Dom Pedro Conti

Ao monte que Jesus lhes tinha indicado (Mt 28,16)

A solenidade da Ascenção do Senhor não é um momento de despedida, mas uma festa de envio em missão. No trecho do evangelho de Mateus, que proclamamos neste domingo, tudo acontece no “monte que Jesus lhes tinha indicado”. Lá, na Galileia, os discípulos (“amigos” Mt 28,10) deviam ir para encontrá-lo. Assim o Ressuscitado tinha dito às mulheres, que voltavam do túmulo ao amanhecer daquele “primeiro dia da semana”. “Os montes”, no evangelho de Mateus, são lugares privilegiados, onde os discípulos aprendem algo novo e diferente. Lembramos o “monte” das Bem-aventuranças (Mt 5,1). O Senhor quer doar àqueles que buscam o Reino de Deus uma alegria, que riquezas e poder nenhum oferecem. No “monte” da Transfiguração (Mt 17,1), Pedro declara que queria ficar lá, porque era bom.

 

Quando acolhemos o Senhor, uma nova luz resplandece em nossas vidas. Em Mt 15,30, foi num “monte” que Jesus curou muitos doentes e o povo glorificava a Deus. Houve, porém, também o “monte” das tentações (Mt 4,8) e “um lugar chamado Gólgota” (Mt 27,33) onde Jesus foi crucificado. Estamos agora num monte sem nome na Galileia, e os “onze” escutam palavras surpreendentes. O “ressuscitado”, a partir de então, é o vencedor da morte; é o Senhor da Vida, por isso fala de “autoridade” no céu e na terra. É com essa “autoridade” que ele envia os discípulos para que “todos os povos” possam participar da comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O lugar – o monte – e as palavras de Jesus abrem horizontes, convidam a olhar mais longe, a iniciar uma “missão”, que não terá limites nem de espaço e nem de tempo. A sua última promessa garante isso: “Eis que eu estarei convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). “Emanuel” – Deus conosco – foi o nome com o qual, segundo a profecia, o Prometido será chamado (Mt 1,23). Assim   iniciou o evangelho de Mateus e, com a garantia dessa presença, termina.

 

Agora, é a vez dos discípulos continuarem a missão de evangelizar. Logo, nasce uma pergunta: será que vamos dar conta? Será que o Senhor Jesus não nos pediu e nos pede demais? Quantas dificuldades apareceram e aparecem à nossa frente! Os tempos e as culturas mudam. Hoje, a humanidade debate sobre a Inteligência Artificial ao mesmo tempo que milhões de seres humanos passam fome ou vivem na miséria. Nem todos dão valor ao que parece certo, incluindo os Direitos Humanos para os povos indígenas, as mulheres e uma paz duradoura. O próprio evangelista Mateus não esconde os problemas. O primeiro é evidente: os apóstolos não são mais “doze”, mas só onze. Judas escolheu outro caminho. Igualmente lemos: “ Ainda assim alguns duvidaram”. “Alguns” entre os onze? Talvez. Mais uma vez, devemos nos lembrar que o “Projeto” da missão evangelizadora não é nosso, é de Deus. Portanto ele, o Pai, através da obra de Jesus Cristo e a ação do Divino Espírito Santo sabe como e quando este projeto de Vida Nova irá chegar à plenitude. O que cabe a nós é participar, colaborar, enfim: acreditar, nunca desistir e, também, pedir para poder enxergar, sempre, os caminhos novos, que a história abre à nossa frente, fiéis ao Evangelho e ao mandato-envio de Jesus. É por isso que o Documento de Aparecida (maio 2007) nos ensinou a falar sempre de nós como “discípulos- missionários”.

 

Para sermos “missionários” de verdade – e não por empolgação improvisada e superficial – precisamos ser “discípulos” do Senhor, para não anunciarmos as nossas ideias, ideologias, incompreensões sempre parciais da Igreja Povo de Deus. No entanto isso não significa esperar sermos, antes, “doutores” nos ensinamentos da nossa fé para partir em missão. O Batismo já é um envio, sobretudo se acreditamos que a primeira evangelização acontece pelo “testemunho” da nossa vida e não, necessariamente, pelas nossas explicações, mais ou menos, convencedoras. Deixemos ecoar em nossos corações as palavras que nos foram transmitidas pelos Atos dos Apóstolos e proclamadas hoje. Para começar, o campo da “missão” está muito perto de nós: família, comunidade, cidade, país…planeta. Não podemos “ficar parados olhando para o céu” (At 1,11).

 

 

Não vos deixarei órfãos” (Jo 14,18)

O velho e sábio Abba João dizia aos seus discípulos:

 

– Vejam, o primeiro golpe que o diabo deu em Jó aconteceu contra os seus bens, e ele viu que Jó não se entristeceu e não se distanciou de Deus. Com o segundo golpe, ele atacou o seu corpo, mas também nesse caso o valente atleta não pecou com nenhuma palavra que saiu de sua boca. No interior de si mesmo, ele tinha aquilo que é de Deus, e se alimentava disso sem cessar.

