrar um pacotinho bem fechado, dizendo:

 

– Cada pacotinho destes contém o remédio. Cura quem levou o coice e previne contra coices futuros. O pacotinho custa apenas…E dava o preço de um, de dois, de três pacotes, sempre com o desconto de praxe. Várias pessoas compraram o tal de remédio. Quando chegaram às suas casas, abriram o embrulho e encontraram dentro dele três metros de barbante e um bilhete com o conselho: “Para evitar coice de burro, basta ficar longe do animal, numa distância correspondente ao comprimento deste barbante”. Ludibriados e desapontados, foram atrás do vendedor para lhe dar uma surra. Mas o espertalhão já havia sumido da praça.

 

No 12º Domingo do Tempo Comum, continuamos com a leitura de um trecho do evangelho de Mateus. Para entender melhor as palavras de Jesus aos seus apóstolos, precisamos lembrar quando e como os evangelhos que chegaram até nós foram colocados por escrito. Eles não são simplesmente a gravação daquilo que o Mestre ensinou. Vários fatores contribuíram até chegar à redação final. Em primeiro lugar, obviamente, a tradição oral, ou seja, a “memória falada” das palavras e do exemplo de Jesus que as primeiras testemunhas contavam. Em segundo lugar, muito importantes eram também as diversas situações que as comunidades estavam vivenciando. Nos momentos bons ou difíceis, os cristãos se perguntavam o que o Mestre teria dito e feito. Nós também não lembramos toda hora tudo o que os nossos pais, avós e educadores nos ensinaram; lembramos aquilo que nos questiona e preocupa naquele momento. Em outra circunstância, lembramos outras palavras. Entendemos, portanto que, se no trecho do evangelho deste domingo, são repetidas três vezes as palavras de Jesus “não tenhais medo” é porque, provavelmente, aquelas comunidades, onde o evangelho de Mateus foi escrito, estavam passando por momento difíceis de dúvidas, desistências e perseguições.

 

Ser cristão significava, muitas vezes, arriscar a própria vida. Ainda hoje, nós veneramos os mártires: aqueles e aquelas que derramaram e derramam seu sangue por causa da fidelidade à própria fé. É muito bonito e encorajante ouvir Jesus dizer que ele mesmo irá se declarar a favor deles diante do Pai. Não devemos ter medo daqueles “que matam o corpo” (Mt 15,28). Devemos ter medo, sim, de desistir da fé e abandonar o Caminho que leva à Verdade e à Vida. Outro medo que sentiam era a respeito daqueles ensinamentos que eram transmitidos secretamente. Tinham pessoas que realizavam feitiçarias, magias e adoravam misteriosas “forças ocultas”. Sempre, o que não está claro, que é sussurrado, que não se pode dizer, suscita incertezas e pavor. Jesus, porém, diz que nas questões da fé cristã não tem nada de escondido, ao contrário, a Boa Notícia do amor de Deus e do seu Reino deve ser proclamada com coragem e ousadia. Nos dias de hoje, Papa Francisco acaba de agregar ao “martirológio” católico, os nomes de 21 mártires de outra Igreja, a Copto-ortodoxa, porque eles, afinal, foram mortos por causa do único Senhor Jesus Cristo.

 

A respeito de devoções a imagens que choram, crenças em supostas mensagens celestiais comunicadas interiormente a alguma pessoa e, muitas vezes, partilhadas como “novos secretos” nunca antes revelados, a nossa Igreja nos convida sempre à prudência e ao bom senso. Antes de acreditar cegamente precisa avaliar a situação, sobretudo quando aquela manifestação, supostamente “do céu”, rende algum lucro para o ou a vidente. Os únicos secretos da nossa vida de fé são os que guardamos em nossa consciência quando rezamos e confiamos na misericórdia de Deus. Cuidado, o resto pode ser como o “remédio infalível” do charlatão, só um engano.

 

 

Ganho o céu

Contam que, antigamente, um rei estava viajando de carruagem pelo seu reino. Chegou a um castelo, cansado da viagem e das etiquetas do protocolo. Queria descansar um pouco e resolveu dar uma volta sozinho. Vestiu-se de modo simples, para que ninguém o reconhecesse como rei. Chegando à cozinha, encontrou a cozinheira limpando galinhas. Sem rodeios, perguntou-lhe:

– Quanto você ganha por mês?

