José Sarney
Nostradamus e o Corona
Acho que todos nós a quem Deus deu a graça da vida já passamos muitas vezes pelo anúncio de que o mundo ia acabar. Algumas vezes marcavam data, outras vezes invocavam as profecias de Nostradamus ou de outros profetas menos votados. Nostradamus desde 1555, quando escreveu seu livro Profecias, assusta a humanidade.
Dizem que previu a Revolução Francesa, Hitler, a tragédia das Torres Gêmeas de Nova Iorque e, agora para 2020, como todos os anos, furações, tempestades, enchentes, a deposição de Kim Jong Il (Deus queira que se realize), um concurso de cabelos congelados no Canadá, que está fazendo furor, mas foi incapaz de profetizar a mais fácil, que seria o terremoto de Lisboa de l755, que ocorreria 200 anos depois de publicação do seu livro e que destruiu a bela capital portuguesa, mas possibilitou a ascensão do Marquês de Pombal.
Estou como no mosteiro de um ermitão em minha casa de Brasília, minha mulher feliz porque eu não saio há 20 dias. A TV é só catástrofe e o medo é o sentimento que circula em todos os corações. Principalmente no meu, a 20 dias de completar 90 anos de idade.
Já passei também por outro anúncio do fim do mundo, na minha querida cidade de São Bento, este com data marcada, as casas com cruzes riscadas em carvão atrás das portas para espantar o diabo. Felizmente a data passou e ainda assisti a muitos anos passarem. Impossível chegar a 3.979, ano final das profecias de Nostradamus.
Mas, bom humor à parte, estou profundamente apreensivo. Porque do mundo acabar sempre temos notícia, mas a humanidade acabar é a primeira vez que presencio. E este momento não é profecia, tem lógica, porque muitos livros já o aventaram com a ameaça das doenças desconhecidas, que podem chegar e cortar a história do homem na face da Terra.
Quem não acredita em Deus pode aceitar isso. Nós, cristãos, não, porque então seria, como dizia S. Paulo, “vazia a nossa fé”.
Mas acredito que o mundo será diferente depois da crise do Coronavírus. O Homem terá que pensar em modificar esse tipo de sociedade consumista e de sublimação dos prazeres, para pensar num mundo mais fraterno, mais humano e com maior justiça social. Foi essa a mensagem do Papa, na bênção Urbi et Orbi, na semana passada. Quando o vi atravessando a Praça de São Pedro, só e frágil debaixo de chuva, senti que a solidão a que estamos forçados, afastados inclusive das missas e da comunhão, é uma travessia para um mundo com o mandamento que Jesus nos deu: o do amor. Como dizia São Paulo: “O que fica agora é fé, esperança, amor — estas três coisas. Mas destas a maior é o amor.” (1Co, 13, 13)
A sociedade de comunicação, virtual e destruidora de valores morais, dará lugar a uma utopia realizada de caridade, justiça e igualdade.
Hora de união
Ler demais nos leva a encontrar em turnos otimismo ou pessimismo. Nesta crise do Coronavírus que enfrentamos agora, penso no que li sobre o futuro da Humanidade. Escrevi semana passada sobre isso. No livro So Human An Animal(Um Animal Tão Humano), René Dubos — microbiologista e humanista franco-americano que desenvolveu os primeiros antibióticos naturais e ganhou o famoso Prêmio Pulitzer de 1969 — faz uma reflexão sobre a nossa condição animal e, dentro da teoria da evolução, uma advertência de que sem dúvida haverá uma resposta biológica para o nosso destino como espécie.
Estamos agredindo a ecologia e destruindo uma sociedade justa e humana. Assim “de uma forma previsível e em um momento desconhecido, a natureza vai nos atingir de volta”. Isto nos dá um calafrio. De tempos em tempos a natureza nos tem dado sustos.
