José Sarney
40 anos de Democracia
No próximo ano, no dia 15 de março, comemoraremos 40 anos de democracia. Saímos de um regime autoritário para a implantação do Estado de Direito, governo das leis, e não dos homens.
A transição democrática sempre foi um momento de grandes desafios e perplexidade. Muitas vezes transforma ídolos em políticos destruídos; desconhecidos, em heróis. Exemplo disso foi a Espanha, na travessia de Franco para a monarquia, quando surgiu a figura de Adolfo Suárez, que fez a transição, entrando na História.
O brasilianista Ronald M. Schneider, que escreveu sobre as transições democráticas na América do Sul, disse que a mais bem sucedida foi a brasileira, que não deixou nenhuma hipoteca militar e implantou uma democracia plena, com os ventos da liberdade governando o País, em absoluta normalidade. Aqui não houve revanche, como lá, e todos foram incorporados aos novos tempos, com a anistia para os dois lados. No Chile tiveram que transformar Pinochet e outros generais em senadores e criar o Fundo do Cobre, administrado pelas Forças Armadas. Na Argentina, Alfonsín teve que enfrentar cinco revoltas; o mesmo ou algum movimento semelhante ocorreu no Peru, no Uruguai, na Colômbia, em Portugal, na Grécia e em outros.
Tivemos aqui uma tragédia com a morte do Tancredo e a agonia que antecipou seu descanso.
Quando Aluízio Alves me avisou que Tancredo, nosso grande e inigualável estadista, estava internado, eu me desloquei para o Hospital de Base, e lá estavam Ulysses, Aécio, Tancredo Augusto e toda a família. Ulysses, isolado numa pequena sala com os modestos móveis da NOVACAP, sem ninguém. Ao entrar, ele me disse: “Sarney, veja o que o destino preparou para nós, Tancredo terá que ser operado hoje. Teremos grandes dificuldades e perigos e não podemos cometer nenhum erro. Este é o momento mais importante da minha luta.” Eu lhe respondi: “Ulysses, você foi o grande político e herói que nos conduziu até aqui. Comande, e vamos atravessar esta dificuldade. O Dr. Renault de Matos me afirmou em uma conversa que tudo se resolverá.” Pelo tempo, não sei se estou sendo fiel às palavras do nosso diálogo. Mas o sentido é o mesmo, com absoluta fidelidade. Já repeti muitas vezes os fatos, o que, de novo, estou fazendo.
Fizeram tudo para intrigar-me com Ulysses, com quem tinha uma relação que vinha de nossos tempos na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, onde exercíamos nossos mandatos. Mas não conseguiram e se tivemos algumas divergências nenhuma nos levou ao rompimento. Eu tinha noção de seu lugar na resistência ao regime militar, do respeito com que a Nação o via e da chefia que exercia sobre a classe política e do meu papel na articulação da vitória no Colégio Eleitoral e com o MDB.
Em seguida, Ulysses me disse: “É você que tem que assumir amanhã. É o que manda a Constituição.” Eu repliquei: “Jamais, Ulysses. Quero assumir com o Tancredo. Não tenho nenhuma ambição e não quero aparecer perante o Brasil como impostor. Você é testemunha de que só fui vice por imposição de Aureliano Chaves, que acreditava que eu seria essencial para a vitória.”
E Ulysses: “Sarney, não crie caso. Nós não podemos abrir uma brecha para o Walter Pires (então Ministro do Exército e muito contra mim). Lutamos tanto e não podemos morrer na praia.” Eu respondi: “Ulysses, eu não sou carreirista, a Constituição diz que é você.”
No fim de nossa conversa já o corredor do Hospital estava cheio: Leônidas, Ivan, Pedro Simon, Fernando Henrique, Heráclito Fortes e muitos outros.
Chegamos numa grande roda em que se discutia exatamente quem deveria assumir. Ulysses expressou seu pensamento. Eu disse que não participaria de nenhuma démarche e que Ulysses sabia minha posição. Em seguida Leônidas assumiu a execução das disposições de Ulysses e o convidou: “Vamos ao Leitão de Abreu comunicar a decisão.” Olhou em seguida para o Coronel Albérico Barroso Alves e pediu sua gravata: “Empresta-me tua gravata.” Desceram, tomaram também emprestado o carro do Heráclito e foram à Granja do Ipê.
Lá comunicaram o fato ao Leitão, que lhes replicou que o Figueiredo não me passaria a faixa presidencial.
Quando saíram, entrou o Walter Pires, que fora comunicar que iria levantar os quartéis. Leitão o advertiu: “Você não é mais Ministro. Foi exonerado no Diário Oficial de hoje.” (Já era dia 15, data da posse.)
Walter Pires, desolado, argumentou. “Não sou mais Ministro?”
Leitão respondeu: “Não”.
Walter Pires: “Está tudo perdido!”
Começava a transição. Dávamos o primeiro passo, e a Democracia nascia como o Sol. Hoje ilumina o Brasil. Ela não morreu em minhas mãos.
40 anos de liberdade absoluta. Novo Tempo. Nova República. A Constituição de 1988.
A Democracia Brasileira.
40 anos de Democracia
No próximo ano, no dia 15 de março, comemoraremos 40 anos de democracia. Saímos de um regime autoritário para a implantação do Estado de Direito, governo das leis, e não dos homens.
