José Sarney
A crise elétrica no Amapá
T enho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.
Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.
Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.
Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.
Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.
Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.
Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.
Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.
O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.
A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.
Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”
A causa negra também é minha
As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.
Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo. É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.
Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.
O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.
Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.
O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.
Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.
Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.
A crise elétrica no Amapá
Tenho procurado resistir a falar sobre a crise de energia do Amapá. Agora não aguento mais. É que a minha indignação sobre o que está acontecendo é insuportável. Não queria falar nada com receio de que fosse interpretado como uma tentativa de participar da luta política que está se realizando, que até hoje se arrasta.
Não é o caso de solidarizar-me: este sofrimento também é meu. Não há quem desconheça no Amapá a minha obsessão com o problema energético, que deixei resolvido. E vejo agora que a falta de manutenção de um transformador, por descuido, descaso ou irresponsabilidade, levou esse sofrido povo do Amapá a passar por um doloroso momento de perdas pessoais com a falta de energia, que incluem da assistência à saúde aos problemas econômicos.
Quando cheguei ao Amapá em 1990, as cidades viviam no escuro, sem qualquer negócio que precisasse de refrigeração, como o gelo para o pescado — a pesca era a maior oportunidade de trabalho da população mais pobre. A única fonte de abastecimento de energia eram uns velhos motores russos, antigas turbinas de avião que algum malandro tinha empurrado ao governo do então Território do Amapá. Tive que comprar um motor a diesel para fornecer energia à casa em que morava. Era uma calamidade pública, sem solução à vista.
Assumindo o mandato minha primeira ação foi a de resolver esse problema. Consegui que fosse nomeado Presidente da Eletronorte técnico com a tarefa de resolver o problema de energia. A primeira providência foi fazer com que Antônio Carlos Magalhães liberasse os motores de Camaçari, que eram reserva daquele Polo Petroquímico, e levá-los para o Amapá. Isso resolveu o problema imediato. Em seguida, estabelecemos o levantamento do potencial energético dos rios do Amapá e descobrimos que o rio Araguari podia comportar três hidroelétricas e o rio Jari outra, em Laranjal do Jari. Uma luta com o Pará para que a casa de força ficasse do lado do Amapá atrasou o projeto. Isso me custou uma briga com o Amazonas, pela qual paguei caro: um senador daquele Estado passou a fazer uma campanha contra mim, que muito me atingiu e prejudicou.
Como meu projeto para o Amapá era de longo prazo, continuamos a trabalhar com os sucessivos presidentes da Eletronorte, entre os quais tivemos como colaborador um grande técnico, autor de um projeto global que foi finalmente executado: José Antônio Muniz, depois Diretor e Presidente da Eletrobrás.
Surgiu o grande projeto de levar a energia de Tucuruí para Manaus. A linha de transmissão correria do lado esquerdo do rio Amazonas. Com o Ministro Silas Rondeau e a ajuda da então Ministra Dilma, o projeto foi modificado, passando para o lado direito, com a finalidade de estabelecer uma linha para Macapá. E assim foi feito. O Amapá ficou ligado ao Sistema Nacional de Energia e hoje é exportador de energia. A energia possibilitou iluminarmos todo o interior do Estado, que vivia na escuridão.
Para dar trabalho (hoje é a maior fonte de emprego), criamos a Zona de Livre comércio de Macapá e Santana, que melhorou a vida de todos, pois os produtos passaram a ficar mais baratos.
Agora, depois dessa luta toda, de anos e anos, vem a irresponsabilidade na manutenção de uma Estação de Rebaixamento, sem compromisso técnico, sem um transformador de reserva e provoca essa tragédia.
O Amapá sabe o quanto o problema de Energia me toca.
A todos a minha revolta e o meu desejo de pronto restabelecimento do sistema.
Como eu disse na inauguração de Santo Antônio, citando Rui Barbosa: “Eu não vim aqui plantar couves e sim carvalho.”
Uma eleição fora da Curva
É com uma mistura de ansiedade e esperança que chegamos à eleição mais diferente que já vi. A política, que sempre se agita, é claro, no momento em que os eleitores escolhem seus representantes e governantes, nesse caso vereadores e prefeitos, apareceu pouco na vida diária, com a restrição de aglomerações e toda a atenção da imprensa voltada para o sul e para o exterior.