 

No evangelho de João, que a Liturgia nos propõe no Sexto Domingo da Páscoa, Jesus diz que vai pedir ao Pai para enviar o Espírito Santo que ele chama de “outro Defensor” e de “Espírito da Verdade”. O Espírito “permanecerá” junto com os féis e “estará dentro” deles. Essa “presença interior” será a garantia de que eles não ficarão órfãos. No final do trecho, Jesus volta a ligar a observância aos seus “mandamentos” com o amor que torna possível a participação dos discípulos na comunhão amorosa do Pai, do Filho e, podemos dizer, também do Espírito Santo. Entendemos facilmente que a página do Evangelho de João, escolhida para este Domingo, vai nos preparar para celebrarmos as próximas solenidades de Ascensão e Pentecostes. No entanto, lembramos que o evangelista João coloca a promessa do “dom” do Espírito Santo aos discípulos durante a Última Ceia, ou seja, antes da sua Paixão e Morte, e a “entrega” do Espírito quando estavam reunidos “ao entardecer” do dia de Páscoa. Não devemos procurar uma “concordância” absoluta entre os escritos do Novo Testamento, porque cada autor tem o seu jeito de nos transmitir a sua mensagem. Isto é o mais importante.

 

A primeira consideração que faço, diz respeito à promessa de Jesus de não deixar “órfãos”, em outras palavras, desamparados, os seus amigos. Sem dúvida essa foi a grande angústia que os discípulos sentiram com a morte de Jesus. Evidentemente, a presença visível dele dava segurança. Ele era o Mestre que falava “com autoridade” (Mc 1,22). Só que o tempo da presença física de Jesus tinha chegado ao fim; agora ele era o crucificado-ressuscitado que participava da glória junto ao Pai (Jo 20,17). De fato, essa é a situação de todos os cristãos que vieram depois, ou seja, a nossa. Nunca encontraremos o Cristo em carne e ossos neste mundo. Nem “aparições” e nem “fantasmas” nos devem perturbar. Acreditar, portanto, em uma “nova” presença do Senhor é decisivo para a nossa fé. É por isso que sempre devemos lembrar “como” e “onde” o próprio Jesus disse que estaria presente. A lista inicia com a comunidade de fé (Mt 18,20), passa pela Palavra e a Eucaristia e chega aos pobres e sofredores. E tem mais. Com o “dom” do Espírito Santo, não somente Jesus não quis nos deixar órfãos, mas quis estar “dentro” de nós. Essa é a inestimável novidade da nossa fé que, às vezes, esquecemos.

 

Ser cristãos não é simplesmente cumprir um conjunto de normas, costumes e ritos, externos a nós. Todas as crenças e religiões têm tudo isso. Para nós cristãos, ter o Espírito Santo, o Espírito de Jesus “dentro” de nós significa, no mínimo, ter consciência daquilo que São Paulo já escrevia aos Coríntios na sua primeira carta: “Não sabeis que vosso corpo é santuário daquele que habita em vós, o Espírito Santo que recebestes de Deus e que não pertenceis a vós mesmos? De fato fostes comprados por alto preço! Glorificai, portanto, a Deus no vosso corpo”(1Cor 6,19-20). Quando lembramos disso? Talvez tenha lugares onde nunca levaríamos nossos filhos… Situações nas quais nos encontramos e que fariam envergonhar os nossos pais… No entanto, nós, batizados e crismados, estamos lá, nós, “santuários” do Espírito Santo. Esse é o lado negativo, as nossas indignidades.

 

Graças a Deus, porém, com certeza, têm muitos lugares e situações onde a presença dos cristãos é uma bênção, é verdadeira ação do Divino Espírito, é bondade, compaixão, misericórdia. Podemos acreditar que quando sofremos por praticarmos o bem e a justiça, quando lutamos para construir a paz, estamos simplesmente deixando acontecer e transparecer a santidade daquele que é o Santo, puro amor. Sejamos agradecidos. Não estamos sozinhos, estamos muito, mas muito mesmo, bem acompanhados e fortalecidos.

 

 

Quem é Jesus para você?

 

O padre da paróquia conhecia muito bem os seus fiéis até pelo nome. Numa celebração em dia da semana, com um número reduzido de participantes, fez uma homilia partilhada, pela facilidade que a circunstância oferecia. Proclamou o evangelho, em que Jesus pede aos seus apóstolos a opinião do povo a seu respeito. O padre, aproveitando a ocasião, fez a mesma pergunta aos seus fiéis:

 

– Cristina, quem é Jesus para você? Ela de pronto respondeu que é o Salvador.

– E a Joana, o que diz?

– Para mim, Jesus é o Filho de Deus.

– E o Antônio?

– Para mim, Jesus é o amigo que nos ajuda. E assim, chamou a todos, e cada um deu uma resposta. Por último, perguntou a uma senhora, da qual não se lembrava mais o nome:

– E a senhora, desculpe, porque me esqueci de seu nome, quem é Jesus para a senhora? E ela prontamente respondeu: – Jesus, para mim, é aquele que nunca esquece o meu nome.

 

Na Liturgia da palavra do Quarto Domingo da Páscoa sempre nos é proposto um trecho do evangelho de João tirado do capítulo 10. Nesse capítulo, Jesus se define como o Bom Pastor e nós somos as ovelhas do seu rebanho. Nos primeiros 11 versículos, porém, a comparação que Jesus usa para apresentar-se a si mesmo e o que ele vai fazer é aquela do redil que tem uma porta para o pastor e as ovelhas entrarem e saírem. Só o pastor entra pela porta e o porteiro lhe abre. As ovelhas conhecem e escutam a sua voz, ele as chama pelo nome e as conduz para fora do redil. Elas seguem o pastor; não seguem os estranhos, antes, fogem deles. Por fim, Jesus se define “a porta” e declara: “Quem entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). Ele diz que os que vieram antes foram “ladrões e assaltantes”. Agora ele veio para que as ovelhas “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Podemos entender melhor todas essas figuras da vida pastoril se lembrarmos o capítulo 34 do livro do profeta Ezequiel. Lá encontramos, depois das acusações contra os maus pastores que exploram e maltratam as ovelhas, a promessa de uma nova aliança e de um único pastor que cuidará das ovelhas, mas sobretudo podemos ler as palavras: “Pois assim fala o Senhor: eu mesmo buscarei minhas ovelhas e delas tomarei conta” (Ez 34,11). É evidente que o evangelista João quis nos dizer que aquela promessa se realizou com Jesus. As comparações apresentadas, não são definições, mas nos ajudam a entender ao menos duas coisas importantes: a familiaridade entre as ovelhas e o pastor e o fato que ele as chama pelo nome.