Os infectologistas dizem que a nossa mexida na ecologia e a civilização urbana nos conduzem a riscos de saúde ameaçadores.
O Coronavírus SARS-CoV-2 (síndrome respiratória aguda grave 2) tem um tempo diferente. Enquanto no passado os vírus levavam anos para chegar ao mundo todo, viajando em caravelas e com poucos contatos, hoje eles viajam a jato, e a circulação de milhões de pessoas, num mundo tornado pequeno pela globalização dos transportes, faz com que rapidamente sejam disseminados.
Estamos parando a vida social que construímos, e a maior parte da população mundial urbanizada, cercada pelo medo, altera a própria convivência, sem ver amigos e parentes.
Que importam as bombas nucleares, a guerra química, o crime organizado, as drogas, a disputa pela hegemonia de poder, em qualquer nível, se estamos ameaçados de desaparecer?
São reflexões que nos levam a despertar o sentimento de solidariedade, de caridade, de grandeza, e exigem dos governantes pensar mais alto.
Partidos, líderes, magnatas, sábios, celebridades e dignitários de todos os poderes comungam dos mesmos temores e sofrem as mesmas angústias.
É hora de pensar que somos irmãos, que tivemos a sorte de receber a graça da vida e não podemos destruí-la em inútil luta por poder ou dinheiro, entre raças ou religiões.
As nações devem seguir outro rumo. Em vez da lei do mais forte, de mais armas, de mais violência, devemos tornar a Humanidade mais justa, os pobres menos pobres e seguir os ensinamentos cristãos de amar ao próximo e perdoar.
Nesta hora difícil de uma pandemia que não sabemos quando e como vai acabar, estejamos todos solidários, pondo de lado qualquer divergência para superar, com a graça de Deus, essa desgraça.
Triste interlúdio: o Coronavírus
Vou hoje interromper a minha série de reminiscências sobre o meu governo para falar sobre o pânico que invade o mundo todo: o Coronavírus, que fez o mundo entrar em choque.
Mas vou também no rumo das reminiscências. Em 1994 eu estava em Xangai numa reunião do InterAction Council, uma Fundação de ex-Chefes de Estado e de Governo do mundo, de que faço parte — naquele tempo tendo a companhia na representação da América Latina de meus saudosos amigos De La Madrid (México) e Alfonsín (Argentina) —, reunidos para discutir os problemas da humanidade. Entre os convidados, como experts globais, estavam McNamara, Kissinger, Lee Kuan Yew, o fundador de Singapura, grande político e intelectual. O tema era os problemas que ameaçam o futuro da Humanidade.
O assunto fascinante já vinha de reuniões anteriores. A lista era longa: armas e vetores nucleares, guerras globais, crime organizado, drogas e muitos e muitos outros.
Presidia a reunião Takeo Fukuda, ex-Primeiro Ministro do Japão, grande e famoso estadista. Era copresidente Helmut Schmidt, da Alemanha, o maior orador que conheci. Ele colocou no debate as doenças desconhecidas e as migrações massivas. Dizia ele que a espécie Homo Sapiens Sapiens era fruto de um acaso da evolução, na mutação genética, e que nada nos garantia que no futuro não tivéssemos mutações que implicassem em doenças desconhecidas que ameaçassem a nossa espécie. Quanto às migrações massivas, estas seriam causadas pela quebra do balanço alimentar e hídrico de populações, que, desesperadas, se deslocariam em busca de sobrevivência. Todos nós ficamos inquietos com a pauta das discussões, uma vez que julgávamos vir o perigo dos conflitos globais, a China potência naval, a disputa pela hegemonia mundial e as armas de destruição em massa.
Com o Coronavírus atual lembro a genialidade de Helmuth Schmidt, que nos dizia que, nessa busca do poder e do dinheiro com que vivemos, nos esquecemos de que nos milhões de anos que virão poderemos acabar com nossa espécie pela própria evolução, como desapareceram tantas ao longo dos milhões de anos que percorremos até chegarmos ao que somos hoje: uma espécie nova, de apenas cem mil anos!
