Dom Pedro Conti

A lenda dos patos

Certo dia, uma grave disputa divide os patos da fazenda. De repente, cada qual vai se instalar no seu pequeno lago, para patinar no que lhe parece o oceano. Mas ficam até um pouco tristes por estarem separados. Sair do seu lago para se dirigir ao dos outros está fora de questão! Eis que a chuva cai forte sobre a fazenda. A água ocupa cada um dos lagos. No final, forma um grande lago, onde todos os pequenos patos, enfim reunidos, patinam juntos com jubilosa algazarra, fruindo a felicidade dos reencontros.

 

No evangelho de Mateus deste 7º Domingo do Tempo Comum ouviremos de Jesus algo que nos parece impossível ou, sem faltar o respeito, até devaneio. Ele nos diz: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem”. O nosso “bom senso” pode chegar, talvez, a não praticar a vingança contra quem nos prejudicou, a desistir de entrar na Justiça para ter de volta o que deixou de ser devolvido, a arriscar de caminhar um pouco junto com alguém no qual não confiamos, mas amar? É demais para nós. Nem todos têm a vocação de ser heróis ou burros, conforme a nossa maneira de pensar. No entanto, são palavras de Jesus extremamente questionadoras a respeito do nosso jeito de conviver e organizar a sociedade. Muito, pouco, ou ao menos um pouquinho, nós cristãos precisamos, urgentemente, dizer ao mundo que é possível pensar e agir de maneira diferente, buscando sempre formas novas de solucionar os erros e os conflitos da humanidade.

 

A motivação que Jesus nos apresenta é simples e clara: aquele Deus que ele pretende nos fazer conhecer é diferente dos outros deuses ou das ideias dele que construímos com a nossa inteligência. O Deus, Pai de Jesus e do qual ele nos diz que também somos filhos, não é um Deus de parte ou juiz da bondade ou maldade dos homens. Não! Ele “faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). Como assim? Agora vale tudo? Quem vai nos dizer quem está certo e quem está errado neste mundo? A questão é que o Deus Pai de Jesus é assim mesmo, é somente amor e, por isso, gratuidade absoluta, só pode doar a si mesmo, a sua vida plena e tudo o que existe e foi criado. As imagens do sol e da chuva ajudam a entender porque ambos são necessários para a vida. Se a alguém faltasse o sol e a chuva não poderia viver! Deus não exclui ninguém do seu amor e da vida, mas o oferece a todos, quer vida plena, cheia de sentido para todos. Não há privilegiados, queridinhos e outros adversários e inimigos. Assim é a bondade de Deus: é oferecida a todos. Também aos não cristãos, aos que seguem outras religiões, aos que não têm religião alguma, aos que pensam o contrário e disputam com eles, aos que, por algum motivo, cultivam sentimentos de ódio e praticam o mal e as injustiças. Está na hora de entender que o Deus Pai de Jesus e nosso tem um projeto de Vida Plena, de Reino, que é de fraternidade e comunhão. Não nos criou para sermos inimigos, para usarmos a nossa inteligência para matar ou enganar os outros.

 

Todos nós sabemos disso no fundo do nosso coração. No entanto, justamente porque é amor, Deus respeita a nossa liberdade, não nos obriga a fazer o bem e, menos ainda, o mal. Maravilhosamente, entregou em nossas mãos a criação, só pede que cultivemos este jardim para que “todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Bastaria reconhecê-lo como Deus Pai e obedecer ao mandamento do amor que Jesus nos ensinou. “Pecado” é desconfiar do projeto amoroso de Deus, duvidar que um dia toda a humanidade possa viver feliz e em paz neste planeta, que poderia e deveria ser o verdadeiro “paraíso terrestre”, não “um vale de lágrimas”. “Pecado” é gastar a vida para servir aos “nossos” projetos de poder, lucro e dominação, que geram sofrimentos e morte. Quando vamos entender isso, aprender e ensinar sermos irmãos? Vai precisar de um novo “dilúvio universal” para renovar a humanidade? Não, só um pouco de chuva para chegar a ter uma única lagoa para todos e assim nos encontrarmos de novo, felizes, como na lenda dos patos.

 

Por que choras?

“Uma menina, que foi mandada a fazer uma compra, perdeu o dinheiro e pôs-se a chorar. Um senhor, que por ali passava, perguntou-lhe:

– Menina, por que choras?

– Porque perdi o dinheiro com que devia fazer uma compra.

– E porque não tens mais cuidado? disse aquele homem.

– O senhor tem razão – continuou a menina – mas o que mais me aflige é pensar no quanto custa meu pai ganhar esse dinheiro. Aquele senhor, compadecido, deu-lhe o dinheiro. Alguns instantes depois, a menina voltou para devolver-lhe aquela importância, pois encontrara o dinheiro que havia perdido. O homem ficou admirado com tanta sinceridade, não aceitou a devolução e, como recompensa, deu-lhe mais outra quantia. A menina não queria aceitá-la, repetindo que não fizera nada mais que cumprir o seu dever. O senhor, porém, respondeu que ela merecia aquele presente porque procedera não só com justiça, mas sobretudo com grande honestidade.”