 

Intimidade significa confiança, afago, sinceridade e até cumplicidade para o bem, se quizermos.  O fato de ser chamadas pelo nome tem outro grande sentido. A referência é mesmo à vocação, ao chamado de Deus que, desde o Antigo Testamento, nunca é anônimo ou genérico. Pode ser o chamado de um povo inteiro, o de Israel, o escolhido, mas sobretudo é o chamado de pessoas que têm uma missão a cumprir. Muitas vezes., o nome delas já revela a qual tarefa serão enviadas. Nos Evangelhos, é o próprio Jesus que chama a segui-lo e é por causa dele que os discípulos deixam tudo (Mt 4,21c-22). Com isso, aprendemos que os chamados por ele não são “ovelhas sem nome e sem rosto”, são pessoas que não seguem uma doutrina, ou um conjunto de normas morais, mas decidem acompanhar alguém que os atraiu também com uma relação muito pessoal, amorosa e fascinante, apesar de ser exigente e desafiadora.

 

Talvez, para muitos de nós, Jesus é ainda um desconhecido. Ele não faz parte dos círculo dos nossos amigos dos quais conhecemos ideias, projetos, virtudes e defeitos. No entanto, ele nos conhece muito bem, mais do que nós mesmos, “nos escolheu antes da fundação do mundo” diria São Paulo (Ef 1,4), porque o caminho que ele seguiu para nos alcançar é o caminho do amor, de quem ama de antemão e de forma totalmente gratuita. Somos nós que ainda desconfiamos desse amor, temos medo que ele nos engane, manipule-nos ou aproveite de nós. Perdemos a oportunidade de seguir o único pastor que, com certeza, nunca esquece o nosso nome. O nosso pároco pode até esquecer, mas Jesus não.

 

 

Corações ardentes, pés a caminho (Lc 24,32-33)

 

No Terceiro Domingo de Páscoa, deste ano, a Liturgia da Palavra nos propõe a página bem conhecida do Evangelho de Lucas que nos apresenta o episódio dos discípulos de Emaús. Aproveito dessa oportunidade para refletirmos um pouco sobre o 3º Ano Nacional Vocacional, que iniciamos no Domingo de Cristo Rei em novembro do ano passado e que concluiremos na mesma festividade em 2023. O “lema” do Ano Vocacional: “Corações ardentes, pés a caminho” faz referência aos discípulos de Emaús. Eles, lemos no evangelho, estavam desanimados e, por isso, queriam deixar para trás Jerusalém e virar, por assim dizer, uma página decepcionante e dolorosa de suas vidas. No caminho, porém, encontram um peregrino misterioso que lhes pergunta sobre qual assunto eles estavam conversando. Iniciam, assim, um diálogo tão interessante que, no final, eles mesmos afirmaram que lhes “ardia o coração”, quando aquele estranho companheiro de caminhada lhes “abria” as Escrituras. Além das palavras iluminadoras e reconfortadoras, aquele peregrino lhes oferece algo mais. Ao anoitecer, aceita o convite para ficar com eles mais um pouco e, no gesto de repartir o pão, o reconhecem como o próprio Jesus vivo e ressuscitado. Ele “desaparece”, mas as suas palavras e o seu gesto foram mais do que suficientes para que os dois mudassem os seus planos. Imediatamente, regressaram a Jerusalém e lá encontraram os Onze reunidos com os demais. Todos juntos, confirmaram a própria fé na ressurreição do Senhor Jesus. Até aqui, o evangelho; uma página sempre surpreendente e cheia de mensagens para nós.

 

Para entender a escolha da referência aos discípulos de Emaús, neste Ano Vocacional, basta lembrar o tema proposto: Vocação: Graça e Missão. Falar em “vocação” significa acreditar que a existência de cada um de nós não pode ser uma mera coincidência  da “loteria genética” da espécie humana. Essa, no fundo, é a primeira pergunta que toda pessoa que pensa um pouco se faz: por que eu sou eu e agora estou aqui? Todas as vocações começam com o chamado à vida, mas logo desembocam na busca do próprio lugar neste mundo e na motivação do lugar procurado. Devemos ser agradecidos se no tempo da juventude podemos tomar com esperança e entusiasmo as grandes decisões da nossa vida: o trabalho, a família ou outros caminhos entre os muitos que se abrem à nossa frente. Muitas opções são nossas, mas muitas dependem das circunstâncias e das pessoas que encontramos, ou seja, são-nos oferecidas e, somente depois percebemos como e quando isso aconteceu. Cada um também sabe, em sua consciência, quanto a fé no Senhor e o pertencer, ou não, a uma comunidade cristã possa ter influenciado as suas escolhas.