O Professor Hermann G. Schatzmayr, convidado por mim, quando Presidente do Senado, para participar do livro Profecias para o Século XXI, que editei — uma obra notável, em que reuni os melhores cérebros do Brasil para fazerem suas previsões —, disse que era necessária uma ação coordenada mundial para vigilância e pesquisa, porque todo dia surge uma doença nova.
No passado existiram muitas doenças novas que foram letais. Mas o mundo era pequeno, e hoje vírus e bactérias viajam de avião e se transportam para toda parte.
Talvez seja hora de todos pensarmos numa Terra mais solidária, que se preocupe com a vida que a graça de Deus nos possibilitou e não com a ambição e sublimação dos prazeres. Enfim, um mundo melhor que não nos conduza ao Juízo Final.
O ano vai começar
O Brasil tem calendários diferentes dos resto do mundo, a começar pelas estações do ano.
Aqui só temos inverno e verão, inverno quando chove, verão, quando as chuvas não aparecem, e se surgem são atribuídas às frutas: do caju, da manga e assim por diante.
Estas são sempre seguidas de muito trovão e raio e passam rápido.
Depois, as nossas divisões do ano são marcadas pelas festas, santas ou pagãs. O Carnaval marca os dois primeiros meses. Depois vem a Quaresma, que dura quarenta dias, até o Domingo de Ramos. A Semana Santa culmina com a celebração da Eucaristia na Quinta-Feira, do Sacrifício na Sexta-Feira, a Aleluia e a Páscoa; a Paixão de Cristo sempre encenada e movimentando a população, como as procissões do Bom Jesus da Cana Verde, do Encontro e, para misturar tudo, a malhação do Judas — um Carnaval fora de época, com os bailes das aleluias, uma “páscoa” regada às toneladas de chocolate, referência especial de Gramado, e que os baianos não deixam passar em branco. Depois vem o São João com as quadrilhas, os forrós e as danças de São Gonçalo das Moças.
Se tem Copa do Mundo aí é que a coisa pega fogo, porque o país para de vez e é Carnaval todo dia, com ruas enfeitadas, bandeirinhas e bandeirolas, cerveja em toda porta de casa com amigos e aderentes, todos na torcida e improvisando botequins nas calçadas e em todos os andares dos edifícios.
Vem o 7 de setembro e o patriotismo por uns dias toma conta, sobretudo da meninada, e vai ao máximo se tem Esquadrilha da Fumaça.
Em anos de eleição este mês é o auge de trabalho de moças e moços, que, de bandeiras nas mãos, espalhados por todos os congestionamentos de trânsito, gritam o nome de candidatos de que nunca ouviram falar, nem sabem de quem se trata, tudo por cinquenta reais por tarde!
Chega outubro com as grandes concentrações religiosas do Círio de Nazaré, de Aparecida, do Juazeiro do Padre Cicero. Quando começa novembro começamos a ouvir longe os primeiros sinais dos sinos do Natal.
Afinal, depois de falarmos do ano inteiro, o essencial é dizer que o ano realmente começa depois do Carnaval. Essa é a festa das festas, aquela de que até hoje se discute quando começou. Os mais fanáticos dizem que vem das famosas bacanais romanas, importadas da Grécia, em que se homenageava o deus Baco, regadas a vinhos e orgias, e que de tal modo se excederam que o Senado Romano as suspendeu no ano 186 antes de Cristo. Outros o ligam às Saturnálias, também livres e pândegas, festas do deus Saturno, que também eram célebres na antiguidade.