– Eu ganho quanto o rei – respondeu prontamente a senhora.

– Como assim? Você está comparando o seu serviço e o seu salário com as preocupações e o trabalho de um rei, que tem a missão de governar este imenso país? Não estou entendendo. A serviçal respondeu:

– O serviço pode ser diferente, mas o salário é igual. Eu com o meu trabalho, ganho o céu. O rei, com o trabalho dele, não ganha mais do que o céu. E, além disso, faço o meu trabalho por amor a Deus e, se o rei não fizer o seu trabalho por amor a Deus, pode até não ganhar nada!

 

O evangelho de Mateus do 11º Domingo do Tempo Comum nos apresenta a escolha que Jesus faz dos doze apóstolos, os nomes e a missão deles. Terão o poder de expulsar os demônios e curar todo tipo de enfermidade (Mt 10,10). Anunciarão a chegada do Reino dos Céus, começando com “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6-7). Estamos no início da missão, depois, no final, Jesus enviará os seus discípulos “a todos os povos” (Mt 28,19). Antes dessas palavras, porém, o evangelista coloca a motivação do envio dos apóstolos: Jesus compadeceu-se das multidões, estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não têm pastor (Mt 9,36). Em seguida, ele constata que a messe é grande, mas os trabalhadores são poucos e exorta todos a pedir ao “dono da messe” que envie trabalhadores para a colheita (Mt 9,37-38).

 

Acompanhando o evangelho, podemos entender que aquelas multidões estavam carentes de força e de alegria, porque lhes faltava a boa notícia do Reino que Jesus estava inaugurando e que, afinal, era ele mesmo presente e atuante. Por isso, ele envia aqueles primeiros apóstolos para que com palavras e sinais, ou seja, com suas próprias vidas, manifestem claramente a chegada do Reino dos Céus. Surge para nós uma pergunta: se o próprio “dono da messe” sabe que precisam trabalhadores, porque ele mesmo não chama mais pessoas para a missão? Por que tem que sermos nós a pedir os operários? Parece escutar a queixa de muitos católicos: faltam padres! É o “dono da messe” que não chama mais a contento ou são os possíveis trabalhadores que não respondem com prontidão e generosidade?

 

A meu ver as respostas a essas perguntas estão relacionadas entre si. Tenho certeza que o Senhor continua a chamar jovens para os ministérios ordenados na Igreja. Se for assim, somos nós, povo cristão, que não rezamos como deveríamos para que não nos faltem os pastores ou, também, não damos o devido valor a esse “serviço” eclesial. Se a bondade e a fecundidade de uma árvore se medem pelos frutos, seria muito triste ter que reconhecer que as nossas Comunidades estão ficando estéreis. Obviamente as causas dessa situação são muitas e complexas; têm motivações ligadas ao momento atual, mas também raízes históricas herdadas do passado.

 

Há, porém, ao menos duas razões que quero lembrar. A primeira é, sem dúvida, a excessiva preocupação com o bem-estar particular e individualista. Poucos partilham com Jesus a compaixão pelo rebanho. Parece que gastar a própria vida para anunciar o Reino dos Céus não sirva para dar ânimo e esperança às multidões “cansadas e abatidas” – ou distraídas – de hoje. Melhor cada um cuidar de si mesmo. A segunda razão vai junto e é a busca de alguma vantagem, almejando o maior lucro possível com o menor esforço. Pensando assim, muitos de nós se tornam insensíveis às propostas de doação e gratuidade. Perder a própria vida para ganhá-la (Mt 10,39), como Jesus nos deu o exemplo, está cada vez mais fora de cogitação. Contudo, reis ou cozinheiras, um dia todos “perderemos” esta vida e o maior prêmio merecido será o amor sem limites de Deus. Mas, por ter querido ganhar demais neste mundo, talvez percamos tudo aquilo que virá depois.