A transição democrática sempre foi um momento de grandes desafios e perplexidade. Muitas vezes transforma ídolos em políticos destruídos; desconhecidos, em heróis. Exemplo disso foi a Espanha, na travessia de Franco para a monarquia, quando surgiu a figura de Adolfo Suárez, que fez a transição, entrando na História.
O brasilianista Ronald M. Schneider, que escreveu sobre as transições democráticas na América do Sul, disse que a mais bem sucedida foi a brasileira, que não deixou nenhuma hipoteca militar e implantou uma democracia plena, com os ventos da liberdade governando o País, em absoluta normalidade. Aqui não houve revanche, como lá, e todos foram incorporados aos novos tempos, com a anistia para os dois lados. No Chile tiveram que transformar Pinochet e outros generais em senadores e criar o Fundo do Cobre, administrado pelas Forças Armadas. Na Argentina, Alfonsín teve que enfrentar cinco revoltas; o mesmo ou algum movimento semelhante ocorreu no Peru, no Uruguai, na Colômbia, em Portugal, na Grécia e em outros.
Tivemos aqui uma tragédia com a morte do Tancredo e a agonia que antecipou seu descanso.
Quando Aluízio Alves me avisou que Tancredo, nosso grande e inigualável estadista, estava internado, eu me desloquei para o Hospital de Base, e lá estavam Ulysses, Aécio, Tancredo Augusto e toda a família. Ulysses, isolado numa pequena sala com os modestos móveis da NOVACAP, sem ninguém. Ao entrar, ele me disse: “Sarney, veja o que o destino preparou para nós, Tancredo terá que ser operado hoje. Teremos grandes dificuldades e perigos e não podemos cometer nenhum erro. Este é o momento mais importante da minha luta.” Eu lhe respondi: “Ulysses, você foi o grande político e herói que nos conduziu até aqui. Comande, e vamos atravessar esta dificuldade. O Dr. Renault de Matos me afirmou em uma conversa que tudo se resolverá.” Pelo tempo, não sei se estou sendo fiel às palavras do nosso diálogo. Mas o sentido é o mesmo, com absoluta fidelidade. Já repeti muitas vezes os fatos, o que, de novo, estou fazendo.
Fizeram tudo para intrigar-me com Ulysses, com quem tinha uma relação que vinha de nossos tempos na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, onde exercíamos nossos mandatos. Mas não conseguiram e se tivemos algumas divergências nenhuma nos levou ao rompimento. Eu tinha noção de seu lugar na resistência ao regime militar, do respeito com que a Nação o via e da chefia que exercia sobre a classe política e do meu papel na articulação da vitória no Colégio Eleitoral e com o MDB.
Em seguida, Ulysses me disse: “É você que tem que assumir amanhã. É o que manda a Constituição.” Eu repliquei: “Jamais, Ulysses. Quero assumir com o Tancredo. Não tenho nenhuma ambição e não quero aparecer perante o Brasil como impostor. Você é testemunha de que só fui vice por imposição de Aureliano Chaves, que acreditava que eu seria essencial para a vitória.”
E Ulysses: “Sarney, não crie caso. Nós não podemos abrir uma brecha para o Walter Pires (então Ministro do Exército e muito contra mim). Lutamos tanto e não podemos morrer na praia.” Eu respondi: “Ulysses, eu não sou carreirista, a Constituição diz que é você.”
No fim de nossa conversa já o corredor do Hospital estava cheio: Leônidas, Ivan, Pedro Simon, Fernando Henrique, Heráclito Fortes e muitos outros.
Chegamos numa grande roda em que se discutia exatamente quem deveria assumir. Ulysses expressou seu pensamento. Eu disse que não participaria de nenhuma démarche e que Ulysses sabia minha posição. Em seguida Leônidas assumiu a execução das disposições de Ulysses e o convidou: “Vamos ao Leitão de Abreu comunicar a decisão.” Olhou em seguida para o Coronel Albérico Barroso Alves e pediu sua gravata: “Empresta-me tua gravata.” Desceram, tomaram também emprestado o carro do Heráclito e foram à Granja do Ipê.
Lá comunicaram o fato ao Leitão, que lhes replicou que o Figueiredo não me passaria a faixa presidencial.
Quando saíram, entrou o Walter Pires, que fora comunicar que iria levantar os quartéis. Leitão o advertiu: “Você não é mais Ministro. Foi exonerado no Diário Oficial de hoje.” (Já era dia 15, data da posse.)
Walter Pires, desolado, argumentou. “Não sou mais Ministro?”
Leitão respondeu: “Não”.
Walter Pires: “Está tudo perdido!”
Começava a transição. Dávamos o primeiro passo, e a Democracia nascia como o Sol. Hoje ilumina o Brasil. Ela não morreu em minhas mãos.
40 anos de liberdade absoluta. Novo Tempo. Nova República. A Constituição de 1988.
A Democracia Brasileira.
Três decisões
O grande desafio dos países em desenvolvimento é, sem nenhuma contestação, o atraso científico e tecnológico. O mundo do futuro não será de países grandes ou pequenos, mas dividido entre os países que dominam ciência e tecnologia e os que ficarão colonizados, importando as conquistas da humanidade e condenados ao atraso.