 

“Vocação”, portanto, é “Graça” quando nos faz sentir felizes por estarmos no lugar onde estamos, fazendo o que podemos e sabemos fazer. Mas “Vocação” é também “Missão”, porque compreendemos que Alguém – e não simplesmente o acaso – colocou-nos naquela situação para colaborar e contribuir com algo muito maior do que nós. Podemos chamar isso de “vocação” a colaborar na construção do Reino de Deus? Esta é a primeira “Vocação” de todo cristão consciente do seu chamado. Desde o início, Jesus chamou colaboradores para segui-lo. Os acompanhou com paciência e carinho e os enviou para que fossem “à sua frente”. “E dizia-lhes: A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi ao Senhor da colheita que mande trabalhadores para a sua colheita” (Lc 10,2). Por que devemos rezar pelas “vocações”? Não é ele o “Senhor da colheita”? Não sabe de quantos operários precisa? Sem dúvida alguma, é sempre ele que chama. Mas a nossa oração abre os nossos ouvidos ao seu chamado, abre os nossos olhos para ver as necessidades dos irmãos, da comunidade, da Igreja, do país, da paz mundial; faz abrasar o nosso coração na alegria da resposta comprometida e generosa. Rezamos pelas vocações porque desejamos, ardentemente, que o Senhor não deixe faltar trabalhadores e trabalhadoras na sua vinha, que é a Igreja toda e a nossa Diocese de maneira especial. Porque temos tão poucos padres daqui? Será que rezamos mesmo com fé e esperança?

 

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Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia (At 10,40)

É sempre difícil expressar em poucas palavras a grandeza do evento pascal. Os próprios evangelistas tiveram que encontrar palavras novas para dizer algo inesperado e surpreendente. Isso vale também para nós. Se reduzimos a Páscoa a algumas afirmações decoradas podemos saber dizer que “Jesus ressuscitou”, mas, com isso, não deixamos ainda que essa “novidade” ilumine a nossa vida. Com efeito, a Páscoa de Jesus nos comunica algo extraordinário sobre Deus, Jesus e nós mesmos.
Afirmar que o Deus, Pai de Jesus Cristo é o “Deus da Vida e não da morte” é mais do que falar de imortalidade ou algo semelhante. Desde o Antigo Testamento, aprendemos que o problema do ser humano não é a morte biológica em si, que nos é apresentada como a conclusão natural de uma existência passageira. O que faz a diferença entre quem está vivo e quem está morto não é o número dos anos alcançados, mas a maneira de viver. Quem acompanha e obedece ao projeto de Deus está “vivo”. Quem não acolhe a proposta de Deus já está “morto”, apesar de estar andando ainda pelos caminhos deste mundo. Ou seja: somente quem está em “comunhão” com Deus está vivo de verdade. No Novo Testamento, é a vida de Jesus que nos é apresentada como uma forma de vida perfeitamente em acordo com a vontade do Pai. Isso não significa que tudo foi fácil para ele. Até o último dia, os seus seguidores esperavam alguma manifestação grandiosa de poder que revertesse a situação ameaçadora na qual ele se encontrava. Na Paixão, foram tantos os que gritaram: “Se és o Cristo, desce da cruz, salva a ti mesmo e a nós” (Lc 23,35-39).

Para muitos, ainda hoje, Jesus não soube aproveitar do seu sucesso, perdeu todas as oportunidades que a sua fama lhe oferecia para se tornar poderoso. Foi sempre essa a tentação que o acompanhou. É a mesma que nós todos experimentamos, quando temos que decidir como gastar a nossa vida e os talentos que recebemos sem pedir: usá-los para dominar os irmãos ou para servi-los? Se o Deus que Jesus veio nos fazer conhecer é amor, somente ele pode doar. Não quer tirar nada de ninguém e nem obrigar a fazer a sua vontade. Somos nós que nos preocupamos demais com aquilo que vamos ganhar. A vida de Jesus foi uma vida totalmente doada, a serviço do Reino de Deus que ele veio iniciar. Para segui-lo, chamou “os que ele quis”, mas ninguém foi forçado a fazê-lo.

 

O jovem rico, por exemplo, foi chamado ao seguimento, mas ficou livre de decidir e foi embora triste (Mt 19,16-22). Os apóstolos fugiram na hora da Paixão, mas Jesus, depois da Ressurreição, não os culpou pela covardia e nem os ameaçou de castigos, ao contrário, ofereceu-lhes a paz e o perdão. Por tudo isso, nós ousamos dizer que Jesus, “com forte clamor e lágrimas” (Hb 5,7), mas sobretudo com amor total caminhou livremente – e conscientemente – rumo à morte de cruz, e São Paulo chama isso de “obediência” ao Pai (Fl 2,8). Com essa vida e com essa morte, Jesus se tornou o “homem” que realizou, plenamente, o Projeto de Deus como o próprio Deus tinha pensado desde o início.

A vida dele foi diferente, sempre doada, sempre promovendo novas vidas com o perdão, a fraternidade, a partilha, a cura da maior de todas as doenças: o pecado entendido como “morte”, porque quando falta o amor morremos, afastando-nos de Deus e dos irmãos. Deus Pai “ressuscita” Jesus, porque a vida amorosa vivida pelo Filho encarnado é a própria vida de Deus que nem a morte pode vencer.