 

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Para formarmos um único corpo (1 Cor 12,13)

 

“Toda manhã um piloto militar dos drones sai de casa depois de ter tomado café com a sua família. Se despede e alcança o seu escritório, na Base onde trabalha. Senta na frente dos monitores; os teclados não são muito diferentes daqueles dos videogames que tem em casa. Com um código, dá a partida a um drone que está a 11.000 Km de distância, estacionado num dos aeroportos da zona de guerra. Movendo o seu joystick faz decolar o drone. Depois de alguns minutos de voo, bombardeia um comboio matando vários militares inimigos e, às vezes, alguns civis que, por desgraça, passavam por lá. Depois, com boa habilidade, desvia o drone de dois mísseis e faz aterrizar a sua joia super tecnológica na pista. Saúda os colegas e sai do escritório em tempo para participar dos ensaios de dança da filha. Depois do jantar, sentado no sofá com a esposa, assiste à sua série preferida. A tecnologia elimina algumas distâncias, mas cria muitas outras. Até quando a consciência do nosso piloto vai aguentar?”

 

Encontrei essa história num jornal. Fiquei triste. Por isso, gostaria de falar novamente sobre a paz que Jesus Ressuscitado doa aos seus amigos e, depois, da unidade também. Na Solenidade de Pentecostes, a Liturgia nos propõe, novamente, uma parte do evangelho que já encontramos no Segundo Domingo de Páscoa. Desta vez, para nos ajudar a entender que a paz e o perdão devem ser os primeiros frutos visíveis da presença do Espírito Santo. A paz e a reconciliação que o Senhor nos trouxe foram “compradas a alto preço” (1 Cor 7,23). Custaram o sangue de Jesus. Não são, portanto, dons de pouco valor, e continuar a construí-las, testemunhá-las e vivenciá-las é algo desafiante e comprometedor. Significa, em poucas palavras, reconhecer as injustiças, os ódios e as divisões para transformar tudo em alegria. Foi essa alegria que inundou os corações dos discípulos, quando viram o Senhor, e continua sendo essa mesma alegria que pode salvar o mundo de um futuro sem compaixão, feito de distanciamentos e insensibilidades tecnológicas e não.

 

A missão que Jesus entrega aos discípulos não é individual, exige a colaboração de todos e de todas. A leitura de São Paulo, proclamadas neste dia de Pentecostes, explica muito bem que os dons diferentes que o Espírito Santo distribui são para “caminhar juntos” porque “formamos um único corpo” (1 Cor 12,13). É bonito e confortante saber que “a cada um é dada a manifestação do Espírito” (1 Cor 12,7), no entanto, todos esses dons têm um único e grande objetivo: o “bem comum”. Podemos duvidar que a paz, a reconciliação e a unidade sejam “bens” que devemos espalhar e fazer frutificar? O preço deste compromisso é alto. Começa pela nossa própria fé que somos chamados a partilhar e a celebrar junto com os irmãos. Quantas dificuldades temos e nos acolhermos uns aos outros, justamente, com as nossas diversidades para que elas não sejam motivo de divisão, mas sim de fraternidade.

 

Falamos tanto de unir as forças, porém, muitas vezes, gostamos do nosso cantinho nas missas, nos grupos, nas pastorais. Uma capela, ou até uma paróquia, podem se tornar um jardim, mas fechado aos demais irmãos e irmãs “de fora”, eternos “visitantes”, que precisam ser apresentados, como se não partilhassem a mesma Fé, a mesma Palavra e a mesma Eucaristia. Caímos naquela autocontemplação que empobrece em lugar de nos enriquecer com a troca de experiências, de projetos e de “bens” – por que não? – colocados à disposição de todos. O encontro e a comunhão não deviam ser uma alegria? Já o santo Papa João XXIII exortava os cristãos das diferentes Igrejas a buscar antes o que nos une, antes de defender o que nos divide. Era a esperança da Unidade dos Cristãos que o fazia falar assim. Não é por acaso que no Brasil rezamos para isso na semana entre Ascensão e Pentecostes. A paz, a reconciliação e a unidade começam em casa e custam o esforço e o sacrifício de todos e todas. Sem dúvida a nossa rotina é muito diferente daquela do piloto dos drones. No entanto, com um clique no computador ou no celular podemos ferir um irmão, não só a 11.000 Km de distância, mas muito mais perto de nós. Pensemos.