Durante o tempo em que fui presidente, procurei prestigiar estes setores em que tínhamos nomes como o de Alberto Santoro, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, e o de Israel Vargas, depois ministro de ciência e tecnologia. Sempre fui fascinado pelo estudo das partículas de altas energias. Cheguei mesmo a ir aos Estados Unidos visitar o Fermilab, onde um grupo brasileiro estava participando do estudo da descoberta de partículas de altas energias. Ali era o local onde tinha sido desenvolvida a bomba nuclear. Fui recebido pelo prêmio Nobel Leon Lederman, que descobriu os neutrinos. Disse-me ele que nem o Secretário de Energia dos USA tinha visitado aquele mais avançado centro tecnológico do mundo. Naturalmente pensava: “O que vem fazer aqui o Presidente do Brasil?” Como, na véspera, Chicago, onde está instalado Fermilab, tinha ganhado o campeonato nacional de soccer, eu disse, para conquistar o auditório: “Vim para associar-me ao povo deste grande Estado na alegria da vitória do Campeonato”. Foi uma grande risada. Depois visitei o grupo brasileiro.
Pois bem. Referi-me neste artigo à discussão sobre a necessidade de regulamentação da inteligência artificial. No Congresso, o assunto tem sido debatido, e os determinados lobbies têm procurado interferir. Com isso retardam a apreciação do assunto, com prejuízo para o Brasil, chegando mesmo o STF a ameaçar que, se o Congresso não resolver, a Corte vai entrar!…
Ora, isto me faz lembrar que outras duas decisões muito atrasaram o Brasil: a primeira foi a da extinção dos partidos por um ato do Regime Militar de 64. Isso determinou a extinção da formação de lideranças e a multiplicação de partidos, chegando hoje a vinte e nove (29). A ausência de lideranças é o grande desastre da política. Com as redes sociais, surgiram quadros muito fracos, para não avançar em outros procedimentos mais graves.
Outra decisão gravíssima foi a que se referiu aos computadores e avanços digitais. Um nacionalismo vesgo fez com que se proibissem as entradas de tecnologias, na vã esperança de desenvolver um computador nacional. Isso nos atrasou de tal modo que estamos totalmente submetidos ao mercado estrangeiro. Se tivéssemos uma abertura para desenvolver uma tecnologia nossa, não estaríamos tão dependentes e teríamos uma indústria de computação e recursos humanos nessa área.
Isto nos adverte de que, se agora retardarmos a regulamentação da inteligência artificial, ou fizermos uma lei retrógrada, vai acontecer o que já vimos nessas outras decisões.
Eu tenho orgulho de dizer que, com o prestígio que dei à área científica, a Marinha conseguiu chegar ao enriquecimento de urânio na fábrica de Aramar e deu-nos condições de consolidar a nossa capacitação tecnológica, garantir o fim da disputa nuclear com a Argentina e hoje sermos o único continente do mundo a não ter armas nucleares nem disputas sobre elas.
Desenvolvemos tecnologia própria em fibra ótica e em semicondutores. Por meio do CAPES e do CNPq, demos um salto na capacitação de quadros científicos. Anos antes eu havia proposto uma lei para a volta ao país dos cientistas brasileiros, que, desestimulados, haviam saído do Brasil durante o regime militar.
Não cometamos os mesmos erros com a inteligência artificial, o grande desafio do presente.
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Os riscos da Presidência
A História do Brasil foi marcada sempre pela frequência com que a transmissão do poder sofreu ameaça de continuidade de parte dos perdedores.
Se analisarmos bem e pensarmos nas circunstâncias da época, chegaremos à conclusão de que a primeira ameaça foi contra Prudente de Morais. Tendo sito derrotado por Floriano Peixoto na primeira disputa, na segunda, com a nova Constituição já em vigor, venceu as eleições e transformou-se no primeiro Governo civil da República. Mas foi eleito com a marca de que podia ser deposto. Teve que lidar com a Revolução Constitucionalista no Rio Grande do Sul, a invasão da Ilha da Trindade pelos ingleses, a do Amapá pelos franceses e ainda a questão da fronteira com a Argentina, que Rio Branco resolveu. Com habilidade escolheu o arbitramento e sobreviveu, embora tendo às suas costas como vice o Manoel Vitorino, florianista, que foi muito incorreto quando o substituiu durante o tempo em que esteve afastado para fazer uma cirurgia. Tentou pacificar as facções e atravessou todos os riscos — inclusive uma tentativa de assassinato — e, assumindo para ser deposto, superou a ameaça.
Podemos dar o exemplo de Artur Bernardes, que, pressionado pelos militares, foi forçado a governar todo o tempo com Estado de Sítio e também sobreviveu.
Já Washington Luiz assumiu, numa eleição exemplar da Velha República, com 99% dos votos, e foi deposto na Revolução de 30.
Juscelino foi eleito para ser deposto, com a tese de que não obtivera maioria absoluta, mas, graças a sua habilidade de grande político, enfrentou duas revoltas, de Aragarças e Jacareacanga, e terminou o seu mandato gloriosamente como um dos maiores presidentes do País, o construtor de Brasília.
O Jânio Quadros assumiu para iniciar uma nova Era no Brasil e frustrou todos com uma renúncia até hoje sem explicação.