 

A Vida-Amor não morre, continua viva, porque participa da vida divina. A vida nova da “ressurreição” – a vida verdadeira que não morre mais – começa em nós, quando acreditamos e praticamos o que afirmamos no nosso Batismo: deixamos as obras mortas que levam à morte – também se chamadas poder, riqueza, prestigio, força – e abraçamos as obras que geram vida, encontro, misericórdia, união. A Vida Nova da Páscoa está mais perto de nós do que pensamos e lembramos, pois está conosco desde quando pela fé, a esperança e o amor tivemos o dom, não merecido, de participar da Vida Divina. Essa Vida é o mesmo Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos e que habita em nós (Rm 8,11). A comunhão com Deus-Amor não morre.

 

 

“Quem é este homem?” (Mt 21,10)

Chegamos ao “Domingo de Ramos da Paixão do Senhor” e iniciamos a Semana Santa. Todos os anos, somos convidados a acompanhar Jesus nos últimos dias de sua vida. Estaremos com ele na última Ceia, na despedida dos discípulos, na agonia do Getsêmani, no caminho do Calvário, na morte cruel na cruz, no silêncio do Sábado, até o amanhecer do dia da Páscoa. O convite para todos os cristãos é, evidentemente, para participar dos momentos litúrgicos que, com sua simplicidade e sobriedade, saberão reavivar a nossa fé e nos colocar mais perto do Senhor e dos irmãos.

 

Nesse sentido, a nossa maneira de viver os dias da Páscoa será um sinal de como e de quanto estamos interessados no assunto. Para muitos serão dias comuns, de trabalho e de atividades. Não podemos mais esperar que o vaivém da vida corrida, cheia de afazeres e negócios, pare para chamar a nossa atenção e nos lembrar que é Páscoa. Não estamos mais numa sociedade “cristã”, também se nas TVs passarão filmes sobre a Paixão do Senhor e seremos submergidos de mensagens com rostos ensanguentados de Jesus para todos os gostos, com as lágrimas de Maria e com todas as orações possíveis. Logo em seguida, será a vez de recebermos a obrigatória enxurrada de votos de “Feliz Páscoa”. Tudo isso significa que se, nesses dias, não paramos para refletir e nos questionar sobre a nossa fé, gastaremos tempo para, assistir, ler, responder e apagar as mensagens, mas tudo passará rapidamente e muito pouco ficará daquele evento fundamental, que para nós cristãos é a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Sim, um único “evento”, consumado em poucas horas. Para as autoridades daquele tempo, tudo devia acabar para sempre ao anoitecer daquela Sexta-Feira. Mas o corpo ensanguentado daquele malfeitor, condenado às pressas, para se livrarem dele, morto na cruz e sepultado de qualquer jeito, nunca mais foi encontrado. “Ele está vivo” começaram a proclamar os seus seguidores e saíram pelo mundo para espalhar essa notícia dispostos a morrer por causa disso. Algo novo, inesperado, surpreendente, tinha acontecido. Voltaremos sobre o assunto no próximo domingo.

 

Agora, o convite, é refletir e tentar responder à pergunta que “a cidade inteira” de Jerusalém, na sua agitação, fazia-se: “Quem é este homem?”. As leituras da Liturgia deste Domingo de Ramos nos ajudam, mas nada e ninguém poderá substituir o que cada um de nós pensa e declara acreditar, porque nós “recebemos” dos outros, através da comunidade cristã, o conteúdo da fé, mas a adesão a ela só pode ser pessoal, dada no exercício da nossa liberdade e no silêncio da nossa consciência. Vou apresentar algumas respostas. As multidões dizem: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11). Certo, um profeta. Mas a pouco servirão o seu exemplo e os seus ensinamentos. No processo, serão usados contra ele. Judas, saúda Jesus com um: “Salve, Mestre”. Em resposta ao seu beijo, ele escuta: “Amigo, a que vieste?”.

 

Até o fim, Jesus é amigo dos pecadores, pronto a mostrar-lhes o rosto misericordiosos do Pai. Até por isso foi julgado réu.  Na cruz, colocaram um letreiro com as palavras: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Era costume afixar no patíbulo o motivo da condenação. Mas, nesse caso, ficou um “título” que, diz outra coisa: o nome significa “Deus salva”. É como se estivessem escrito que “este” aí, Jesus, era o salvador do seu povo. Para o evangelista Mateus o “nome” de Jesus é importante, o usa mais de que os outros evangelistas. Esse “nome” é lembrado também na segunda leitura da Missa. Após ter dito que “Jesus Cristo” se fez obediente até a morte, e morte de cruz, na carta aos Filipenses lemos: “Por isso Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus é o Senhor”, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Também os soldados “se ajoelharam diante de Jesus, mas para zombá-lo (Mt 27,29). Um profeta, o amigo dos pecadores, o rei-salvador do seu povo…o Senhor… Afinal, quem é este homem para nós?

 

 

Eu sou a ressurreição e a vida (Jo 11,25)

 

Chegamos ao Quinto Domingo da Quaresma e concluímos a nossa reflexão sobre os três evangelhos que marcam os Escrutínios dos catecúmenos, rumo ao Batismo na noite de Páscoa. A página do evangelho de João proposta é aquela que identificamos como a “ressurreição” de Lázaro. Propriamente não foi uma ressurreição, mas uma reanimação. A “ressurreição” – de Jesus, para nós – é outra coisa. Nem sempre a terminologia ajuda a entender. A reanimação de Lázaro é o último dos sinais apresentados pelo evangelista João – o primeiro foi o das bodas de Caná – antes do sinal, por excelência, que será a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Portanto, um sinal que antecipa uma passagem: da morte para a vida. Qual morte? Qual vida? É isso que precisamos entender para chegar à alegria da fé que todos professaremos, renovando as promessas do nosso Batismo, junto aos catecúmenos, durante a Vigília Pascal.