O fato contado, parece uma história de tempos passados. Duvidamos se isso aconteceria ainda nos dias de hoje. Mas, talvez, sejam situações de honestidade e generosidade que sempre são vividas em tantos lugares diferentes, porém não o sabemos. Escutamos tantas notícias de guerra, ódio, violência, corrupção, mentiras, que somos levados a pensar que esta humanidade esteja irremediavelmente perdida e que, portanto, não compense ser honestos, sinceros, confiáveis por serem homens e mulheres de palavra. O pior de tudo é quando tomamos conhecimento que irmãos e irmãs na fé estão envolvidos em fatos escandalosos. Até na guerra que preocupa a todos nós, existem “cristãos” de um lado e do outro.

Fica claro que temos muito caminho ainda a percorrer se decidirmos tomar a sério as palavras de Jesus, que ouviremos no evangelho de Mateus do 6º Domingo do Tempo Comum: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”. Basta substituir a palavra “justiça” com “amor” para entender a mensagem. Não basta cumprir normas para ter a consciência em paz. Precisamos recuperar a alegria de ver no outro um irmão com as mesmas necessidades e os mesmos direitos que nós. Com certeza, ninguém de nós mata um irmão de fome! No entanto, milhões de seres humanos perto e longe de onde moramos não conseguem sobreviver, porque ainda não aprendemos a partilhar os frutos da grandiosa dádiva de Deus que se chama natureza. Não matamos, mas deixamos morrer. Pode ser também que não cometamos adultério, mas a banalização do sexo só por prazer e sem amor, a exploração dos corpos só para serem desejados, com certeza não contribuem para a unidade das famílias e a educação da juventude. Se depois falamos de não jurar o falso, dá para ficarmos envergonhados. Sempre foi dito que uma mentira bem contada e muitas vezes repetida parece ser uma verdade e acaba convencendo as pessoas. Quantas falsas notícias ou suspeitas levantadas sem provas, acabam com amizades, matrimônios e famílias. Até as eleições de governantes e representantes do povo podem ser influenciadas pelas fake-news repetidas até a exaustão.

Mais uma vez, Jesus nos convida a prestar atenção e a dar valor às pequenas coisas e aos pequenos gestos, porque os grandes males começam com pouco em nossa mente e em nosso coração. Buscar a reconciliação para superar pacificamente um conflito pode ser o caminho certo para evitar algo pior e não alimentar disputas que nunca acabam. Igualmente, ter a força de cortar certas relações duvidosas pode ser um pedido que fazemos todos os dias ao Senhor em nossa oração. Por fim, zelar pela verdade é o mínimo que devemos fazer para ser considerados pessoas honestas e de confiança. Talvez seja o caso de contar para os outros casos de bondade, fidelidade, honestidade em lugar de espalhar maldades, traições, roubalheiras. Quem disse que as boas notícias não chamam atenção? Não é para canonizar alguém ou para disputar com as fofocas. É porque acreditamos que o bem e o amor praticados confirmam a nossa decisão de testemunhar a mais importante “boa notícia”: o Evangelho.

 

Sófocles e seus filhos

 

Um dos grandes poetas da Grécia e do mundo, Sófocles, foi denunciado como louco por seus próprios filhos, que, antes do tempo, pretendiam a herança paterna. Muitas pessoas acorreram ao tribunal para assistir ao processo. Por um lado, o velho poeta estava tranquilo e por outro, os seus filhos rebeldes se esforçavam para demonstrar a demência do pai. Então, Sófocles puxou debaixo da toga a sua última tragédia e a declamou diante dos acusadores, juízes e povo. Quando terminou, todos o aplaudiram freneticamente e pediram que o glorioso ancião fosse coroado com a coroa de louro, enquanto seus filhos, humilhados, fugiram às pressas. Há talentos que não é possível esconder.

 

No 5º Domingo do Tempo Comum, o Evangelho de Mateus nos oferece mais um trecho do discurso de Jesus, que chamamos “do monte” e que continuaremos a ler até o início da Quaresma. Sabemos que, com muita habilidade e sabedoria, o “mestre” ensinava através de comparações. Com efeito, Jesus declara que os seus discípulos são “sal da terra” e “luz do mundo”, mas continua dizendo que se o sal perde o sabor não servirá mais para nada e será jogado fora. Igualmente, qualquer luz, se ficar escondida, será inútil porque nada iluminará. Ao contrário, quando o sal preserva o seu sabor, dá gosto aos alimentos e uma lâmpada colocada no lugar certo “brilha para todos os que estão na casa”.

 