João Goulart, o Jango, é um exemplo de péssimo político. Com grande apoio das forças partidárias, mas com forte resistência militar, assumiu numa fórmula de conciliação, adotando-se um parlamentarismo de araque, fez tudo para ser deposto com medidas de esquerda radical e tentando dividir as Forças Armadas. Assumiu para ser deposto. E foi.
Escolhi os casos mais graves. Mas se olharmos todos, veremos esta tendência de instabilidade política que marca a nossa democracia.
Eu também tinha todos os elementos que me apontavam como um presidente que ia ser afastado. Fernando Henrique mesmo, em entrevista, disse que, se soubessem que Tancredo morreria, eu não teria assumido. Mas outro dia o jornalista Fernando César Mesquita me disse que foi visitá-lo e, quando lhe perguntaram qual o melhor político com que lidara, FHC respondeu: o Sarney.
Sabe Deus — e só Ele — os perigos da presidência. Eu também tinha a mesma sensação de FHC. Tudo me dizia que eu seria mais um Presidente que seria deposto. Assumi o cargo, obedecendo à Constituição, mas o poder de fato foi para o Ulysses Guimarães, que era Presidente da Câmara, Presidente do MDB — e seria Presidente da Constituinte. Eu não tinha partido. Vinha do rompimento com o PFL e ainda não tinha sido aceito de fato pelo MDB. Uma ala ligada ao Presidente Figueiredo agia contra a mudança dentro das Forças Armadas. Eu vinha de um Estado pobre, o Maranhão, e não tinha acesso à área das grandes corporações econômicas ou de mídia.
O ministro Leitão de Abreu, grande homem público e sólido caráter, disse a mim e ao Carlos Castelo Branco que o General Walter Pires fora a sua casa, na véspera da posse, dizendo “Não aceito o Sarney e vou para os quartéis levantar a tropa”. Leitão o dissuadira com um argumento fulminante: “O senhor não é mais ministro, foi exonerado no Diário Oficial de hoje.” “Então está tudo perdido”, respondera o novo ex-ministro.
Qual a minha sustentação? A lealdade e confiança de Aureliano Chaves, Marcos Maciel, Jorge Bornhausen, Guilherme Palmeira e do melhor Ministro do Exército que já tivemos, Leônidas Pires Gonçalves, além de uma bancada de aguerridos deputados da Aliança Liberal.
Mesmo assim, visualizando nossas dificuldades, tracei meu plano de legitimar-me e executar a transição para a democracia. Fizemos a Constituição, hoje vivemos o maior tempo sem hiatos de uma democracia, e os ventos da liberdade cobrem o País.
O brasilianista americano Ronald Schneider diz que a nossa transição democrática foi a melhor do mundo porque não deixou hipotecas militares e assegurou a implantação de regime democrático duradouro.
Desgostos de agosto
Agosto é mês de desgosto, diz o bordão. Logo se cita o suicídio de Getúlio. Mas outro caso de agosto teve profundas repercussões na História do Brasil: a renúncia de Jânio Quadros. Carlos Castelo Branco, que gostava de afirmar que era apenas um repórter, mas o consolidador do jornalismo de análise em nosso País, publicou um pequeno livro com seu depoimento sobre a renúncia do Presidente Jânio Quadros. Muitas vezes disse-me que tinha escrito estas páginas e que elas somente deveriam ser publicadas depois de sua morte. É o relato preciso de um repórter que anotou e analisou os fatos com uma precisão de linguagem e uma honestidade exemplares, características de sua personalidade. Mas não é fácil, para o leitor de hoje, entender aqueles tempos.
O último período de Vargas foi todo ele marcado por um clima de esperto suspense sem que ninguém soubesse como era o seu processo de decisão e quais os seus objetivos. O governo de Jânio, no sentimento dos que com ele trabalhavam, era de medos e imprevistos. O presidente era uma alma que não se deixava revelar e nele nunca se distinguia bem entre o grande homem público e o teatro. Castelo pinta com precisão esse cenário.
Castelinho não diz o motivo da renúncia. Ele ficou encurralado num leque de explicações, nenhuma delas racional. Não quis listá-las. Eu acredito que ninguém pode explicá-la. Nem Jânio Quadros, o autor, sabia. O Presidente costumava viver pessoalmente um personagem de tensão a inspirar temor. Se tinha afetos maiores, eles jamais se explicitavam, e nem suas ideias, nem suas paixões. Castelo revela que, quando voltou da Europa, após deixar o governo, o ex-Presidente entregou a ele, a José Aparecido e Oscar Pedroso Horta — seu Ministro da Justiça — a tarefa de escreverem a explicação da renúncia, bem como a de escolherem o melhor caminho de levá-la ao público, já com os olhos voltados para o futuro político.
Fui vice-líder do governo Jânio Quadros. Com o Presidente, através de Aparecido, Castelo, Quintanilha Ribeiro tinha uma convivência quase protocolar. Mas dele sempre recebi provas de consideração. Um dia, às sete horas da manhã, chamou-me a seu gabinete e foi incisivo:
— Preciso do Senhor, Deputado Sarney. Em Cuba fizeram uma revolução. No governo só tem gente jovem. Quero mostrar-lhes que o Embaixador do Brasil será um jovem de trinta anos!