Não vamos dizer que o nosso Carnaval seja tanto …assim… como aquelas festas do passado, porque a nossa só faz com que as mulheres de todas as idades mostrem seu corpo e as novas, queimadas de sol, aproveitem para também mostrar os seios, guardando o essencial, tudo para se preparar para as abstinências da Quaresma…
Outros povos comemoram também outros calendários, como o chinês, o judaico, o ortodoxo Juliano e um do meu avô, que dizia que ano novo era o do seu aniversário, nada do começado em janeiro.
É assim que o ano passa, e vai começar agora, neste ano que tem Carnaval, São João, Copa e eleição. Haja paciência para tanta monotonia!
Ai se eu te pego!
O inverno, como aqui chamamos o tempo das chuvas, sempre fez parte da cultura do Maranhão – e o Amapá – como uma época em que muda o ânimo das pessoas, dos bichos e da terra. As primeiras chuvas trazem nos pingos d´água um gosto da alegria. Reclama-se dos transtornos que elas causam, mas são recebidas com satisfação.
Mais do que na capital, elas representam uma cultura do interior ligada à fertilidade, à dimensão da safra, à chegada das primeiras espigas, às festas do milho verde, das canjicas, das pamonhas e dos bolos de milho.
Lembro-me como ficaram indeléveis na memória da minha infância em São Bento as expressões de todos “os campos estão enchendo”, perigo das cobras fugindo das águas e invadindo as casas; os pássaros de arribação que chegavam, como os jaçanãs, as marrecas, os mergulhões, os socós e os peixes: jejus, acarás, bagrinhos.
Lembro-me bem quando aqueles véus opacos de rajadas de chuva começavam a cair no campo aberto e ficando verde, com os brotos que nasciam da canarana, do arroz brabo, do andrequicé. O coro dos sapos, na sua linguagem das contas, os pequenos gritando “dois mais dois”, os maiores respondendo “quatro” e os outros “quatro mais quatro”, “oito” e então a saparia geral a gritar ” oito mais oito “, e todos em zoada geral: “dezoito, dezoito, dezoito……”. Então, entrava o sapo velho com todas as forças de sua garganta de sapo, proclamava: “Tá errado, tá errado…” E nós meninos, brincando de sapo na cantoria que eles entoavam. As muriçocas chegando, os besouros, o ritual da queima de estrume de boi para afastá-los. Tudo isso eu falo não com um sentimento de saudade, mas de nostalgia. Nada mais definitivo em todos nós, do que o tempo de menino e menino da Baixada tem o inverno, o campo, os bichos e os capins como lembranças indeléveis. Quando o inverno era dessas chuvas de pingo grosso que doía na costa quando tomávamos os eternos “banhos de chuva”, dizíamos que era “inverno tradicional”, forte e de todos os dias e aqueles de tempo cinzento, de chuvinha rala, essas que duravam o dia todo, era a voz do meu avô que dizia: “Este é o inverno criador, bom para o gado, pois não alaga tudo de uma vez só”.
O homem mexeu com tudo e fez cidades nas beiras do rio e nas grandes, com asfalto e calçamento, não deu mais condições da água infiltrar-se para formar o lençol freático, e então vêm as enchentes que param tudo, invadem as pobres residências e se vê repetir a cena diária das televisões, das ruas serem rios e dos desastres das barreiras com dramas e tragédias familiares.
Há o velho provérbio nosso de “abril chuvas mil, maio trova e raio”.
Todos os dias quando falo com São Luís é minha primeira pergunta: já chovendo muito? E a resposta “às vezes sim, às vezes não”, com as justificativas de que tudo está mudando.
E o tráfego da cidade cada vez mais caótico. Já sem água é difícil, “que dirá com as ruas alagadas e os buracos que a Prefeitura não tapa”.
Pergunto por Roseana e me dizem que está no interior no governo itinerante. Respondo: “Com essa chuva toda”. Mas ela me liga e diz: “Temos de inaugurar os hospitais, quase todos prontos e meu governo tem de funcionar até debaixo d´água”.
Ah! Inverno da minha infância: “Ai se eu te pego!”.