Podemos entender essas palavras como um desafio missionário. Pela própria realidade deles, o sal não dá sabor a si mesmo e nem a luz clareia a si mesma. Com as devidas diferenças, ambos cumprem um “serviço” para algo fora de si. O sal se mistura com os alimentos e a luz se espalha ao seu redor. Essa é a nossa primeira reflexão: a boa notícia do Reino que Jesus veio inaugurar deve ser difundida, mas não como a propaganda de um produto comercial ou de uma ideia mais ou menos brilhante. É fácil entender que nas comparações de Jesus o que está em jogo é o próprio sentido da nossa vida. Todos nós podemos preencher os dias à nossa disposição fazendo muitas coisas, algumas para sobreviver, outras para nos divertir, outras ainda para “enganar o tempo”. Podemos gastar a vida também atrás de ilusões ou adorando os ídolos que o mundo nos oferece. Porém, se aceitamos o convite para sermos discípulos de Jesus, comprometemo-nos, cada um com a sua vocação e os seus talentos, para que o Reino “do amor, da justiça e da paz” aconteça e preencha de gosto, alegria e luz a nossa vida e a vida daqueles que encontramos nos caminhos difíceis da existência. Alguns detalhes a mais para entendermos o certo e não imaginar coisas grandiosas pensando no tamanho da “terra” e do “mundo”. Não é a quantidade do sal que interessa, mas o sabor. É suficiente pouco sal, na medida certa, para dar gosto à comida. Assim, também, numa hora de escuridão, uma pequena luz pode clarear o necessário para encontrarmos o caminho. Jesus diz ainda que o eventual “brilho” do bem o qual somos chamados a realizar não será para nos exaltar, vangloriar ou competir entre nós, mas com o objetivo de os que o reconhecerem e compreenderem louvem o “Pai que está nos céus”. Tudo e sempre o que conseguirmos fazer deve ser para a glória do Pai, como fez Jesus em toda a sua vida. Ele mesmo nos ensinou a rezar: “Pai… santificado seja o vosso nome”.

 

Mãos à obra, então, na certeza que tudo o que for realmente bom, em prol da vida e da dignidade humana, feito por causa do Reino, haverá de aparecer e brilhar para a alegria de todos e a glória do Pai. Sempre ouviremos vozes a nos chamar de inúteis visionários, sonhadores do impossível, politicamente incorretos, talvez de loucos ou “endemoninhados” como aconteceu com Jesus. Mentiras podem ser levantadas, mas quando o poeta Sófocles expôs a sua poesia, não somente foi constatado que não era nada louco, como também todos acabaram aplaudindo. Menos os filhos dele que, com certeza, ficaram envergonhados. Afinal o que é belo, bom e o verdadeiro sempre brilhará, também se às vezes a luz parece demorar.

 

 

É preciso decidir

Um dia, um jovem partiu em busca de ovos de aves marinhas na superfície de falésias que se projetavam sobre o oceano. Ele já tinha apanhado um bom número, quando viu um magnifico ninho alguns metros abaixo. Previdente, ele levava uma corda. Prudente, amarra-a a uma sólida ponta rochosa. Esportivo, desce com facilidade. Mas para atingi-la, deve fazer o pêndulo de alguns metros na horizontal, o que faz com precisão, apoiando os dois pés na plataforma acessível. De repente, a corda lhe escapa das mãos e se põe a balançar ao longo da parede. O abismo é profundo e ele hesita a se lançar para recuperar a corda. Contudo, ela é a sua única salvação. Se não pegar, ele estará condenado a morrer preso àquela falésia perdida. A cada oscilação, a distância aumenta. É preciso decidir, antes que a corda pare longe dele. Reunindo toda a sua energia, o jovem se lança no vazio e pega a corda. Salvo!

 

No Terceiro Domingo do Tempo Comum, voltamos a ler o evangelho de Mateus que nos acompanhará ao longo deste ano litúrgico. Estamos no começo da vida pública de Jesus. Tudo tem início longe de Jerusalém, no norte do pais, na Galileia onde transitavam pessoas de outras religiões. Era chamada a “Galileia dos pagãos” (Mt 4,15). A respeito do “centro”, da capital e do Templo, aquela região era, evidentemente a periferia também no sentido religioso. Ao saber que João tinha sido preso, Jesus não quis o confronto com as autoridades. Começou de longe, no meio do povo humilde. No entanto os embates com os escribas, os mestres da Lei e os fariseu não demoraram a chegar. A pregação de Jesus nos é apresentada com poucas palavras: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. São as mesmas usada por João Batista (Mt 3,2) quando convidava o povo a praticar o seu batismo de penitência. De fato, Jesus retoma a mensagem que o tempo está curto, que a espera chegou ao fim, porque o “Reino dos Céus” já está presente. Agora, o “novo” é a própria pessoa de Jesus, o seu jeito de falar, agir, chamar a segui-lo. Assim, o evangelista Mateus nos apresenta o chamado dos primeiros discípulos. São pescadores, uma categoria de pessoas consideradas grosseiras. Contudo, a eles é prometido que se tornarão “pescadores de homens”. Seguindo o Mestre, aprenderão aos poucos a conhecê-lo e entenderão o sentido daquela promessa. Para os peixes, ser pescados significa morte. Mas se o mar é interpretado como o mundo perigoso, na escuridão do afastamento da luz e do amor de Deus, para os seres humanos, ser “pescados” significa vida, salvação, luz.