Fiquei perplexo. Eu começava minha carreira política e minha única aspiração era ser um bom parlamentar. Fui ao Chanceler Afonso Arinos, meu velho e querido e sempre saudoso amigo, e pedi-lhe proteção: “Ajude-me a demover esse homem dessa insensatez. Eu não tenho, acrescentei com humor, desejo de repercutir na ONU…” A coisa passou.
No livro de Castelo há uma omissão. A noite da véspera da renúncia, que ele descreve, eu acompanhei de perto. Estava com ele na casa do Horta, que me chamou para uma conversa separada e pediu-me para ir na manhã seguinte à Câmara dos Deputados fazer um levantamento de todas as emendas constitucionais em tramitação, pois desejava ir ao Congresso e responder às denúncias de Carlos Lacerda, então Governador da Guanabara, tendo como base que todas as reformas que solicitava estavam no Congresso, não haviam sido por ele inventadas e, assim, não eram pistas de um “golpe de estado”. Eram umas três horas da manhã. Pouco depois saíamos. Quando eu e Castelo descemos no elevador perguntei-lhe, sentindo que a crise era profunda: — “O que vai acontecer?” Ele respondeu-me: — “O Horta caiu, Aparecido ganhou.”
Às quatro horas da tarde o presente já era passado: Jânio estava em Cumbica, e todos nós vivíamos uma frustração que doeu por muito tempo.
Algum tempo depois cobrei do Castelo sua afirmação naquela fria madrugada de Brasília, e ele completou: “O Horta caiu mesmo. Somente não se sabia que ele, para não sair só, levou o Jânio.” Em mim, ficou a impressão de que aí estava a motivação de o Ministro da Justiça ter sido tão intransigente na entrega imediata da carta de renúncia ao Congresso Nacional.
Velhos tempos, que têm o sabor das coisas velhas, vividas e que nunca se explicam. De Getúlio se conhece o caminho do suicídio. Ele sabia que a bala com que ia matar a República do Galeão passava pelo seu coração. Era um gesto político. O da renúncia de Jânio nunca ninguém saberá, nem ele mesmo sabia. Era o segredo de uma madrugada de angústia com a lembrança de De Gaulle, renunciando e voltando.
Eu e a UDN, depois da renúncia, contraímos uma úlcera de estômago, que jamais nos largou.
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Ciladas da Transição
Leio que os Estados Unidos, já dando como certa a queda do Maduro, articula negociar a transição e nesta o ponto principal é a anistia. Certamente nenhuma transição, com as características da Venezuela e do chavismo, pode ser feita de maneira negociada sem alguma anistia. Há duas formas de transição: com negociação, necessitando de uma engenharia política difícil, que leva tempo; ou pelas armas, o que impõe uma derrota da parte coatora, com o preço alto de uma guerra civil. E não devemos menosprezar aquilo que nos lembra Afonso Arinos, num artigo sobre a crise brasileira, que escreveu para o Jornal do Brasil, em que diz que as ambições do perdedor não são menores que as do vencedor, lembrando Machiavel. Eu, com a experiência de quem viveu e presidiu uma situação dessa natureza, posso afirmar que a maior de todas as dificuldades é estabelecer um nível de confiança, em que o medo de represálias possa ficar controlado, de modo a não ser a cilada em que tudo pode desmoronar.
O instrumento que temos não é outro que a anistia. O Brasil tem lidado com ela, de maneira admirável, em todos os movimentos de ruptura em nossa História. Sempre a fizemos abrangendo os dois lados. A mais difícil delas talvez tenha sido a da Revolta da Armada, nos tempos de Floriano Peixoto, que deixou como lembrança o debate na Câmara dos Deputados entre Rui Barbosa e Gomes de Castro, a quem o próprio Rui considerava estar entre os melhores tribunos da Casa.
Outros exemplos são a dada por Juscelino na Revolta de Aragarças e o perdão concedido por mim àqueles que agrediram, à picareta, o ônibus que me levava para entregar uma condecoração a Bidu Saião, no Paço da Cidade, na Praça da República, e a complicada anistia do final do regime militar.
Há uns cinco anos, o brasilianista Ronald Schneider escreveu uma biografia minha daqueles anos, em que diz que fomos a mais exitosa das transições democráticas, pois não negociamos hipotecas militares, como o Chile, que teve de fazer o Pinochet senador e criar um fundo do cobre para as Forças Armadas, ou como Alfonsín, que teve de lidar com três sedições militares e uma divergência contínua com os quartéis. Aqui nada tivemos e já no próximo ano, em 15 de março, vamos comemorar 40 anos de democracia. Tivemos a sorte de ter, no Ministério do Exército, o General Leônidas Pires Gonçalves, o melhor Ministro do Exército de nossa História, que modernizou sua Força, iniciou sua entrada na era digital e devolveu a tropa aos quartéis, sem nenhuma reação.
Sou sempre um otimista, mas neste caso da Venezuela acho muito difícil que Maduro seja homem que negocie ou que tenha sensibilidade para evitar uma guerra civil. Não há mais lugar para a simples intervenção americana, que a América Latina não deve aceitar, mas não se pode perder tempo, pois ele não tem espírito público nenhum. Já demonstrou a que veio e tem uma ficha de violência na qual existe uma legião de políticos presos, mortos, e uma Venezuela mergulhada num caos econômico e sete milhões de venezuelanos fugidos do país, párias mundo afora.