 

Começamos com o uso das palavras que o evangelista João faz. Avisam a Jesus que o amigo dele, Lázaro, estava doente. Nesse caso, a palavra usada é a da amizade humana, da qual vem a nossa palavra “filantropia”. Logo em seguida, porém, é dito que Jesus era “muito amigo” de Marta, Maria e Lázaro. Desta vez a palavra usada é outra, é aquela que Jesus usa quando fala do amor que é doação, gratuidade total, que não espera recompensa, ou seja, um amor que vai muito além da solidariedade por mais generosa que seja. Jogo de palavras? Não. Aqui está a novidade do relacionamento que liga Jesus a esses “amigos”: aquele amor total que é puro dom. É por esse caminho que podemos começar a entender de qual ressurreição e de qual vida Jesus fala.

 

Todo amor humano é grande, valioso e digno de respeito, mas tem um “amor” que é mais do que humano, é participação do amor divino. A nossa morte e a morte de quem amamos interrompe os laços que nos unem. Juramos amor eterno, mas nada neste mundo dura para sempre e, muitas vezes, já começa misturado com outros interesses como o medo da solidão, a busca de uma vida melhor, o desejo de ter uma família, o nosso bem-estar individual. Cada um de nós carrega essas limitações. No entanto, é possível passar de um amor-amizade a um amor-doação, onde o que vale é mais a felicidade e a alegria dos outros que a nossa. Por isso, Jesus apontou como o maior amor aquele de quem doa até a própria vida para quem ama (Jo 15,13). A comparação é com o grão de trigo que só morrendo produz muitos frutos (Jo 12,24). Foi assim que Jesus nos amou, até o último suspiro da sua vida. A morte, lembramos, não é simplesmente algo biológico. Experimentamos também uma morte que é o não amor, o ódio e toda a negação da vida para os demais e a própria natureza com a qual estamos interligados. Somente quem aprende a amar com a doação-entrega de si mesmo experimenta um novo jeito de viver e participa da “vida plena”, a vida amorosa de Deus, que vai além da morte neste mundo passageiro.

 

Jesus chora na frente do túmulo de Lázaro,  solidariza-se com a dor de Marta e Maria, com a dor de todos aqueles que se despedem dos seus  entes queridos. No jardim das oliveiras também, Jesus, plenamente humano, passará, na sua agonia, pelo medo do sofrimento e da morte (Lc 22,44). No entanto o amor-doação, na obediência ao Pai, o amor total, falará mais forte e, em reconhecimento a esse amor, o Pai ressuscitará Jesus ao amanhecer do dia de Páscoa. A reanimação de Lázaro se torna, assim, o sinal de algo muito maior e oferecido a todos aqueles e aquelas que decidem começar a viver a “vida nova”, a do amor-doação. Nesse sentido, vamos deixar ecoar a voz forte de Jesus que diz a Lázaro: “Vem para fora!”. O não amor ou o amor egoísta é como um túmulo que nos aprisiona, fecha-nos em nós mesmos e nos nossos interesses. Ainda precisamos de alguém que desate as amarras e nos ponha a caminhar.

 

Quando o Batismo cristão é um encontro verdadeiro com o Senhor da Vida, algo novo começa a acontecer. A nossa vida é animada pela força e a luz do Divino Espírito Santo, penhor da vida plena, ganhamos ânimo e coragem para testemunhar e praticar um pouco do amor divino-humano oferecido por Jesus, vencedor do mal, do pecado e da morte. Ensina São Paulo: “Ora, a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

 

 

Senhor, dá-me dessa água (Jo 4,15)

 

Nos próximos três domingos de Quaresma, deste ano, deixaremos o evangelho de Mateus para ler três longos trechos do evangelho de João. Não é um capricho de quem planejou as leituras dominicais. Esses evangelhos, riquíssimos em suas mensagens, são os escolhidos para os ritos dos “Escrutínios” e “Exorcismos” que os Catecúmenos devem fazer durante a Quaresma antes de receber o Batismo na noite de Páscoa. Como era costume, a maioria de nós deve ter sido batizada bem pequenina e, portanto, não deve ter lembrança daquele momento. Os nossos pais e padrinhos decidiram por nós, convencidos de fazer algo certo e muito bom.  No entanto e justamente a Mãe Igreja quer oferecer a todos os que frequentam as liturgias, aos domingos, a oportunidade de “escutar” novamente esses evangelhos. Assim, a cada três anos, podemos nós mesmos avaliar a nossa caminhada na fé, os frutos do Batismo e confirmar a nossa escolha livre e jubilosa de seguir o Senhor Jesus, participando da nossa Igreja-comunidade. Além dessas razões, o Ano Vocacional Nacional nos convida a reavivar o nosso compromisso batismal porque, qualquer seja a nossa “vocação” e a nossa condição social, depois do chamado à vida, deveríamos acreditar que o maior dom que recebemos foi o fato de sermos cristãos, ou seja, de ter encontrado e conhecido Jesus Cristo.