 

O evangelista Mateus nos diz que aqueles primeiros chamados deixaram “imediatamente” as redes e os barcos. Será que não duvidaram? Ou será a força da palavra de Jesus a ajudá-los a tomar uma decisão tão corajosa? Já conhecemos também as dificuldades que os apóstolos encontraram no seguimento do Senhor. Apesar do medo, o grupo não desistiu e ficaram reunidos até chegar o dia de Pentecostes. Hoje os chamados a seguir Jesus somos nós, cada um com a sua “vocação” e as suas condições de vida. É sempre bom refletir, em consciência, se de fato tomamos alguma decisão a respeito da nossa fé ou se continuamos a achar que ser cristãos é, afinal, uma questão de família, de costume, quase uma obrigação social. Fomos batizados crianças, recebemos os sacramentos que nos mandaram receber, mas, compreendemos e acolhemos as propostas de Jesus? Para alguns uma mudança mais radical de vida pode ser mesmo deixar muitas coisas e abraçar com decisão a causa do Reino. Para todos, porém, é sobretudo a nossa maneira de pensar, os valores que motivam a nossa vida que precisamos avaliar. Continuamos a nadar no mar do mundo do consumo, do bem-estar egoísta, da indiferença ou nos deixamos “pescar” para a Vida Nova de Jesus Cristo? Como para o jovem das falésias na beira do oceano, a corda da salvação balança a nossa frente. Tomamos coragem, pulamos, agarramo-nos a Jesus. Vamos segui-lo mais de perto. Quantas surpresas nos aguardam. Como àqueles primeiros e aos muitos que vieram depois.

 

Z: a máquina de escrever quebrada

“Emborz sejz zntigz, suz mzquinz de escrever zindz estz em bom estzdo e lhe prestz excelentes serviços se, como o senhor pode observzr, nzo tivesse umz dzs teclzs quebrzdzs. É fzto que restzm quzrentz e três normzis. Mzs bzstz que umz teclz nzo trzbzlhe normzlmente pzrz que hzjz diferençz com relzçzo z um trzbzlho bem rezlizzdo.”

 

Essa é claramente uma brincadeira. Para entender o que está escrito, basta substituir a letra “z” pela letra “a”. É verdade que ainda tem 43 letras boas, como diz o texto, mas…basta só uma delas errada para atrapalhar tudo. Talvez isso nos ajude a entender um pouco quanto “o pecado” torna a nossa vida mais difícil e menos feliz. No Segundo Domingo do Tempo Comum, encontramos um trecho do evangelho de João. Um outro João, o Batista, aponta a Jesus e o declara “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Temos assim uma referência antiga – o cordeiro pascal – e uma, absolutamente nova, aplicadas a Jesus. A consumação da carne do cordeiro na ceia ritual da Páscoa judaica era o memorial da saída do Egito e o sangue com o qual foram ungidos os dois umbrais e a viga da porta da casa dos israelitas (Ex 12,7). Para a fé cristã, expressa no evangelho de João, Jesus é o “novo” cordeiro, que imolado na cruz, uma vez por todas, libertou-nos da escravidão do pecado e da morte. O ressuscitado não morre mais. “A morte está vencida pelo Senhor da Vida”, cantamos na noite de Páscoa. A última palavra da história humana, portanto, não será aquela do pecado e da morte, mas do amor e da vida. Essa é a novidade que o evangelista João afirma chamando Jesus de o Cordeiro de Deus que “tira o pecado do mundo”.

 

Apesar de tantos sinais de violência e de morte que nos parecem dizer o contrário, a vitória final será da Vida; a raiz, a origem de todo mal – o pecado – está derrotado de uma vez por todas. A “Vida Nova” resplandece no rosto do Ressuscitado e se espalha na vida dos seus amigos e seguidores. Se “o pecado” era o afastamento de Deus e a infeliz disputa humana com ele, em Jesus, o Filho que o Pai não poupou, a humanidade reconhece quem é Deus de verdade. Com Jesus, ele se entrega em nossas mãos, não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva, porque Deus é Pai, é bondade, misericórdia e perdão. Essa “Vida Nova” já começou também para nós e tem nome: Espírito Santo, o Espírito do Senhor Ressuscitado. É com a força dele que nós podemos vencer os nossos pecados, tanto os pessoais como os que alimentamos juntos. Com efeito, o primeiro passo para vencer os nossos pecados é, justamente, enxergar onde, como, quanto e quando estamos errados. Somente se temos a coragem de nos deixar iluminar pela luz resplandecente do amor de Deus, o fogo luminoso do Espírito Santo, começamos a perceber a inutilidade do nosso mal, os frutos mortais do nosso egoísmo e da nossa indiferença. Junto com a compreensão dos nossos pecados, vem o desejo de mudar, de nos reaproximarmos de quem esquecemos ou apagamos: o próprio Deus, mas também os nossos irmãos mais pobres e desprezados nos quais Jesus se esconde. Para participar da vitória de Jesus sobre o mal e a morte não basta deixar os nossos pecados pessoais, precisamos também chegar às raízes das injustiças e de todas as causas de sofrimento, miséria e desumanização de tantos irmãos e irmãs. O Divino Espírito Santo não ilumina somente a nossa consciência para nos conduzir no fadigoso caminho da nossa conversão e santificação pessoal, ilumina também os povos, a história humana. Ele nunca deixa faltar evangelizadores e profetas, pessoas capazes de apontar caminhos novos. No entanto cabe a cada um de nós, lá onde vivemos, a fadiga da escuta, da busca, das escolhas, do reconhecimento dos sinais que Deus, na sua bondade, envia-nos.

 

Voltamos à máquina de escrever quebrada. Não dá para consertar? Se não conseguimos, ao menos sabemos que basta trocar a letra “z” pelo “a”. Sabemos por onde começar para que a Boa Notícia de Jesus possa ser entendida e acolhida. Nós ainda somos “mensagens” meio atrapalhadas, mas ele, o Senhor, não.