Realmente precisamos meditar sobre o grande esforço nacional para voltar ao Estado de Direito. Começamos o regime militar com o Castelo que tinha o objetivo de fazer eleições e foi atropelado pela linha dura. Com a volta do Geisel, da linha castelista, Golbery começou a abertura “lenta, gradual e segura”. Petrônio, Krieger, Aureliano, Marcos Maciel, Virgílio Távora, eu, de um lado; Fernando Santana, Marcos Freire, Ulysses, Paulo Brossard, Tancredo Neves, e muitos outros, e seus interlocutores Lula, Montoro, Olavo Setúbal e outros mais; das Forças Armadas, como o correto General Euler Bentes Monteiro, e muitos e muitos outros, com grande patriotismo.
Assim a transição veio de longe, e a base dela foi a anistia.
Mas por aí não vão a Venezuela, Maduro e suas Forças Armadas. Ele não é democrata. Mas reconhecemos que não há solução pacífica sem anistia. Se ela não funcionar, o impasse ficará no mesmo pé em que está.
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A coragem de Biden
O mundo sempre olhou com admiração a experiência democrática americana. Mas nela choca a violência política, com o assassinato de quatro presidentes e de vários líderes políticos, entre inúmeras tentativas. O tiro contra Trump segue o mau costume.
Surpreendente mesmo foi o que aconteceu com o Presidente Joe Biden. Ele é o decano dos políticos americanos. Sua vitória sobre um ex-governador e duas vezes senador lhe dera uma entrada brilhante no Senado. Sete vezes senador, mostrou-se um habilidoso negociador e legislador, figura importante na Comissão de Justiça e na Comissão de Relações Exteriores. Tentou pela segunda vez ser candidato à presidência, em 2008, quando a disputa se centrou em Obama x Hillary, e acabou como Vice-Presidente do primeiro presidente negro. Em 2020, para concorrer contra Trump, venceu as primárias e escolheu como vice Kamala Harris, que desistira no meio da campanha. Fez então de Trump o primeiro presidente candidato à reeleição a ser derrotado.
Tragédias marcam sua vida pessoal. Perdeu a mulher e uma filha num acidente automobilístico. Seus dois filhos, Beau e Hunter, sobreviveram ao acidente. Beau elegeu-se duas vezes Procurador-Geral de Delaware e parecia ter uma grande carreira pela frente, mas foi vítima de um tumor cerebral.
Encontrando o país em meio ao desastre da Covid-19 e com uma situação econômica muito ruim, Biden conseguiu uma extraordinária recuperação econômica e criou quinze milhões de empregos. Enfrentando primeiro um Senado de maioria republicana e depois uma Câmara trumpista, conseguiu mesmo assim avançar em pautas importantes, como combate a mudanças climáticas, redução de barreiras comerciais, controle de armas, direito das minorias etc.
Agora a disputa eleitoral mantinha-se equilibrada, com Biden denunciando a — imensa — ameaça à democracia que Trump representa e Trump o chamando de senil e desonesto, usando o velho truque de acusar o adversário de seus próprios defeitos. Espantosamente os processos contra Trump — condenado por difamação de uma mulher que estuprara, por fraude comercial, por falsificação de documentos para esconder fraude eleitoral e processado por atentado à segurança nacional, tentativa de fraude eleitoral e tentativa de golpe de Estado — aumentaram sua popularidade. Biden surpreendera os republicanos ao se apresentar com toda vivacidade no discurso “do Estado da União”.
Mas no debate entre os dois candidatos, no começo do mês, Biden começou desnorteado e incapaz de atacar a torrente de mentiras que um Trump exultante enunciava sem responder as perguntas. O NY Times, que se diz ter rancor contra Biden por ter recusado uma entrevista exclusiva, foi o primeiro a denunciar sua incapacidade, silenciando sobre a de Trump. E a mídia veio numa maré crescente, até seu recolhimento por estar com Covid.
Neste domingo, então, Biden fez o que nenhum presidente americano fizera antes dele: desistiu de competir, apoiando a sua vice, Kamala Harris.
Imagino o que não foi a agonia da decisão. Não é fácil para um político admitir que não está em condições de ganhar. Mais difícil fazer isso sem se declarar incapaz da gigantesca tarefa de governar os Estados Unidos. Biden, que é considerado um homem de imensas qualidades humanas, mostrou que é capaz de um gesto raríssimo de altruísmo político. Um gesto de muita coragem.
Kamala Harris parte agora para o desafio de tornar-se a candidata do Partido Democrata. Seus primeiros passos foram positivos, conquistando apoio de políticos importantes buscando o necessário contato direto com os delegados à convenção.
Conseguiu desde logo um trunfo: as doações eleitorais, que haviam quase cessado, bateram ontem um recorde, com 50 milhões sendo depositados em menos de doze horas. Muita coisa corre em torno do objeto misterioso preferido das bolsas.
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A cara do Diabo
Houve uma ignomínia. Essa palavra exprime o que não tem nome. Algo pior que a desonra, que a desgraça. Pois há coisas tão ruins que não temos palavras para elas. Há horrores quotidianos com nomes: assassinatos, homicídios, abusos, estupros. Mas o que esse homem fez!!…
O anestesista Giovanni Quintelle Bezerra foi filmado estuprando uma paciente durante o seu parto, aplicando-lhe uma dose exagerada de drogas para que perdesse a consciência, tornando a vítima, já vulnerável, mais frágil, absolutamente indefesa. É quase indescritível o que fez.