 

 

Ao monte que Jesus lhes tinha indicado (Mt 28,16)

A solenidade da Ascenção do Senhor não é um momento de despedida, mas uma festa de envio em missão. No trecho do evangelho de Mateus, que proclamamos neste domingo, tudo acontece no “monte que Jesus lhes tinha indicado”. Lá, na Galileia, os discípulos (“amigos” Mt 28,10) deviam ir para encontrá-lo. Assim o Ressuscitado tinha dito às mulheres, que voltavam do túmulo ao amanhecer daquele “primeiro dia da semana”. “Os montes”, no evangelho de Mateus, são lugares privilegiados, onde os discípulos aprendem algo novo e diferente. Lembramos o “monte” das Bem-aventuranças (Mt 5,1). O Senhor quer doar àqueles que buscam o Reino de Deus uma alegria, que riquezas e poder nenhum oferecem. No “monte” da Transfiguração (Mt 17,1), Pedro declara que queria ficar lá, porque era bom.

 

Quando acolhemos o Senhor, uma nova luz resplandece em nossas vidas. Em Mt 15,30, foi num “monte” que Jesus curou muitos doentes e o povo glorificava a Deus. Houve, porém, também o “monte” das tentações (Mt 4,8) e “um lugar chamado Gólgota” (Mt 27,33) onde Jesus foi crucificado. Estamos agora num monte sem nome na Galileia, e os “onze” escutam palavras surpreendentes. O “ressuscitado”, a partir de então, é o vencedor da morte; é o Senhor da Vida, por isso fala de “autoridade” no céu e na terra. É com essa “autoridade” que ele envia os discípulos para que “todos os povos” possam participar da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O lugar – o monte – e as palavras de Jesus abrem horizontes, convidam a olhar mais longe, a iniciar uma “missão”, que não terá limites nem de espaço e nem de tempo. A sua última promessa garante isso: “Eis que eu estarei convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). “Emanuel” – Deus conosco – foi o nome com o qual, segundo a profecia, o Prometido será chamado (Mt 1,23). Assim   iniciou o evangelho de Mateus e, com a garantia dessa presença, termina.

 

Agora, é a vez dos discípulos continuarem a missão de evangelizar. Logo, nasce uma pergunta: será que vamos dar conta? Será que o Senhor Jesus não nos pediu e nos pede demais? Quantas dificuldades apareceram e aparecem à nossa frente! Os tempos e as culturas mudam. Hoje, a humanidade debate sobre a Inteligência Artificial ao mesmo tempo que milhões de seres humanos passam fome ou vivem na miséria. Nem todos dão valor ao que parece certo, incluindo os Direitos Humanos para os povos indígenas, as mulheres e uma paz duradoura. O próprio evangelista Mateus não esconde os problemas. O primeiro é evidente: os apóstolos não são mais “doze”, mas só onze. Judas escolheu outro caminho. Igualmente lemos: “ Ainda assim alguns duvidaram”. “Alguns” entre os onze? Talvez. Mais uma vez, devemos nos lembrar que o “Projeto” da missão evangelizadora não é nosso, é de Deus. Portanto ele, o Pai, através da obra de Jesus Cristo e a ação do Divino Espírito Santo sabe como e quando este projeto de Vida Nova irá chegar à plenitude. O que cabe a nós é participar, colaborar, enfim: acreditar, nunca desistir e, também, pedir para poder enxergar, sempre, os caminhos novos, que a história abre à nossa frente, fiéis ao Evangelho e ao mandato-envio de Jesus. É por isso que o Documento de Aparecida (maio 2007) nos ensinou a falar sempre de nós como “discípulos- missionários”.

 

Para sermos “missionários” de verdade – e não por empolgação improvisada e superficial – precisamos ser “discípulos” do Senhor, para não anunciarmos as nossas ideias, ideologias, incompreensões sempre parciais da Igreja Povo de Deus. No entanto isso não significa esperar sermos, antes, “doutores” nos ensinamentos da nossa fé para partir em missão. O Batismo já é um envio, sobretudo se acreditamos que a primeira evangelização acontece pelo “testemunho” da nossa vida e não, necessariamente, pelas nossas explicações, mais ou menos, convencedoras. Deixemos ecoar em nossos corações as palavras que nos foram transmitidas pelos Atos dos Apóstolos e proclamadas hoje. Para começar, o campo da “missão” está muito perto de nós: família, comunidade, cidade, país…planeta. Não podemos “ficar parados olhando para o céu” (At 1,11).