A eleição que parecia existir realmente era nos EUA, entre Biden e Trump, que até hoje bate o pé que ganhou o que perdeu. Na campanha norte-americana, que coincidiu com o começo da nova onda da Covid-19, o comportamento dos dois candidatos a presidente foi muito diferente, com o Biden usando máscaras e optando pelos contatos virtuais, o Trump desprezando as recomendações médicas e indo ao encontro de seus seguidores fanáticos. Pela esperança de uns de que o radicalismo de direita continuasse, a certeza de outros de que precisavam deixar para trás aquele acusado de ser o pior presidente da História americana, em plena pandemia fizeram grandes filas de eleitores — e uma parte importante votou pelo correio ou antecipadamente. Dificilmente se saberá as consequências da proximidade exagerada das pessoas, mas o certo é que a comunidade da Casa Branca está aos farrapos com as contaminações, que teriam comprometido, pelo número de atingidos, a segurança presidencial.
Aqui no Maranhão, felizmente, a doença segundo as estatísticas oficiais está estável, e espero que isso não seja comprometido pelo dever cívico de votar. O nosso sistema de alistamento e voto com controle estatal e centralizado é certamente, nesse ponto, muito superior ao norte-americano, que é um caos que funciona. Isso não quer dizer que não tenhamos nossas falhas no processo eleitoral, e a maior delas é a da inexistência de democracia partidária, por sua vez uma das causas do exageradíssimo número de partidos. Não temos o essencial num partido, que é o programa que define suas ideias, formando uma organização em torno de princípios comuns de como devem ser governo e Estado.
Mas as atenções estavam voltadas, eu dizia, para o sul, onde está se concluindo nossa participação no desenvolvimento da guerra das vacinas. É algo em que não pode haver qualquer intervenção que não seja de total apoio à pesquisa e à medicina. Lembro que o mundo tem 53 milhões de casos confirmados. A Humanidade somos 7,8 bilhões de pessoas. O tal “efeito manada” deve se dar quando 70% tiverem sido contaminados: 5,4 bilhões — nem pensar! Nossa esperança, portanto, está na vacina. Que venha logo!
Enquanto isso não descuidemos, inclusive na hora de votar, das recomendações básicas: máscara, distanciamento social, higiene das mãos etc. A nova onda da Covid-19, que parece estar relacionada com a aproximação do inverno, está atingindo em cheio a Europa e a América do Norte. Os dados são alarmantes, muito superiores aos dos picos da primeira onda. Países que tinham tido comportamento modelar, como Áustria, Suíça, Eslováquia, estão na ponta dos valores relativos.
Mas assustam mesmo os números crus: os Estados Unidos pularam em dois dias de 100 para 150 mil novos casos diários.
Eleições americanas
É difícil para nós entendermos o sistema eleitoral americano. Estamos a cinco dias das suas eleições. A grande diferença para o sistema brasileiro é que aqui as regras eleitorais são federais, lá são federais e estaduais. Cada Estado tem independência para fazer seu sistema de votação como quiser. Apenas devem respeitar o que a Constituição regulou: primeiro, o presidente é eleito por um colégio eleitoral, numa tentativa de equilibrar os grandes e pequenos estados; segundo, cada estado elegerá dois senadores e tantos deputados quanto 1/435 da população total do país. Quando foi feita a Constituição, em 1787, não existia a eleição de vice-presidente. A eleição era só de presidente, e o segundo mais votado seria o vice-presidente — essas regras foram mudadas em 1804, com a introdução do Colégio Eleitoral pela XXII Emenda Constitucional.
Assim, a diferença para os sistemas das outras democracias liberais é a heterogeneidade. Como as regras são estaduais, não há um padrão. Tem estado que elege prefeito, tem o que faz referendo ou plebiscito, tem o que elege o presidente do conselho municipal etc. No estado em que morreu um senador, o seu sucessor é indicado de uma maneira própria, seja pela assembleia estadual, seja pelo governador, e o escolhido exerce o mandato até a próxima eleição, o que faz com que em alguns estados sejam eleitos agora dois senadores. Tem estado que elege a administração do county(município) e outros cargos, como chefe do ministério público ou chefe de polícia etc.
Para nós é incompreensível que, tendo tido mais votos, Al Gore tenha perdido para Bush e Hillary Clinton, para Trump. Mas outra diferença decisiva e fundamental é a possibilidade do voto antecipado, por correspondência ou em urnas especiais. Isso tem permitido abusos, como o dos republicanos que conseguiram parar na Suprema Corte a contagem de votos na Flórida quando o Al Gore ia ultrapassando o Bush. Ele perdeu a eleição com dignidade, não discutiu a decisão judicial, reconheceu a falsa derrota como verdadeira.