Fez e fazia, já é claro que não foi a primeira vez. Atingia as vítimas no momento glorioso do parto, de dar ao mundo uma nova vida: escolhia o instante em que todas as energias das pacientes estavam focadas na esperança que é o nascimento. Afastava os acompanhantes — por cautela? —, mas agia em meio a médicos e enfermeiros, talvez por sentir na sua proximidade uma maneira de elevar o risco para exacerbar o seu prazer.
As disfunções sexuais estão associadas a fetiches; o sexo em público, próximo do exibicionismo, é certamente um deles, como o são os componentes de sadismo, do domínio, do abuso do outro. A OMS diz que elas são a “inabilidade de uma pessoa em participar de uma relação sexual como gostaria”.
Se o episódio bárbaro desse criminoso pode ser explicado por médicos no exame de motivações e explicações de suas desordens psiquiátricas, na definição das características e do grau de suas psicopatias, esse exame interessa apenas aos que terão a sua tutela. Para a sociedade, a única coisa certa é a necessidade de afastar e retirar de seu seio quem atenta contra ela nos mais básicos instintos de nossa natureza: a proteção dos mais fracos, o papel do médico — o médico jura que nunca usará seus conhecimentos para infringir os direitos humanos —, a solidariedade, a necessidade de consentimento implícita em todo ato sexual.
Antes de qualquer procedimento em que o paciente perde, por necessidade do tratamento, a capacidade de exprimir a vontade, ele precisa dar seu consentimento. O criminoso, portanto, abusava também de um compromisso direto de que o que controle que teria seria para o benefício de quem se tornava seu dependente, que lhe entregava a vida. O abuso atinge, assim, a própria vida das vítimas.
Vítimas também são seus companheiros, suas famílias, os filhos que acabavam de nascer. O nascimento foi escolhido por Deus para marcar sua encarnação, anunciada pelos profetas e realizada num presepe de animais, para onde levou, na litania dos anjos, a “humilde serva do Senhor”, como ela cantou no Magnificat. O menino Jesus sofre assim com esses pequenos nascidos já vítimas do Mal. Pois o Mal existe, hoje há mais uma prova. Dizia Dom Felipe Conduru, grande bispo maranhense: “Em face da onda de ateísmo, o Diabo existe.”
Todos têm o direito de defesa, e este criminoso — preso em flagrante do ato indescritível — deve poder exercê-lo. Mas a sociedade tem também o direito, não, o dever de coibir, da maneira mais firme, o crime. Esse crime não pode se repetir. Ele contraria a essência da dignidade humana; ele avilta o ato fundamental da vida, o nascimento, a vitória sobre a morte.
Isso não tem nome. É uma violência inexprimível. É uma desgraça. É uma desonra. É o próprio Diabo!
Cultura e inovação
Na semana passada, quando fiz um programa de entrevista de televisão, tive a oportunidade de dizer que atravessamos no Brasil um período que chamei de “pálido” no que se refere à cultura. Podemos constatar esta afirmação, estamos com certa fome e expectativa de que surjam na atualidade artistas da dimensão de Portinari e Guimarães Rosa.
Temos saudade também dos movimentos que mexeram com a música, como a Bossa Nova, de onde saíram Tom Jobim, João Gilberto; a Jovem Guarda, mesclando música, comportamento e moda; os grandes da MPB, Gil, Caetano e, sobretudo, Chico, o maior de todos, os mineiros do Clube da Esquina, e tantos outros.
Lembro que em meados da década de 1960 surgiu o Festival Internacional da Canção, organizado por Augusto Marzagão, inspirado no Festival de Sanremo, e o Festival de Música Popular Brasileira, estimulados com músicas de protesto contra o regime militar, como a de Geraldo Vandré, que se tornou símbolo dessa atitude com sua canção “Pra não dizer que não falei das flores”: morrer pela pátria e viver sem razão.
Sempre me preocupou o que hoje se tornou um refrão dos administradores: modernidade e inovação. Nesse sentido, quando era governador do Maranhão, em 1964, diante da imensa carência de professores, fui pioneiro no Brasil com o ensino à distância. Implantei um circuito fechado em dois colégios, que serviram de exemplo, em que a aula era transmitida em todas as salas. Depois consegui para o Estado uma concessão de televisão aberta, que chamei de “televisão didática”, com a transmissão de aulas já então ganhando o interior com o meu programa de ginásios, a que dei o título de “Ginásios Bandeirantes” — eram 64 unidades, em mais da metade dos Municípios do interior. O Maranhão tinha até então apenas um ginásio, na capital do Estado, o Liceu Maranhense, em que estudei.
Para esse programa, mandara dois educadores, irmãos Maristas, para, durante seis meses, aprenderem o que os japoneses já faziam, o ensino a distância, e escolherem o equipamento que seria necessário implantar no Estado.
Assim foi feito, e os estudiosos do assunto se referem ao fato de o Maranhão ser o pioneiro do ensino a distância no Brasil. E até hoje está funcionando.
Um país para ser uma grande potência não basta ser potência militar, potência econômica, potência política e democrática: é preciso ser primeiro uma potência cultural.