 

A Montanha da Paz 

 

Numa região rural, de natureza exuberante, havia um povoado cercado por uma serra muito bonita. Entre as montanhas havia uma, a mais alta, que se chamava Montanha da Paz pela suavidade das cores e formas da sua vegetação. Muitas pessoas subiam até o seu cume para desfrutarem da beleza natural do local. Sentadas lá em cima, elas percebiam as suas dificuldades diminuírem de proporção e quanto mais olhavam para baixo, mais se convenciam de que o seu problema era menor do que imaginavam. De lá de cima, tudo parecia ser pequeno e ter, praticamente o mesmo tamanho. Ao descerem da Montanha da Paz, as pessoas sentiam-se melhor. Tinham a percepção que toda dificuldade era pequena diante da grandeza de um mundo tão maravilhosos.

 

Com este domingo e sob a proteção de Maria, “Mãe de Deus”, iniciamos o novo ano civil. Também celebramos o 56º Dia Mundial da Paz. É bonito iniciar uma nova temporada com o pensamento e o desejo de paz, mas, olhando ao nosso redor e prestando atenção às notícias que chegam até nós, temos a impressão que ela seja cada vez mais difícil, para não dizer impossível. Sem dúvida alguma, a “paz” no sentido amplo da palavra será sempre algo em construção, um esforço “artesanal” feito de infinitos gestos, grandes e pequenos, capazes de apaziguar as relações entre as pessoas, os países, a humanidade inteira. Entendemos que estão em jogo interesses gigantescos, áreas de influências econômicas e militares das grandes potências, ódios antigos, questões nunca resolvidas, medo de uma guerra nuclear, preconceitos raciais e culturais. Soubemos, poucos dias atrás, que o planeta Terra chegou aos oito bilhões de habitantes. Para alguns analistas, isso significa que, se não mudarmos certos costumes, estamos perto de não ter mais condições de garantir alimentos e, em tempos breves, água doce para todos. As mudanças climáticas também vão influenciar a vida de povos inteiros com migrações em massa forçadas pela desertificação, pelos desastres naturais e o aumento do nível da água dos mares. Como se tudo isso não bastasse – ou por causa de tudo isso – sabemos que diversas guerras estão em curso, espalhadas pelo planeta, algumas mais publicizadas, outras quase escondidas, mas todas fatais para milhões de pessoas. Quantas crianças pelo mundo vivem na mais absoluta incerteza sobre o seu futuro… Se sobreviverem, qual e como será a “pátria” delas? Nesta altura, vale a pena ainda acreditar na paz, rezar e esperar que um dia ela chegue e faça de nós uma humanidade feliz?

 

Evidentemente não tenho propostas ou estratégias particulares para resolver questões tão grandes, no entanto não quero desistir de confiar no ser humano por transtornado, confuso, fanático ou sofrido que seja. Como sempre, o que faz notícia é o mal e a violência, mas o que muda a história é o bem construído aos poucos, na maioria das vezes, com “sangue, suor e lágrimas”, ou seja, com o compromisso e a paciente teimosia de tantos heróis pequenos ou grandes, anônimos ou famosos. Junto com as estruturas de injustiça e de morte, que nós mesmos criamos, precisamos sempre lutar para converter os nossos pensamentos e os nossos corações para que sejam de respeito e de diálogo. Igualmente, pequenas e grandes experiências de convivência pacífica e promoção dos mais necessitados fazem amadurecer em nós projetos de partilha, de mútua ajuda e solidariedade. Como discípulos do mestre Jesus, não podemos desistir do ser humano. A bem-aventurança dos “construtores de paz” (Mt 5,9) nos lembra que eles e elas “serão chamados filhos de Deus”. Mais uma vez, tudo depende de como é o Deus no qual dizemos de acreditar. Se for um Deus de parte, nos conduzirá a conflitos e disputas, mas se for o Deus Pai de todos, como Jesus nos fez conhecer, capaz de doar o seu próprio Filho para ensinar como se ama, temos mais uma missão a cumprir: ser homens e mulheres de reconciliação e de paz. A Montanha da Paz não existe, mas sempre podemos imaginar como Deus-Amor gostaria ver os seus filhos: brigando ou se abraçando?

 

 

Jesus, pessoa-fonte 

 

Santo Alberto Magno escreveu: “Existem homens e mulheres-vaso…que têm e retêm, porém, não dão, não compartilham; a água pode estancar e corromper-se. Existem as pessoas-canal, vala, tubo…em que o líquido passa através delas…porém, sem se reter, esvaziando-se totalmente. E têm as pessoas-fonte…que se dão sem nunca se esvaziar; elas oferecem ao sedento sua água, seu caudal…sem diminuí-lo, porque mana sempre. Jesus Cristo pertence ao terceiro grupo: É fonte inextinguível. É água que mata a sede. É água que acalma a febre. A água que restabelece o caminhante fatigado, suado, estressado. A água que refresca, limpa e dá novos brios para prosseguir… Jesus é o manancial que mana constantemente para o bem da humanidade. Sua água nos ajuda enormemente a viver melhor nossa vida e a fazer com que os demais também a vivam”.