Agora, com a pandemia e o delírio do Trump, está acontecendo uma coisa inusitada: pela primeira vez o voto antecipadojá é em alguns lugares maior que a votação total da última eleição. Como a imensa maioria deve ser de democratas, será o feitiço virando contra o feiticeiro — a não ser que o Trump, como promete, recuse o resultado e ganhe na Suprema Corte
No Brasil desde a Colônia as Ordenações Manuelina e Filipina determinavam o voto secreto. No Império era assim, com as restrições do voto censitário. Vem a República para estabelecer a liberdade e os direitos civis e adota como modelo a Constituição americana. Rui Barbosa quis fazer uma democracia exemplar, mas logo se derrubou o seu princípio básico: o voto secreto.
Já em 1896 ele foi abolido, estabelecendo-se o voto “a descoberto”, com duas cédulas, uma para colocar na urna e outra para entregar… a quem de direito. Justificativa: já que o povo tinha assistido “bestificado” a proclamação da República, era monarquista e, se houvesse eleição livre, ela, a República, perdia.
A solução veio de Campos Salles, Ministro da Justiça de Deodoro. “Então vamos fazer leis para fraudar a eleição.” E assim foi feito até 1932, quando voltamos ao voto secreto — mas proporcional e uninominal, como Assis Brasil tinha pensado mais de 40 anos antes, desgraça que prevalece até nossos dias e que continua a impedir eleições verdadeiramente democráticas.
Mas o diabo é que com todo o caos o sistema eleitoral americano, lá funciona e aqui, “organizado”, é mais caótico do que lá e funciona muito mal.
Leis em demasia
Estamos em época de eleição — e que eleição! Resolvi dar uma olhada na legislação eleitoral e fiquei com tanto medo que desejei ficar sabendo só o que já sabia. É que são tantas leis, tantas resoluções, tantas modificações contraditórias. E tem um complicador adicional: a má redação, que dá margem a equívocos ao definir e confunde e dá trabalho a juízes, tribunais e advogados.
Quando era Presidente do Senado tentei muitas vezes chamar a atenção para isso. Lembrei as preocupações de Rui Barbosa, falando do contraste entre a clareza necessária e as dúvidas que levantam as leis mal redigidas. Isso sem falar, é claro, na erudição gramatical que colocou na polêmica com Carneiro Ribeiro sobre o projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, que ensejou as famosas réplicas e tréplicas.
Há dois graves problemas que o bom legislador deve ter sempre em mente: o excesso de leis e a lei mal redigida. Para tentar corrigí-las há tempos se fez uma lei complementar, a LC 95/1998. Pouco adiantou. Podemos dizer que há uma hierarquia de responsáveis pelo estado de nosso Direito, que afeta profundamente o nosso Estado de Direito.
Há um problema ético a exigir uma transformação da própria sociedade: as leis devem ter como único objetivo o bem comum. Mas sabemos que não é assim. Vivemos uma época em que o corporativismo é o maior autor de leis. Prevalece o interesse do mais forte, o que nos conduz em direção a uma plutocracia.
Há gestos mais pontuais. Contrariando a regra de que “cada lei tratará de um único objeto”, sempre aparece alguém pondo uma agulha no palheiro, para passar sem ser vista, mas que na verdade é jabuti em árvore. O melhor caminho para isso é se aproveitar de que o nosso principal legislador, o Poder Executivo, lança Medidas Provisórias a torto e a direito, como se houvesse urgência para tudo que acontece no País. Saem em perseguição à MP as emendas como as tartaruguinhas correm para o mar ao nascer. Quando os filhotes já não estão no texto enviado à Câmara. Pode ser por isso que se queira mesmo é confundir.
A lei deve ser precisa como um verbete escrito pelo Aurélio Buarque de Holanda: sem uma palavra a mais ou a menos. Com palavras a mais ou a menos tudo se transforma em batalha jurídica. O primeiro passo para se ter boas leis eleitorais — volto ao meu assunto — é uma profunda revisão que desbaste o excesso de folhas, deixando ser visto o tronco e frutificar em legisladores e administradores que saibam o que podem e devem fazer. Poucas páginas, poucas palavras — e que fiquem, sem mudar toda hora, de maneira que o eleitor e o candidato se conheçam, um tenha motivo e gosto de votar e o outro possa pedir para ser votado sem ficar devendo nada a ninguém, a não ser ao eleitor.