 

Neste Terceiro Domingo da Quaresma, vamos nos colocar no lugar da mulher samaritana e dialogar com Jesus para ver se chegamos à mesma conclusão dela e dos samaritanos: “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). Na beira do poço de Jacó acontece o encontro entre duas sedes: aquela da samaritana, que foi ali para buscar a água para beber e uma outra “sede”, a de Jesus desejoso de ser reconhecido e acolhido por todos além das diferenças religiosas e morais. Com efeito, na frente dele está uma mulher que faz parte de uma crença desprezada pelos judeu e que já teve cinco maridos. Ela demora, mas, aos poucos, vai entendendo. Primeiro percebe que Jesus é “um profeta” (Jo 4,19), depois pergunta sobre o Messias e escuta daquele homem uma extraordinária autoapresentação: “Sou eu, que estou falando contigo” (Jo 4,26). A samaritana esquece o cântaro e volta para a cidade para contar o acontecido, levando consigo uma grande questão que é o passo necessário para alcançar a fé: “Será que não é ele o Cristo?”. Os samaritanos se aproximam de Jesus, escutam as suas palavras e muitos creem.

 

A página do evangelho da Samaritana diz muitas mais coisas que precisariam ser lembradas e aprofundadas. O que interessa, neste momento, porém, e espero possa ajudar mais alguém, é responder à pergunta: por que esse evangelho é colocado antes do Batismo dos Catecúmenos? Os “Escrutínios” e os “Exorcismos” são uma oração para que aquele que pede o Batismo tenha a força e a coragem de tomar a grande decisão de ser cristão. Terá que renunciar a algumas coisas e acreditar em outras. Talvez, terá que dar um rumo bem diferente à sua vida. Sem essa lucidez, o Batismo corre o perigo de ser reduzido a um costume social tradicional ou a uma imaginária proteção para a criança contra doenças ou maus-olhados. Nesses casos, estamos muito longe da fé cristã. Na prática, se as “sedes” da nossa vida são as do dinheiro, do sucesso, do bem-estar, do comodismo e de tudo o mais de material que empolga a nossa vida e anestesia a nossa consciência, o Batismo não vai servir para muita coisa. A “sede” que Jesus quer satisfazer é a do sentido profundo da nossa existência, ou seja, o desejo e a busca de ter motivações de vida e de compromisso que não nos fechem em nós mesmos, mas nos abram aos irmãos – junto aos quais caminhamos nesta peregrinação terrena – e mais ainda, sede daquela “água” que satisfaz todas as sedes: o Espírito da Verdade que Jesus quer doar aos seus amigos. Somente assim podemos ser os “verdadeiros adoradores” do Pai, filhos amados que colaboram na construção do Reino de Deus já neste mundo. Continuaremos essas reflexões sobre o nosso Batismo com o “cego de nascença” e o retorno de Lázaro à vida.

 

O rosto de pedra

 

Luizinho gostava de contemplar uma imensa pedra que tinha as feições de um rosto. A pedra ficava na encosta da montanha. O rapaz podia vê-la de sua casa. O rosto tinha a expressão de grande força, bondade, alegria e amor que fazia vibrar o coração do garoto. Uma lenda dizia que, no futuro surgiria naquele lugar um homem muito parecido com o rosto de pedra. Durante a sua infância, e mesmo depois de adulto, o garoto Luizinho cresceu contemplando o rosto de pedra que tanto o cativava. Certo dia, Luizinho, já grande, foi fazer compras na cidade. O povo da localidade conversava a respeito da lenda quando, de repente, alguém exclamou: – Vejam só! Luizinho é o homem que se parece com o grande rosto da pedra. Era verdade! Luizinho se tornara semelhante ao rosto que contemplava e que ocupava diariamente os seus pensamentos.

 

No Segundo Domingo da Quaresma encontramos, todo ano, a página da “Transfiguração”, desta vez, segundo o evangelho de Mateus. Para nos comunicar a sua mensagem e conforme o jeito bíblico de explicar as coisas, os evangelistas usam uma linguagem que chamamos de “narrativa”. Em lugar de definições e conceitos, preferem contar um acontecimento. Tudo isso devia servir para preparar os discípulos ao escândalo da cruz que também continuava a ficar difícil para todos aqueles que se aproximavam para abraçar a fé cristã. Para chegar a ser o Senhor glorioso da ressurreição o mesmo Jesus precisava antes passar pela terrível morte na cruz. Nunca será fácil enxergar algo luminoso na escuridão, na agonia e no abandono daquela morte. A voz do Pai confirma: “Este é o meu Filho amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Mt 17,5).

 

Onde está a luminosidade daquele Jesus tão humano que acabará rejeitado e condenado à mesma sorte dos malfeitores? Podemos entender isso somente acreditando no amor e na solidariedade divina que não abandona os seus filhos e vai resgatá-los até o fim, até na morte, para que participem da vida plena: a comunhão divina. Toda a vida de Jesus, todas as suas palavras, foram luminosas para quem o encontrava. Semeou esperança para os pobres, consolação aos tristes, paz para que vivia sem rumo e sem sentido. Assim deve ser o dia a dia de quem decide seguir o Senhor no caminho da doação generosa da própria vida. Quem se dispõe a servir aos pobres e aos pequenos é cobrado, é consumido. Se desgasta, sim, mas não desiste de amar, de perdoar, de acolher, como fez Jesus. Outros preferem aproveitar dos irmãos, explorá-los, enganá-los, tirar proveito da ingenuidade ou da confiança dos outros. Qual é a vida mais luminosa, de quem brilha pelo sucesso, a grandeza humana, ou a vida de quem, na maioria das vezes no escondimento da própria casa, de um hospital, de um asilo, de um abrigo, de um campo de refugiados, de um mosteiro (por que não?) se consome para fazer os outros felizes? Desta vez a resposta vem de Pedro que inebriado por alguns momentos pelo rosto brilhante de Jesus disse que era bom ficar lá, que era, simplesmente, maravilhoso.