 

Chegamos ao dia de Natal, com todas as suas tradições e formalidades, emoções e memórias. Por muitas razões, o Natal cria uma “atmosfera” diferente do resto do ano. Repetimos gestos, trocamos votos de felicidade, mas sempre tem algo novo. Também quem não acredita, quem não celebra o nascimento de Jesus, vive, a seu modo, os dias de Natal, porque só o Natal é “mágico”! O Menino Jesus com o seu nascimento nos dá a sensação que algo velho, passado, e que podemos sempre recomeçar, quase um renascer. Tudo isso é bonito e nos alegra. Precisamos de esperança, de coragem para abrir novos caminhos, mudar e jogar fora tanta bagagem “velha” que nos incomoda e que carregamos inutilmente.

 

Nos encontros das nossas famílias temos a possibilidade de sorrir novamente a todos, de abraçar e olhar nos olhos aqueles e aquelas com os quais, ao longo do ano, só falamos pelo celular, às pressas, para resolver questões urgentes. Nos dias de Natal parece que o tempo se torna mais longo, que podemos nos dar ao luxo de jogar fora conversas, sem a escravidão do relógio. Tudo isso é muito bom. Somos verdadeiramente humanos somente quando nos comunicamos; por isso precisamos escutar e ser ouvidos, trocar ideias, sentimentos, anseios e preocupações. Nas conversas com os amigos lembramos de promessas feitas no ano anterior, de algum compromisso esquecido, de acordos que nunca saíram do papel. Isso também é interessante, porque serve para reconhecer o que, sinceramente, consideramos importante e o que não passa de palavreado ocasional. O Natal é tudo isso e muito mais; marca a vida de cada um, deixa a memória de lugares e pessoas, daqueles com quem estávamos no ano anterior e agora, talvez, não estejam mais conosco. Natal é também saudade, recordações. No entanto, temos certeza que estamos celebrando o Natal de Jesus ou simplesmente nos deixando envolver pelo “clima” do momento, pelas luzes, as ofertas especiais, as ceias e os presentes? Não tenho medo de afirmar que, para nós que nos consideramos cristãos, o Natal deve ter algo diferente porque deve ser, em primeiro lugar e antes de tudo o mais, o Natal de Jesus. Cabe a nós, em todos os momentos e em todas as oportunidades, lembrarmos quem estamos festejando: a mensagem, a vida, a pessoa daquele que agora, criança, contemplamos deitado na manjedoura, mas, um dia, levantaremos os olhos para vê-lo pregado na cruz e, depois, reconhecê-lo ressuscitado e vivo para sempre. É nosso compromisso colocar Jesus no lugar certo na festa do seu Natal. De outra forma, podemos vibrar por mil emoções natalinas, mas sem o verdadeiro festejado.

 

É Jesus a “fonte” das palavras de paz que trocamos no Natal, das felicidades que nos desejamos uns aos outros. É ele a fonte dos gestos de bondade e de solidariedade do Natal. É ele a fonte que nos faz sentir melhores quando perdoamos, abraçamos, socorremos. Os dias de Natal vão passar, mas Jesus deve continuar a ser a fonte do amor que transforma as vidas, coloca o bem onde o mal parecia dominar, espalha alegria onde tudo era triste e desanimado. Com Jesus, fonte de vida nova, nós podemos aprender a ser também pessoas-fontes, que não seguram para si, mas doam sempre, doam tudo, por amor. Como fez Jesus. Feliz Natal para todos!

 

O sonho    

 

“Sonho com um mundo no qual o homem já não despreze o homem. Onde reine o amor na terra, onde a paz adorne os caminhos. Sonho com um mundo em que todos percorram as sendas doces da liberdade. Onde a cobiça não cubra de sombras nossos dias. Sonho com um mundo em que brancos e negros, seja qual for a sua raça, compartilhem os dons da terra. Onde todo homem seja livre. Onde a miséria vergonhosa abaixará a cabeça. E a alegria, como uma pérola preciosa, preencherá os anseios da humanidade. Aqui está o mundo com que sonho. (James M. Lagston Hughes (1902-1967) foi um poeta e escritor negro).

 

Chegamos ao último domingo do Tempo de Advento. Neste dia sempre encontramos o “anúncio” do nascimento de Jesus feito a Maria ou a José. O evangelho de Mateus deste ano litúrgico nos apresenta o “sonho” de José. Ele já estava comprometido com Maria, mas ainda não a tinha recebido como sua esposa. Era um homem “justo”, ou seja, fiel cumpridor da Lei de Moisés. Por causa disso, ao tomar conhecimento da gravidez inesperada de Maria, devia abandoná-la. Resolveu fazer isso “em segredo” para não expô-la à vergonha pública e relativos castigos. “Em sonho” recebe a mensagem de não ter medo de desobedecer à Lei e de acolher Maria na sua casa. Ele mesmo, José, dará o nome de Jesus à criança quando nascer.

 

Como é comum na Bíblia, o nome da pessoa escolhida revelava a missão que Deus lhe confiava. “Jesus” significa “Deus (Javé) salva!”. O evangelho lembra também a profecia de Isaias: “Eis que a virgem conceberá e dará luz um filho” (Is 7,14). Outro nome é lembrado: “Ele será chamado de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. Assim a “anunciação” a José – e a nós – se completa: nascerá uma criança que se chamará Jesus e terá como missão: “salvar o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21).