Os tempos mudam. Há 150 anos, uma das campanhas de Nabuco revolucionou o Recife, pondo a boca para falar pelos escravos e nela colocando seu coração. Pois bem; quando lhe disseram que tinha que pedir que votassem nele, ficou horrorizado: o eleitor tinha que votar em quem achasse melhor, não atender a pedidos.
Hoje o melhor que podemos fazer é procurar conhecer os candidatos por sua história. E fugir das fake news.
Uma eleição fora da curva
A Covid-19 é realmente uma doença que veio mexer com nossa vida e com a organização da sociedade. Perante ela, nada resistiu. O desconhecimento do vírus, num redemoinho, modificou a nossa forma de convivência e disseminou o medo, impactando dos sistemas de prestação da saúde e indo até ao culto a Deus. Basta vermos as regras básicas: manter o isolamento, afastar-se das pessoas, decretar a solidão pelo receio de estar junto.
Restringimos nossa fala, as máscaras dificultaram nossas conversas, e assim atingimos tantas coisas, dos negócios ao amor.
Mas quero deter-me na parte que atingiu as eleições. Esta eleição que vamos ter agora, em novembro, é inteiramente diferente de qualquer outra que tivemos. Não temos mais como fazer campanha da maneira como sempre fizemos, com o corpo a corpo, os comícios, as reuniões de apoiadores, as passeatas, as bagunças dos mais agitados, os trios elétricos.
Para consolidar essa nova maneira de campanha, trabalha-se com a ausência de dinheiro, pois criamos, com essa lei do financiamento eleitoral, uma hipocrisia oficial, sancionada pela Justiça Eleitoral. Como pensar que mais de 19 mil candidatos a prefeito, mais de 515 mil candidatos a vereador em 5.568 municípios brasileiros poderão fazer ao menos o que ficou permitido — cartazes, milhões de mensagens de vídeos, comunicados e gravações de apoio — com o pouco dinheiro que estará disponível? Já ouvi de candidato a vereador que o partido lhe daria mil reais, ou nada! Os 30% destinados para as mulheres, que se julgavam privilegiadas, também não vão dar para nada.
O que se deduz de tudo isso? É a avassaladora corrupção de gastos irregulares: quem mais tem para gastar são os candidatos ricos, que podem tirar dinheiro do próprio bolso, e a máquina pública (estadual, municipal e federal). Pensar que a Justiça Eleitoral vai ter fiscalização capaz de evitar os gastos ilegais é de uma ingenuidade ou um farisaísmo intencional.
O Brasil tem o melhor sistema de tomada de voto do mundo. Eu, ainda deputado, apresentei projeto criando o serviço de alistamento eleitoral, que antes era feito pelos candidatos e partidos; como presidente da República, propiciei os recursos e apoiei o Ministro Nery da Silveira, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a iniciar o processo de digitalização do voto. Recebi dele o primeiro título digital, no Maranhão.
Então temos o melhor sistema de votação e o pior de financiamento, pois este induz o enfraquecimento da democracia e estimula a corrupção.
O mundo caminhou um longo tempo para chegarmos à democracia que temos hoje no mundo. No passado, em Esparta havia “a maioria dos gritos”, segundo João Lisboa, em que os apuradores ficavam trancados numa sala, e o povo reunido na praça pública. Quem tinha mais palmas ou gritava mais era o vencedor. Ou então o velho e moderno sistema de compra de voto, que atingia a própria Igreja, às vezes perdidas em longas disputas, que resultaram nos conclaves — com chave — mas não resolveram o problema. O Pe. Vieira escrevia sobre a eleição do Papa Clemente X, cujo conclave durou 130 dias: “virão a acomodar algum decrépito, a que aqui chamam Papa em depósito, para que, no entretanto de sua pouca duração, com os acidentes do tempo, cada um possa melhorar de partido”.
Mas o que esperamos é o fim da Covid-19 e a reforma do financiamento atual, em que o povo paga e o resultado é a fraude financiada.
Francisco chama Francisco
O Papa Francisco publicou a encíclica Fratelli Tutti, em que invoca as lições de São Francisco de Assis para fazer uma profunda reflexão sobre o amor fraterno como único caminho para ultrapassarmos este momento crítico da Humanidade.