Esse pioneirismo fez com que minha causa parlamentar fosse a cultura. Nesse sentido criei o Ministério da Cultura e, durante o exercício dos meus mandatos parlamentares, propus e foram aprovados o projeto Fundo Nacional Pró-Leitura, a Política Nacional do Livro e, ainda deputado, apresentei o primeiro projeto de incentivos fiscais à cultura, importantes na formação dos jovens e para o conhecimento dos adultos.
É lendo que se abrem portas, os horizontes da imaginação e a capacidade de compreender e a esperança de transformar o mundo. Daí a importância do livro.
Ao nascer Deus me deu um amigo, o livro, que jamais abandonei. Acredito que tenha passado 20% da minha vida lendo. Não tenho outra dedicação para encher o meu ócio, senão o prazer da leitura.
Não podemos falar de cultura sem que deságue no nosso inevitável desejo de abordar o problema da educação. Mas esse será o objetivo de outro artigo, tão vasto é o terreno em que a crítica ao modelo atual é maior que os ganhos.
Estamos no mundo da ciência e da tecnologia. O Brasil está atrasado. As últimas descobertas de ponta ocorreram no tempo em que ocupei a Presidência da República: enriquecimento de urânio, fibra ótica, fabricação de satélites, semicondutores…
Assim não podemos perder a visão do futuro. Nossos avanços atuais ficam na área da agroindústria, com o reconhecimento do extraordinário trabalho da Embrapa. Apesar de tudo, o Brasil tem crescido muito em termos de pesquisa científica, estando hoje entre os grandes do mundo. Nada espetacular, mas muita coisa importante.
Vamos terminar este artigo dizendo da nossa ambição (a minha!) de o Brasil transformar-se numa potência cultural, numa potência educacional, o que levará a ser uma potência científica e econômica.
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São João do Maranhão
Como pensam os dirigentes políticos das Casas Legislativas, eu também, como filho do Nordeste, deste Meio Norte do Maranhão e Piauí na classificação dos geógrafos, estou fugindo do frio de Brasília, ou melhor, da pneumonia que ataca nesses meses no Planalto Central. Volto a minha terra, o Maranhão, minha grande paixão. Por que não confessar? Venho em busca de Santo Antônio, São João, São Pedro, São Paulo e São Marçal, que são festejados durante todos os dias de junho pelos cordões do bumba-meu-boi, mais de trinta grupos, cada um com seu ritmo próprio: Matraca, Tambor, Orquestra, Pandeirão, Costa de mão e muitos outros inventados ou ressuscitados de memórias antigas.
Já na casa dos noventa, carrego uma saudade morta da São Luís da minha adolescência. A cidade daquela época desapareceu e, pior que a cidade, desapareceram também a quase totalidade dos amigos e das gentes com quem convivi, das coisas, dos bondes, único transporte coletivo na época. Carros? Nem pensar. Devia haver no máximo vinte, todos com os donos conhecidos na cidade, e mais cinco táxis, cujos motoristas vestiam terno e gravata e aceitavam corridas com hora marcada.
Procuro os tempos da adolescência, dos caminhos pelos quais o destino me levou, de líder estudantil, político, poeta, jornalista e depois o homem na constituição da família. Todos e tudo ofuscados por estes tempos de menino, em que começava a descobrir o mundo, as cores, a natureza, as noites e os encantos no acompanhamento das brincadeiras de bumba-meu-boi pelos subúrbios da Ilha de São Luís, com nosso pequeno grupo de jovens intelectuais — Bandeira Tribuzzi, José Carlos Macieira, Ferreira Gullar, Bello Parga, Lago Burnett, Lucy Teixeira — e com os pintores — Floriano, Cadmo, Figueiredo, Pedro Paiva —, alguns já com namoradas naquele tempo. Onde estão? Na minha memória, e um dia desaparecerão comigo.
Hoje, o São João é show, cantores de fora e da cidade, quadrilhas e danças portuguesas, além de humoristas contratados pelos vários arraiais, que proliferam na cidade e na televisão. Os vários canais de tevê locais, com anúncios da disputa de público, a dizer que o São João do Maranhão é o melhor do mundo! E eu concordo!
Mas prossigo em minha busca dentro de mim e não encontro mais aquele pobre São João do meu tempo, mais belo que as belas que hoje desfilam de biquíni de índia, enfeitadas de todas as cores, na mistura de carnaval e Pai Francisco e Catirina, personagens do Auto do Boi.
Os cultos de Santo Antônio, São João e São Paulo sumiram, mas São Pedro resistiu, e a procissão marítima ainda é um acontecimento que mobiliza a cidade que vai para as praias admirá-la.
Mas há uma novidade, que é São Marçal, que não existia no meu tempo. Hoje o último dia de junho é reservado a ele e, no Bairro do João Paulo, na praça tradicional, a partir da meia-noite do dia 29, ele já começa a ser festejado com todos os cordões do bumba-meu-boi, juntos numa confraternização e no esquecimento da disputa do mais belo para jurar e entrar no mês de julho com o mesmo São João, agora louvando São Marçal.
Mas quem é São Marçal? Muitos afirmam que ele não faz parte da relação dos santos católicos. Vou à Wikipédia e lá encontro:
O Festejo de São João e São Marçal são dois eventos religiosos e da cultura popular realizados em São Luís, capital do Maranhão. Marcam o encerramento das festividades juninas no Estado.
Viva São João!