Esquecer e lembrar
Os psicanalistas apresentam como certeza que a gente não esquece as coisas pelas quais guarda interesse e esquece as que não nos interessam. A memória se encarrega dessa diabólica lei seletiva.
Isso para a política é trágico, porque o bem que se faz é logo esquecido, e os inimigos ficam inventando sempre o mal que não se fez. O Senador Vitorino Freire, que marcou sua chefia política com mão de ferro, dizia adotar em relação aos adversários a seguinte conduta: “Quando meus inimigos não têm rabo, eu ponho rabo neles.”
Estas considerações me ocorreram com a leitura de uma pesquisa feita na Inglaterra sobre a notável figura de Winston Churchill, considerado por seus biógrafos como o maior estadista dos tempos modernos. Churchill salvou a humanidade da tragédia da Segunda Guerra Mundial, resistindo ao nazismo. Pois essa pesquisa procurou saber o que o povo pensava sobre seu grande líder e herói.
Os historiadores modernos consideram que a Segunda Guerra Mundial foi vencida pelo sangue dos russos (que perderam mais de vinte milhões de vidas!) e pelo dinheiro dos americanos, que contribuíram com armas, aviões, tanques e todo equipamento bélico necessário, esquecendo o grande vencedor, Churchill.
Pois bem, qual a surpresa quanto ao resultado da pesquisa? Ela revela que a maioria do povo, sobretudo os mais jovens, esqueceu o grande líder. Ao inquirirem sobre quem era Churchill, os pesquisadores foram surpreendidos com a resposta da maioria de que “era o cachorro que figurava no anúncio do charuto Churchill”, massificado pela mídia — a publicidade do cigar que homenageava o estadista misturara dois símbolos seus: o charuto, de que não se separava, e a característica do buldogue de não largar sua presa.
Quando li isto, resolvi que já era tempo de lembrar um pouco aos mais jovens, que não conhecem a história do Maranhão, qual foi a minha contribuição para retirar o Estado do atraso e, ao mesmo tempo, planejar uma infraestrutura capaz de trazer desenvolvimento para ele. Se aquilo acontecia com o maior estadista inglês, o que não aconteceria com este modesto maranhense de Pinheiro, que foi Governador e Presidente, tão atacado, injustiçado, combatido e vilipendiado político, que dedicou toda sua vida a trabalhar pelo Maranhão?
Por isso, vou utilizar esta coluna dedicada aos leitores para dizer das coisas de que hoje ninguém lembra, nem os jovens podem lembrar, pois não viveram naquele tempo, não viram e não sabem o que era o Maranhão em 1966, quando assumi o Governo do Estado.
Assim, na próxima semana vou tratar da organização administrativa e poderei afirmar, com orgulho, que nada que existe no Maranhão atual deixou de passar pela contribuição de minhas mãos.
ERRAMOS: Também quero fazer uma reparação com o Deputado Hildo Rocha, um dos melhores parlamentares de nossa Bancada, pela omissão injustificável que cometi em meu artigo sobre a Base de Alcântara, quando deixei de citá-lo, pois foi ele quem, na Câmara dos Deputados, foi o Relator do Acordo e a peça chave para esse ser aprovado.
Saci e carcará
A Aeronáutica está na ordem do dia. Das Forças Armadas, é a mais nova, a mais carente de tradição e mais desejosa de afirmação na conjugação dos mecanismos da guerra moderna. Na única vez que estive com Osvaldo Aranha, velho e legendário homem público brasileiro, cabeleira branca, gestos largos, ele falou-me sobre o suicídio de Getúlio Vargas e ligou a República do Galeão à modernidade da FAB e sua busca de afirmação.