Esta terceira encíclica de Francisco é na verdade a segunda, pois a primeira, Lumen Fidei, foi na maior parte escrita por Bento XVI. A outra, Laudato Si’, dedicada ao meio ambiente, teve imensa repercussão, que se estendeu além do universo da Igreja, por sua atualidade, mas, sobretudo, pela clareza com que expôs os desafios como o aquecimento global e o consumo desenfreado, ensinando que o caminho é a solidariedade. Segue, nas duas últimas, o caminho da Mater et Magistra e da Pacem in terris, de São João XXIII, e da Populorum Progressio, de São Paulo VI.
Fratelli Tutti junta palavra a ação quando o Papa diz nela exprimir seu pensamento — centenas de vezes são retomadas frases que ele já escrevera —, mas também o do Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando a visita de São Francisco ao Sultão Malik-al-Kamil, no tempo das cruzadas.
A encíclica, que estava sendo redigida quando começou a pandemia, lembra que, com toda a comunicação em tempo real, o egoísmo mostrou nossa incapacidade de agir em conjunto, de pensar no bem comum: “Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.”
O documento é muito longo até para pensar em resumi-lo aqui, mas me dá grande conforto ao sustentar pontos que eu já defendi, inclusive em minhas intervenções na ONU há trinta anos. Assim, ele condena a guerra — diz que não há guerra justa — e especialmente a guerra nuclear. Fala muito da fome, intolerável, e de dívida externa, forma de opressão dos países pobres. Lembra a necessidade de haver uma ética nas relações internacionais. Clama por uma política que busque o bem comum. Enfatiza a necessidade de reformar a ONU, de maneira que seja realmente o grande mediador dos conflitos. Cita, como caminhos, a Europa e a integração latino-americana.
Consegui, com Alfonsín, acabar com a corrida nuclear Argentina–Brasil e afastar o continente do perigo atômico, além de tornar o Atlântico Sul zona de paz por resolução que apresentei e foi aprovada na ONU.Ali avisei em 1985: “o Brasil não pagará a dívida externa nem com a recessão, nem com o desemprego, nem com a fome”. Toda minha vida disse que o verdadeiro político visa, em primeiro lugar, ao bem comum. Preconizei a reforma da ONU. Comecei a união de nosso continente.
Francisco fala do grave problema que é, em nosso tempo, a falsa convivência de pessoas com os mesmos interesses nas redes sociais, criando o afastamento real das pessoas e facilitando a manipulação pelos populistas, que usam as pessoas para seus próprios fins. É preciso, diz, derrubar os muros — a palavra aparece 14 vezes — erguidos para afastar as pessoas.
Mas todo o tempo a Fratelli Tutti reflete o ensinamento cristão. O ponto central da carta é, assim, a parábola do Bom Samaritano. O Papa Francisco nos coloca o desafio: vamos passar ao lado dos que sofrem ou ajudá-los a se levantar no caminho?.
Trump quer destruir a democracia
Costumo dizer que não estamos vivendo em um mundo em transformação, mas num mundo transformado. Com o Covid-19 especula-se que vamos viver um novo normal. Ninguém pode dizer o que isto será. Mas antes que ele venha estou estupefato diante de algo que jamais pensei que pudesse ver.
A minha admiração pelos Estados Unidos vem do orgulho de que tenha saído do Continente Americano o país que transformou o mundo, tornando-se a maior nação da terra, líder e exemplo para todos os povos. Deles surgiu o sistema político que Fukuyama afirmou ter levado ao fim da História, com o domínio da democracia liberal e da economia de mercado.
Formou-se um sistema de governo capaz de garantir a ideia de que todos são iguais perante a lei e ninguém pode ser discriminado em razão de cor, raça ou religião. Cristalizaram-se as ideias de liberdade, direitos humanos, dignidade humana, governo do povo e para o povo. E esses direitos foram consagrados de tal maneira que passaram a ser um ideal universal.
Alexis de Tocqueville escreveu em 1835 um livro clássico, no qual ele profetizou que os Estados Unidos iriam “por algum desígnio secreto um dia controlar em suas mãos os destinos de metade do mundo”. E sempre afirmei que foi a grande sorte do mundo. Calcule se saísse da velha Europa ou de qualquer parte outro país que tivesse como bandeira ideal usar a força, a supremacia de raça — como aconteceu na Alemanha de Hitler — ou pregasse a religião como base das nações. Estamos presenciando um conflito de civilização no Oriente Médio. Mas foram os Estados Unidos que pregaram a liberdade, como forma de vida que venceu.
Pois não é que agora, com grande espanto, em pleno século XXI, ouvimos sair da boca de um Presidente dos Estados Unidos que ele pode não aceitar o resultado de uma eleição e não entregar o poder, como se seu país fosse qualquer republiqueta dos séculos passados, quando a alternância do poder pudesse ainda ir contra a decisão soberana do povo.