 

Nós todos aprendemos a caminhar na vida olhando para os que nos precederam e que já estavam caminhando à nossa frente. Até alguns tempos atrás eram os pais, os familiares, as pessoas ao nosso redor que, com o seu exemplo, nos transmitiam a sabedoria da vida, os valores e a própria fé. Aos poucos, para quem queria, tínhamos tempo de assimilar aqueles ensinamentos. Hoje, evidentemente, não é mais assim. Muitas informações nos chegam de todo e qualquer lado e de toda e qualquer forma cada vez mais apressadas, misturadas, atropelando-se entre si. Quantos querem nos ensinar a viver porque, de fato, sempre precisamos olhar para os outros para aprender a dar um sentido à nossa vida. Também quem está fechado no seu individualismo doentio se achando o único ou a única que entende alguma coisa, não está imune da tentação de imitar alguém. Para nós cristãos, terá alguém mais luminoso do Senhor Jesus? É a ele que devemos olhar sempre. Quem sabe que um dia consigamos mesmo nos assemelhar a ele. Como foi para o Luizinho com aquele rosto bonito de pedra que ocupava os seus pensamentos.

 

 

Não só de pão vive o homem (Mt 4,4)

Iniciando a Quaresma, começamos também a Campanha da Fraternidade. Essa campanha é a proposta concreta da Igreja para que a nossa “conversão” e o nosso “jejum” quaresmais tenham uma atuação prática. No Primeiro Domingo, sempre encontramos a página das “tentações” de Jesus no deserto. A primeira tentação foi a de transformar as pedras em pão, algo muito atrativo para quem estava jejuando. Jesus não aceitou, ao contrário, respondeu com as palavras da Escritura: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Entendemos que essa narração é muito mais que um relato. O que está em jogo é a maneira de como Jesus viverá o seu “messianismo”. Será alguém ambicioso pelo poder humano, dominador do mundo, um “rei” maior do que todos os demais, um milagreiro insuperável ou um enviado pelo Pai para ensinar o caminho, difícil e sempre novo, da gratuidade e do amor? Pelos Evangelhos e pela pregação dos apóstolos conhecemos como foi a vida de Jesus, ele “andou fazendo o bem” (At 10,38). Foi um dom para quem o encontrava, deixou-se consumir pelo amor aos pobres, aos enfermos, aos pecadores, até oferecer a própria vida na cruz. Ele nos ensinou que a realização do Reino dos Céus, a “nova” humanidade fraterna, passa pela solidariedade, a partilha, a generosidade.

 

Ainda hoje, escutamos pessoas dizendo que se Deus fosse bom mesmo não deveria deixar ninguém morrer de fome, como se a culpa do egoísmo e das injustiças humanas fosse dele. O trecho do evangelho de Mateus (14,13-21) escolhido como iluminação bíblica para a Campanha da Fraternidade 2023 é aquele que nos acostumamos a chamar de multiplicação dos pães e dos peixes, e o lema repete as palavras de Jesus aos discípulos que queriam despedir o povo: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Ao juntar o pouco alimento disponível oferecido, ao entregá-lo nas mão de Jesus que o abençoa e ao distribuí-lo, algo surpreendente aconteceu: “todos comeram e ficaram saciados”. E ainda sobrou. A resposta decisiva à questão gravíssima da fome no mundo e no Brasil virá, sem dúvida, de uma melhor e mais justa distribuição dos recursos e das riquezas que o planeta – dádiva de Deus- nos oferece. Tudo deve começar, porém, pelos pequenos gestos, como foi aquele de partilhar os cinco pães e os dois peixes. Para que consigamos fazer isso, precisamos antes experimentar o mesmo que Jesus sentiu ao ver aquela multidão de sofredores e famintos: ele “encheu-se de compaixão” (Mt 14,14).

 

Essa “compaixão” é muito mais do que um sentimento, ela vai junto com a consciência de que algo está errado e, sobretudo, com o impulso a agir para que o sofrimento daqueles irmãos e irmãs seja mitigado. Este sempre será o primeiro passo a ser dado em sinal de solidariedade com quem passa fome. É a primeira das obras de misericórdia: “Estava com fome e me destes de comer” (Mt 25,35). Quantas ações bonitas as nossas paróquias e comunidades realizam neste sentido! No entanto, sabemos que isso não resolve o problema que é social e complexo. Por isso, a Campanha da Fraternidade, que pela terceira vez coloca a questão da fome, convida-nos a procurar e a reconhecer as responsabilidades e as mazelas que causam essa situação. Não basta dar uma “esmola” para quem precisa e assim silenciar a nossa consciência. Esse gesto sempre será uma das obras da penitência quaresmal, mas aos problemas sociais devemos dar soluções que envolvam toda a sociedade, ou seja leis justas e, quando for necessário, mudança também das relações econômicas entre as pessoas, as empresas e países inteiros. Quando uma ação precisa do envolvimento e da boa vontade de todos são necessárias motivações humanitárias, que vão além dos projetos partidários e de poder. Para nós, cristãos, as motivações nos vêm da Palavra de Deus, luz e alimento para as nossas escolhas pessoais e comunitárias. Por isso, junto ao “pão”, os cristãos têm que oferecer amizade, respeito, acolhida. A verdadeira “compaixão” deve alegrar o coração de quem doa e de quem recebe, para que, junto com a fome, sejam vencidos também a indiferença e o egoísmo.