As Forças Armadas pagam um preço alto pelos rescaldos da Revolução de 64, que já é passado histórico, e os que a fizeram morreram ou saíram da visibilidade nacional. Remanesceu um certo e difuso ressentimento institucional, com prejuízo à segurança nacional e com o descuido de nossa defesa. Os recursos destinados ao setor estão na escala da pobreza absoluta. Forças Armadas democráticas não prescindem da necessidade de serem fortes, sem militarismo, que é a agregação do poder político ao poder militar. O poder civil é a síntese de todos os poderes e tem que estar apoiado num dispositivo de segurança de forte respeito estratégico militar, em níveis interno e externo.
Vamos à Aeronáutica. Ela foi pioneira na tentativa de dominar tecnologia aeroespacial. Desde 1950, existe o ITA, Instituto Tecnológico da Aeronáutica, referência na formação de recursos humanos. Depois veio o Centro Técnico Aeroespacial, com os seus Institutos de Aeronáutica e Espaço e de Estudos Avançados, Fomento e Coordenação Industrial. Desse conjunto saiu o projeto da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), para lançar com tecnologia nacional foguetes e satélites. Foi uma luta árdua. Desenvolveram-se os foguetes Sonda 1, 2, 3 e 4. Lutou-se contra restrições internacionais, embargos, proibições. O Inpe, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, com os mesmos embaraços, ficou com a responsabilidade dos satélites, e o CTA, os vetores.
O projeto agoniza. Falta dinheiro, falta uma política de pessoal. Não seguramos os nossos cientistas e não temos condições de recrutar outros. O engenheiro Jaime Poscov, nosso Von Braun, dedicou toda a vida a esse projeto e foi aposentado com vencimentos de R$ 920…
Perdemos o Saci 1 e o 2. Mas lembremos que os americanos tiveram centenas de fracassos e não desertaram. Recentemente, ocorreram as perdas das sondas a Marte, programa de milhões de dólares. O foguete francês Ariadne 2, de US$ 8 bilhões, também não obteve êxito.
O Brasil tem a base de Alcântara que, pela localização, consome a metade de propelente e carrega o dobro de carga útil que vai ao espaço. Não podemos jogar fora esse trunfo. Vamos prestigiar a FAB e o Programa Espacial Brasileiro, e não maldizer pequenos insucessos, desprezando o idealismo e a garra da Força Aérea Brasileira, que tem prestado grandes serviços ao país. A MECB não pode desaparecer e deve ter ajuda para continuar.
Não gosto, no programa espacial, do nome do satélite: Saci, personagem lendário e simpático, mas não destinado a voar. Temos de trocar para outro, talvez Gavião; melhor, Carcará, bicho danado que, no dizer de João do Vale, “avoa que nem avião”.
As chuvas
As notícias cansaram-se nas festas e louvações do fim do ano. Estamos na fase em que os jornalistas chegam às redações, puxam os cabelos e gritam: “Não acontece nada!”. O inusitado fica por conta dos aguaceiros que desabaram sobre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. O assunto é a chuva.
As águas sempre foram um mistério para os homens. No princípio, só elas existiam. O Gênesis guarda, na sua beleza poética, a dimensão que tiveram no processo da criação: “O espírito de Deus boiava sobre as águas”, com “monstros marinhos e todos os seres viventes, os quais as águas produziram com abundância”. A ciência confirma que a vida começou na água. Eram extraordinários o medo e o fascínio que elas exerceram na história do homem. E mais misteriosas eram as águas quando vindas do céu. Noé escapou da maior delas. Eram manifestações de deuses e demônios. O tempo começou a ser contado pela periodicidade das chuvas, suas ligações com a Lua, os prenúncios que davam ao mundo.
O que as chuvas não inspiraram na mitologia, na literatura, nas artes? Os vedas, no relato dos deuses hindus, falam dos poderes de Indra, deus da chuva, filho de Aditi, irmão de Agni, deus do fogo. Indra faz “a terra tremer, esmaga cidades, fortalezas; então, as águas presas são soltas e descem as torrentes à terra, e os rios transbordam rolando e espumando…”.