Isso eu considero a maior e mais impensável coisa a que pudéssemos assistir. A solidez do maior e mais forte país democrático do mundo comportar uma afirmação dessa natureza. Jefferson, Madison, Washington devem ter tremido em seus túmulos e abominar pela eternidade um Trump, negar-lhe a companhia dos homens que fizeram a Constituição de Filadélfia, o maior documento produzido pelo homem para regular suas relações e o viver pacífico em sociedade.
Trump, com seu comportamento e sua frase, acaba por fazer uma síntese do que buscou ao longo de seu governo. Foi caminhando para o isolamento americano, para a divisão da sociedade, para uma nova guerra fria — e até quente. Seu objetivo é inaceitável: destruir a democracia!
Todo poder à vacina
A vacina é o único socorro de esperança contra a ameaça da Covid. Já falei mais de uma vez do cálculo de Malthus sobre a expansão da Humanidade e da narrativa que Jared Diamond faz da ascensão e queda das civilizações: nos cenários, guerras e germes. A história das pragas é uma desgraça: desde as sete pragas do Egito, que são dez, o que se vê são as populações dizimadas. Dizimadas não: o decimatio castigava um em cada dez soldados, mas as pestes sempre foram mais radicais. A praga de Justiniano matou mais da metade da Humanidade; a peste negra, um quarto.
Para uma doença virar epidemia ou pandemia, ela precisa ser contagiosa e viajar. Assim nossas cidades marítimas não escaparam da reviravolta da natureza — pois é isso o que acontece quando mexemos com o meio ambiente, mesmo na “inocente” domesticação de rebanhos. Varíola, gripe, malária, dengue, febre amarela, SARS passaram por aqui. Houve a gripe suína, que era em parte aviária, mas tinha até fragmentos dos vírus da gripe espanhola; esta, com bagagem de 100 milhões de mortos, matou Rodrigues Alves, que acabara com a febre amarela; doença que o africano Aedes aegypti trouxe em 1685/6 para Recife e Salvador; mosquito que nós erradicamos duas vezes, mas continua matando com a dengue. A colheita das pragas é grande, e temos algumas vitórias e muitas derrotas. A maior, o impaludismo, nos bate há 10 mil anos.
O Brasil tinha uma história de vacinação. A primeira foi em 1804. Em 1811 tivemos mesmo uma Junta Vacínica. Com o uso direto do vírus ativo, acontecia de ser pior que o soneto. Um século depois, Rodrigues Alves chamou Osvaldo Cruz, jovem médico a quem não conhecia, para acabar com a febre amarela e a varíola. A imprensa, um grupo de médicos negacionistas e alguns conspiradores militares ficaram contra ele. Consideravam absurdo que os mata-mosquitos pudessem entrar nas casas para acabar com o Aedes.
A Lei 1261/1904 tornou obrigatória a vacina contra a varíola. A conspiração positivista, que faria chefe da ditadura a Lauro Sodré, partiu para a ação. Revoltou-se o Rio de Janeiro. O dia 14 de novembro foi de conflito armado. O governo dominou, com dificuldade, a situação. Na discussão do pedido de estado de sítio, Rui Barbosa, nosso maior intelectual, numa posição incompreensível, ataca: “Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura… a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus… condutor da moléstia, ou da morte.” E apoia o governo, elogia o desbaratamento do golpe!!!
No Maranhão a história é outra. Cláudio Amaral Júnior, grande nome da vacinação no País, conduziu a campanha que em oito meses erradicou a varíola. Fiz o possível para ajudá-lo: acionei a estrutura das escolas comunitárias “João de Barro”, fazíamos os “Comícios da Saúde”, 15 dias de campanha preparatória e promovi a “vacinação num só dia”. Na Praça João Lisboa vacinamos 40 mil pessoas de uma levada, trabalhando até meia-noite. Essa experiência foi levada por ele e pela OMS para outros países.
Contra a Covid o caminho é claro: precisamos da vacinação em massa, alcançando indiscriminadamente dos mais ricos aos mais pobres. O Brasil tem instituições que são capazes de produzir rapidamente as vacinas que tenham sucesso. Aqui no Maranhão temos que nos preparar para aplicar as vacinas. Levantar voluntariado, treinar e organizar equipes, fazer um trabalho coordenado com os municípios, chegar aos povoados mais remotos.