 

 

Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18)

O velho e sábio Abba João dizia aos seus discípulos:

 

– Vejam, o primeiro golpe que o diabo deu em Jó aconteceu contra os seus bens, e ele viu que Jó não se entristeceu e não se distanciou de Deus. Com o segundo golpe, ele atacou o seu corpo, mas também nesse caso o valente atleta não pecou com nenhuma palavra que saiu de sua boca. No interior de si mesmo, ele tinha aquilo que é de Deus, e se alimentava disso sem cessar.

 

No evangelho de João, que a Liturgia nos propõe no Sexto Domingo da Páscoa, Jesus diz que vai pedir ao Pai para enviar o Espírito Santo que ele chama de “outro Defensor” e de “Espírito da Verdade”. O Espírito “permanecerá” junto com os féis e “estará dentro” deles. Essa “presença interior” será a garantia de que eles não ficarão órfãos. No final do trecho, Jesus volta a ligar a observância aos seus “mandamentos” com o amor que torna possível a participação dos discípulos na comunhão amorosa do Pai, do Filho e, podemos dizer, também do Espírito Santo. Entendemos facilmente que a página do Evangelho de João, escolhida para este Domingo, vai nos preparar para celebrarmos as próximas solenidades de Ascensão e Pentecostes. No entanto, lembramos que o evangelista João coloca a promessa do “dom” do Espírito Santo aos discípulos durante a Última Ceia, ou seja, antes da sua Paixão e Morte, e a “entrega” do Espírito quando estavam reunidos “ao entardecer” do dia de Páscoa. Não devemos procurar uma “concordância” absoluta entre os escritos do Novo Testamento, porque cada autor tem o seu jeito de nos transmitir a sua mensagem. Isto é o mais importante.

 

A primeira consideração que faço, diz respeito à promessa de Jesus de não deixar “órfãos”, em outras palavras, desamparados, os seus amigos. Sem dúvida essa foi a grande angústia que os discípulos sentiram com a morte de Jesus. Evidentemente, a presença visível dele dava segurança. Ele era o Mestre que falava “com autoridade” (Mc 1,22). Só que o tempo da presença física de Jesus tinha chegado ao fim; agora ele era o crucificado-ressuscitado que participava da glória junto ao Pai (Jo 20,17). De fato, essa é a situação de todos os cristãos que vieram depois, ou seja, a nossa. Nunca encontraremos o Cristo em carne e ossos neste mundo. Nem “aparições” e nem “fantasmas” nos devem perturbar. Acreditar, portanto, em uma “nova” presença do Senhor é decisivo para a nossa fé. É por isso que sempre devemos lembrar “como” e “onde” o próprio Jesus disse que estaria presente. A lista inicia com a comunidade de fé (Mt 18,20), passa pela Palavra e a Eucaristia e chega aos pobres e sofredores. E tem mais. Com o “dom” do Espírito Santo, não somente Jesus não quis nos deixar órfãos, mas quis estar “dentro” de nós. Essa é a inestimável novidade da nossa fé que, às vezes, esquecemos.

 

Ser cristãos não é simplesmente cumprir um conjunto de normas, costumes e ritos, externos a nós. Todas as crenças e religiões têm tudo isso. Para nós cristãos, ter o Espírito Santo, o Espírito de Jesus “dentro” de nós significa, no mínimo, ter consciência daquilo que São Paulo já escrevia aos Coríntios na sua primeira carta: “Não sabeis que vosso corpo é santuário daquele que habita em vós, o Espírito Santo que recebestes de Deus e que não pertenceis a vós mesmos? De fato fostes comprados por alto preço! Glorificai, portanto, a Deus no vosso corpo”(1Cor 6,19-20). Quando lembramos disso? Talvez tenha lugares onde nunca levaríamos nossos filhos… Situações nas quais nos encontramos e que fariam envergonhar os nossos pais… No entanto, nós, batizados e crismados, estamos lá, nós, “santuários” do Espírito Santo. Esse é o lado negativo, as nossas indignidades.

 

Graças a Deus, porém, com certeza, têm muitos lugares e situações onde a presença dos cristãos é uma bênção, é verdadeira ação do Divino Espírito, é bondade, compaixão, misericórdia. Podemos acreditar que quando sofremos por praticarmos o bem e a justiça, quando lutamos para construir a paz, estamos simplesmente deixando acontecer e transparecer a santidade daquele que é o Santo, puro amor. Sejamos agradecidos. Não estamos sozinhos, estamos muito, mas muito mesmo, bem acompanhados e fortalecidos.