Foi esse deus que desabou sobre Minas e obrigou o governador do Estado a mudar a sede de seu governo para Pouso Alegre e fez o presidente esquecer as bolsas, o desemprego e as reformas para caminhar na lama, alípede, e ouvir relatos dramáticos dos estragos provocados pela fúria das águas. Foi a Itajubá. E as chuvas desencadearam uma crise política entre governo estadual e federal, com efeitos vocabulários, desarquivada a palavra “anfótero”, até então esquecida nos dicionários. O mesmo fez Benedito Valadares quando, há 40 anos, resgatou a palavra “boquirroto”, que, renascida, atualizou-se e está jovem.
Heredia, poeta hispano-americano que nasceu em Santiago de Cuba, tem um poema em que exclama: “Que rumor! É a chuva? / Desatada sai a corrente e escurece o mundo / céu, nuvens e colinas, caro bosque / onde estás?”. No Maranhão, Almeida Braga, parnasiano dos bons, diz que as chuvas são “provindas dos ares, dos astros, caídas em globos argentes de um puro brilhar”.
Mas nem só de desgraças e versos vivem as chuvas. No Nordeste, se chove o mundo muda. Muda a natureza, mudam as pessoas. Os bichos e gentes gritam de alegria e ninguém reclama das águas. Pode chover à vontade, fazer estragos e provocar desabrigos. Todos querem se molhar. E o nordestino diz feliz: “Está morrendo sapo afogado”. Os lagos e açudes enchendo, arroz brabo, andrequicé, canarana. Aves de arribação chegando, patos, marrecos, jaçanãs batendo asas para secar as penas. Tudo é festa.
Águas do Nordeste! Jamais antóferas, nem didonianas. Jamais espadongam. E nossos olhos para elas nunca serão de esoforia.
Louvemos a Mãe de Deus
Numa mulher não se bate nem com uma flor” — esse era o mantra da minha geração. A mulher era o objeto maior da criação. Ninguém tem vida senão através de uma mulher, a criatura mais adorável do mundo, nossa mãe.
O Novo Testamento tem uma protagonista, ao lado de Jesus Cristo, que é Maria. Nossa Senhora é a personagem essencial no nascimento e na morte de seu Filho. Ao receber o anúncio do Anjo Gabriel, Maria responde com o mais belo dos hinos:
“A minha alma exalta o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador! Pois Ele contemplou sua serva humilde. Pois desde agora e para sempre me considerarão bem-aventurada.” (Lc 1,47-48)
A imagem mais desoladora que já houve é a da Mãe com Deus exangue em seus braços. Assim, resolvi que a minha mensagem de Natal fosse uma exaltação Mariana. Não podemos entender que o homem se volte, numa sequência iníqua, a cometer, de uma maneira brutal e permanente, violência contra as mulheres.
Que o Natal, cuja figura principal é o Menino Jesus nascido de Maria, ícone da família, não permita que aquela que ele criou para ser a companheira do homem, para que ele não vivesse a solidão do mundo, se transforme em sua vítima, ensanguentada e morta pela maldade do homem.
Nada mais revoltante e ao mesmo tempo humilhante para os homens que a enxurrada de notícias sobre agressões às mulheres, vítimas do ciúme, da dependência familiar, do desajuste, do parceiro violento, do alcoolismo ou até mesmo de formas doentias de desejo sexual, como masoquismo e sadismo — o encontro de satisfação com a dor dos outros, perversão dos sentimentos cuja existência está documentada desde a antiguidade.
O Natal é a festa da família, da solidariedade, do amor, da exaltação da figura de Maria, escolhida por Deus para ser o instrumento de Sua presença na Terra, para que nós tenhamos a certeza de não estarmos sós, mas termos a presença de Jesus Cristo ao nosso lado, para ouvir nossas preces, consolar nossos momentos de angústia e dar-nos instantes de alegria.