 

O “sonho” indica uma comunicação especial: é Deus que dá a notícia daquilo que ele mesmo vai fazer. Um compromisso real e, ao mesmo tempo, misterioso porque não é algo simplesmente humano, é uma promessa do Altíssimo. José acredita e, quando acorda, obedece; este “sonho-revelação” merece toda a sua confiança. Estamos em plena linguagem bíblica. Anjos e sonhos eram usados para que fosse conhecido e levado em frente o projeto de Deus, uma espécie de assinatura dele. Nada de brincadeiras ou de fantasiosas imaginações humanas. Está em jogo a fidelidade de Deus à sua própria palavra, é o Pai que envia o seu Filho para salvar a humanidade. “Pecado” é tudo o que nos afasta do amor a Deus e ao próximo. Jesus, com suas palavras e com sua vida doada na cruz, obedecendo ao Pai e nos amando até o fim, nos oferece a possibilidade de nos reconciliar com Deus, com os irmãos e, hoje entendemos, também com a própria criação. O “sonho-projeto” de Deus é de vida, de paz, de alegria.

 

Nós todos sonhamos, às vezes dormindo, muitas mais vezes acordados, imaginando e fazendo planos. Algumas vezes conseguimos realizar os nossos sonhos, outras não; eles ficam guardados no baú da memória dos nossos desejos e anseios. Uma lição muito importante nos vem do “sonho” de José. O que parecia um casamento comum, na realidade foi o início de uma nova história, onde Deus estará presente junto à humanidade. Jesus e Emanuel são os nomes da criança anunciada: Deus salva porque Está conosco ou Está conosco porque quer nos salvar? Com Jesus, Deus não veio para impor o seu projeto, mas para que ao conhece-lo e segui-lo nós pudéssemos participar do seu sonho de amor para com todos. A salvação que Jesus consiste em sair dos nossos projetos individuais, egoístas e gananciosos, para sonhar, juntos com ele, um mundo de paz e fraternidade, onde o próprio Deus –  com as religiões para nos entender – não seja motivo de divisão ou de ódio, mas de reconciliação, misericórdia e comunhão. No Natal voltamos a sonhar juntos o “sonho” de Deus, com José, o homem justo, com Maria a virgem-mãe, com todos os homens e mulheres de boa vontade.

 

O camelo e o beduíno

Um beduíno, muito obeso, pediu a um eremita, pele e ossos, um conselho para emagrecer. O eremita respondeu:

– Experimente fazer longas corridas junto ao seu camelo. Após mais ou menos um mês, o beduíno voltou para visitar o eremita. Este lhe perguntou se havia conseguido algum benefício, seguindo o seu conselho.
– Ó certamente! – respondeu o beduíno – O camelo perdeu vinte quilos num mês.

No evangelho do Segundo Domingo de Advento, encontramos a pessoa de João Batista e a sua pregação. João vivia no deserto da Judeia de maneira muito austera, jejuando e vestindo roupa grosseira. O que logo chama a nossa atenção são as palavras que ele usa para convidar à conversão: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (Mt 3,2). Mais tarde, depois que João foi preso, Jesus iniciou a pregação dele exatamente com palavras iguais (Mt 4,17). Muitos ficaram confundidos, até Herodes achou que Jesus era o João Batista ressuscitado (Mt 14,2).

Precisamos aprofundar essa questão. Sem dúvida, João Batista preparou o caminho para Jesus e antecipou algumas das suas palavras. De fato, eram tempos de grande espera, falava-se muito do “messias” que devia chegar. Fazia muito tempo que os profetas o tinham anunciado, mas ninguém sabia quando, como e onde iria aparecer. Daí o convite a ficar atentos, a mudar de vida, a fazer penitência, para estar prontos na hora da grande chegada. No entanto se prestarmos melhor atenção à pregação do Batista e a confrontarmos com as palavras de Jesus, logo percebemos as diferenças. João usa palavras fortes, fala do “dia da ira”, ira de Deus evidentemente, e ninguém poderá escapar disso. Ele fala do machado que está colocado à raiz das árvores para cortá-las se não produzirem

frutos. Aquele que virá, o “esperado”, limpará a sua eira, guardará o trigo no celeiro, mas queimará a palha “no fogo que não se acaba”. Também Jesus usará algumas frases “de efeito” como estas do Batista, chamando alguns de hipócritas e “raça de víboras”, mas, na prática, ele teve uma atitude de compaixão e misericórdia com os pecadores que frequentava sentando à mesa com eles e elas. Por isso, Jesus foi chamado de “comilão e beberrão” (Mt 11,19).

Podemos entender que, às vezes, amedrontar alguém ou ameaçar com um castigo pode surtir o efeito de fazer a pessoa desistir de tomar certas atitudes naquele momento. No entanto o medo é passageiro e não convence ninguém. Quando quem falou se afasta ou vira as costas, o temor desaparece. O perdão também não é sucesso garantido. Contudo, o objetivo da misericórdia não é garantir que o erro nunca mais se repita, mas ajudar quem agiu mal a tomar consciência das consequências da sua ação e, ele mesmo, decidir não mais fazer sofrer alguém. Quando isso acontece, a experiência é de alegria e de alívio de ambos os lados: de quem fez o mal e de quem o recebeu. Sem rancores e vinganças, surge a chance de uma vida nova e diferente para todos. É isso que chamamos de “conversão”.