O Natal nos traz um momento de felicidade, instante de todos os homens, os anjos cantando a mensagem de Deus: “Paz na terra aos homens de boa vontade.” (Lc 2,14)
Que neste Natal juntemos as nossas preces pedindo a Deus pelas mulheres vítimas de violência, para purificar o coração dos homens do pecado da violência e ver na figura do Deus Menino, do nosso Cristinho, um símbolo de que nas mulheres, nossas mães, mães de todos, Mãe de Deus, não se deve bater, como se dizia na minha infância, “nem com uma flor”.
Eu, os negros e a Fundação Palmares
O Brasil nasceu quase junto com sua maior injustiça: a escravidão negra. Por ela, as pessoas eram coisas. No Maranhão ela assumiu ares oficiais: a Companhia de Comércio do Maranhão e Grão-Pará tinha monopólio estatal da venda de escravos.
Na época da Independência José Bonifácio pretendia combinar o fim da escravidão com a reforma agrária. E dizia que o Brasil precisava da “expiação de nossos crimes e pecados velhos“.
Dividi com meu amigo Afonso Arinos, autor da lei que leva o seu nome, de considerar crime a discriminação racial, a defesa da causa que herdamos deste nosso passado, de redenção dos mais pobres, de seus direitos individuais e sociais, terra, como queria o Patriarca, a educação, como pretendia Nabuco.
Como parlamentar e nos cargos executivos que exerci, governador e presidente, sempre saí na frente em sua defesa. Nas Nações Unidas, em 1961, como delegado do Brasil na Comissão de Política Especial, fiz um discurso em nome do Brasil, talvez o primeiro, condenando o apartheid, o regime da África do Sul que segregava negros e brancos.
Presidente da República, cortei relações com o país e proibi o Brasil de participar dos eventos esportivos ali realizados.
Em 1988, era o centenário da Lei Áurea. Não quis fazer nenhuma solenidade de comemoração porque sempre tinha, ao longo dos anos, afirmado ser a escravidão a maior mancha de nossa História.
A condenação da discriminação racial no Brasil tinha sido politizada e segregada em retórica, sem nenhuma medida concreta para objetivamente extinguir essa vergonha de serem os pretos no Brasil os mais pobres dos mais pobres, as maiores vítimas dos assassinatos, os últimos a ter emprego, os que têm menor acesso à educação.
Estudioso da História, eu sabia que os Estados Unidos, onde o problema era mais agudo do que no Brasil, só tinham avançado em sua solução quando criaram instrumentos fortes de integração, de maneira a que os negros pudessem participar das decisões.
A Fundação Palmares
Assim, aproveitei a data dos cem anos da abolição para fazer o primeiro ato efetivo a favor dos afrodescendentes: criei a Fundação Palmares e procurei dar instrumentos para que ela cumprisse seus objetivos.
Na década seguinte, fui pioneiro ao propor uma lei de cotas para os negros nas faculdades, no emprego e no financiamento público, que só há alguns anos começaram a ser implementadas. Houve uma nova maneira de encarar o problema da discriminação racial, e começamos a colher o resultado das cotas.
Esta minha visão está expressa no fato de que criei uma das grandes personagens negras de nossa literatura, Saraminda, ao lado de Tereza Batista, do Jorge Amado.
Portanto, é com revolta, com profunda indignação que vejo se tentar deturpar os objetivos da Fundação Palmares, ignorando suas origens e seus objetivos. Em vez de fortificá-la, usá-la para estigmatizar os negros, falando mesmo, numa linguagem chula, de mandá-los para o Congo.
A maior parte dos que formaram o Brasil foram africanos. Sua contribuição está no mundo material e no nosso universo imaginário. O forte sangue negro permanece no nosso DNA, na nossa cultura, na nossa determinação. Mas nem todos partilhamos de seu sofrimento, que não se acaba, como se constata na agressão revoltante que presenciamos.