Quem agiu errado resolve se corrigir, e quem teve compaixão percebe que o seu coração está em paz. Por isso, o convite à conversão e ao exercício da misericórdia são sempre para todos. É questão de educação e treinamento. Poucos se tornam bons de uma hora para outra. Igualmente o perdão exige algo nada fácil: reconhecer antes os nossos pecados e defeitos e assim parar de julgar os outros e de condená-los.

Sessenta anos atrás, o santo Papa João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, disse claramente que havia chegado a hora em que a Igreja, depois de ter, por séculos, apontado os erros da humanidade, devia usar de misericórdia e mostrar a todos o caminho de reconciliação e de paz. Muitos fazem como o beduíno que devia emagrecer e que correu junto ao seu camelo. Pelo jeito, porém, o fez montado no animal e não o acompanhando no esforço. O exercício valeu para o camelo, mas não para ele.

À caça do Paraíso

O santo eremita Macedônio foi, um dia, surpreendido na sua solidão por um príncipe que, com um séquito numeroso, andava caçando na floresta vizinha.

– Que fazeis nesta solidão, neste deserto? Perguntou o príncipe ao eremita.

– Permita-me – replicou o eremita – que vos pergunte primeiro: Que fazeis aqui?

– Como vedes, eu vim caçar.

– E eu também, disse o eremita, eu também vim à caça. O que eu procuro, porém, é um bem eterno: ando à caça do Paraíso. O príncipe despediu-se e partiu, meditando seriamente naquelas estranhas palavras do santo eremita: “ando à caça do Paraíso”.

Neste domingo, celebramos a festa de Todos os Santos e Santas, os famosos e venerados e os conhecidos somente por Deus. Quando encontrei o diálogo acima, num livro escrito há mais de sessenta anos, pensei colocá-lo aqui. Pergunto: será que, hoje, ainda entendemos a vida cristã como uma “caça ao Paraíso” ou, dito com outras palavras, a busca da santidade – e também do “Paraíso” – interessam ainda aos cristãos de nossos dias? Espero que sim, obviamente, mas talvez precisamos refletir um pouco sobre o que entendemos com essas palavras fascinantes para alguns e desafiadoras para todos.

Provavelmente, aprendemos que a santidade é a condição para chegar ao Paraíso. Certo. Mas quem julga a santidade de uma pessoa e se ela merece ou não estar no Paraíso? Já aconteceu,  muitas vezes, que o povo cristão considerasse alguém santo ou santa ainda em vida. Para outros, porém, foi a Igreja a reconhecer oficialmente as “virtudes heroicas” deles e eventuais fatos extraordinários considerados como frutos da intercessão daquela pessoa junto de Deus. No entanto é bastante fácil entender que, afinal, somente Deus, na sua infinita misericórdia, pode julgar quem merece ou não estar no Paraíso. Essa meta nunca será um direito adquirido, fruto das nossas obras; sempre será mais do que um prêmio, será um verdadeiro dom, com certeza, muito acima do esperado.

Por isso, o Papa Francisco costuma convidar os jovens a serem, hoje, os santos de “calça jeans”, gastando a própria vida fazendo o bem com o seu jeito juvenil e a novidade que cada geração traz. Igualmente, ele fala sempre para prestarem atenção aos “santos da porta de lado”, ou seja, aqueles vizinhos ou vizinhas dos quais pouco ou nada sabemos, que nunca serão famosos, mas que, de fato, vivem uma autêntica santidade nas suas famílias, nos seus sofrimentos, nos seus serviços humildes e silenciosos. E o Paraíso? Também sobre isso podemos estar muito equivocados , sobretudo quando pensamos que seja algo que vai acontecer somente após a nossa morte, na outra vida, se ainda nela acreditamos, ou se for questão de ter do bom e do melhor, de “sombra e água fria”, ou seja, afinal, somente uma fartura de bens materiais e prazerosos.

A “vida plena”,  que novamente só Deus pode oferecer, será a plenitude daquilo que todos desejamos, mesmo sem ter plena consciência e até quando o buscamos por meios e caminhos errados. Falo da plenitude daqueles “frutos” do Espírito Santo que São Paulo apresenta na carta aos Gálatas e que já deveríamos produzir nesta vida; eis os primeiros três: amor, alegria e paz. Se gastamos a vida para multiplicar o desamor, a tristeza e as intrigas, estamos planejando o “inferno” para nós e para os que já tornamos infelizes neste mundo. Mas se praticamos o amor, espalhamos alegria e construímos a paz, já estamos antecipando um pouco daquilo que será a Vida Nova do Paraíso. Os bens materiais são dádiva de Deus, dos quais devemos ser sábios e fiéis administradores, ou seja, deveríamos usá-los e multiplicá-los para o bem nosso e dos nossos irmãos. Se for somente para nos enriquecer, quem sabe, até enganando e explorando os nossos semelhantes, talvez, possamos pensar  ter já alcançado o “paraíso” nesta vida, mas, bem sabemos, que nada levaremos das riquezas acumuladas na terra. As nossas mãos só poderão apresentar os tesouros de bondade doados aos pobres e desvalidos. Eles mesmos nos abrirão as portas do céu. Afinal, somos todos “caçadores” de felicidade. Onde? Já agora, por aqui, praticando o bem, mas incomparável e surpreendente será a felicidade do Paraíso. Ainda acreditamos e esperamos nisso?