José Sarney
A política é destino
Eu tenho afirmado ao longo da minha vida que nasci com uma total incapacidade de ter ódio e que rejeito a execrável teoria do Lenine de que devemos inverter na política o enunciado de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”.
Segundo essa tese, o adversário teria que ser tratado como inimigo, a quem não se deve apenas vencer, mas destruir, matar, aniquilar. Não se estaria mais na disputa das ideias e sim em um campo de batalha.
Para isso Lenine defendia o método da Revolução Francesa, da guilhotina na Praça da Concórdia, em Paris, e dizia ser o Terror necessário na disputa política. Ele o usou na Revolução Russa, e o resultado foram os milhões de mortos do comunismo.
Sempre fui coerente ao considerar a democracia o campo do debate, da disputa pessoal e política. Nunca deixei de praticar o diálogo, de respeitar os meus adversários — e quantos tive e tenho! — e nunca persegui ninguém, nem erigi estátuas à Deusa da Vingança, Adrasteia.
Outra coisa que nunca me corroeu a alma foi o ressentimento. Quantas e quantas vezes tenho repetido isso. O ressentimento e a inveja só fazem mal a quem os pratica. Corrói e angustia.
Por outro lado, não tenho motivo para tê-los. Deus me deu um destino de graças. Levou-me da Pinheiro, onde nasci, e de São Bento, onde passei a infância, por um caminho de estrelas, que colocou em minhas mãos. Fez-me Vice-Presidente e Presidente da República, Governador do meu Estado, três vezes Deputado Federal, cinco vezes Senador da República, o que mais tempo passou na Casa, 39 anos, seguido por Antônio Azeredo, 34, e Rui Barbosa, 32. Sou Doutor Honoris Causa pelas universidades de Coimbra, Pequim, Moscou e Federal do Maranhão, minha terra amada. Membro da Academia Brasileira de Letras (atualmente seu decano) e da Academia de Ciências de Lisboa, onde foi Secretário Perpétuo José Bonifácio. Escrevi 121 livros, alguns traduzidos em 12 línguas, em 169 edições. Fui publicado na mais importante coleção de literatura do mundo, a Folio, com 4.800 títulos, editada pela Gallimard. Entre 40 condecorações, tenho a maior do Brasil, a Medalha do Mérito Nacional, e a mais conhecida no mundo, criada por Napoleão, a Legião de Honra da França, no mais alto grau, Grã-Cruz.
Graças a esse meu jeito de ser, qualidades que Deus me deu, conquistei essa vida. Posso dizer, como Lincoln, que nunca cravei por meu desejo espinho algum no peito de ninguém. Napoleão dizia que “a política é destino, a literatura, vocação”. Dividi-me entre as duas.
Jamais posso me desinteressar da situação nacional e local. Estou escrevendo um livro sobre nossa conjuntura, “O Brasil no seu Labirinto”.
O Amapá e seu povo estão em primeiro lugar, e é bom que tenhamos uma política respeitosa, civilizada e democrática.
Os mortos-vivos
Jorge Amado me contou que, depois de longo exílio, reencontrou um dos maiores poetas de língua espanhola, Pablo Neruda, e perguntou-lhe por um amigo comum, que tinha convivido com eles em Praga, onde nascera sua filha Paloma Amado. Neruda respondeu-lhe: “Jorge, não me perguntes por ninguém. Somos sobreviventes: todos já morreram.”
Já o meu mestre e companheiro de trabalho na redação de O Imparcial, Dr. Fernando Perdigão, quando eu era moço, disse-me: “Sarney, a gente só sabe que está velho quando chegar ao Cemitério do Gavião, olhar para os túmulos e dizer: “Este aqui era meu amigo, esse ali foi meu alfaiate, aquele acolá, meu colega de faculdade, um mais adiante, meu professor de latim”. Ri com ele e depois passei a lembrar-me de sua didática sempre que ia ao cemitério e reconhecia nas lápides amigos e conhecidos.
Com esse sentimento, sentei-me para escrever esta coluna lembrando-me do Clóvis Rossi, que acaba de nos deixar. Grande jornalista. Na Folha de S.Paulo também tínhamos, acima de todos, o Cláudio Abramo, mestre dos mestres; no Jornal do Brasil, Herberto Sales e o notável Carlos Castelo Branco, o Castelinho, grande jornalista de análise, igual ou melhor do que Tobias Monteiro, que, além de historiador, foi o primeiro a fazer grandes reportagens sobre as figuras do Império, sobre o qual escreveu, em dois volumes, o História do Império, reconstituindo, com a fontes primárias, a Lei do Ventre Livre, a Abolição, a República. Castelo foi mais do que ele: escreveu a história contemporânea do Brasil em seus artigos no JB (Coluna do Castelo), permitindo-nos acompanhar, pelo seu trabalho, todos os acontecimentos, altos e baixos, do nosso País. Foi meu colega na Academia Brasileira de Letras, onde o recebi.
Vou aos patriarcas e aqui coloco o maior de todos: Odylo Costa, filho, meu amigo, o maior que tive, pai do jornalismo moderno no Brasil, no qual foi não somente o mestre no texto: inovou a feitura, o modelo, o texto dos jornais, a começar pelo Jornal do Brasil.
Lembro Pompeu de Sousa e o deus Austregésilo de Athayde.
No princípio do século XX, houve uma grande polêmica sobre se o jornalismo era ou não literatura. Discussão inútil. Pelo jornalismo, pode-se fazer boa literatura, sem dizer que temos grandes escritores que foram também grandes jornalistas. Josué Montello era um. Gostava do jornal. Adorava a polêmica e foi um dos maiores romancistas e intelectuais brasileiros.
A morte de Clóvis Rossi fez-me rebuscar estas lembranças. Todos já morreram, mas todos estão vivos através da palavra escrita, onde mora a eternidade.
Mas não posso terminar sem colocar uma coroa de louro no velho Nascimento de Moraes, aqui do Maranhão, pai de todos, a quem ainda conheci e com quem trabalhei.
Depois, aí vai também a saudade, Bandeira Tribuzzi, amigo e irmão, poeta maior, que citei nas Nações Unidas, com quem fundamos este jornal. Dizia ele: “Que tempos de viver-se!” Além de tudo, profetas. Todos mortos-vivos.
Um futuro que chegou
Desde moço tive a cabeça no futuro. Sempre queria me atualizar, olhar para frente e não ter lanterna na popa. Assim, começando a ter gosto pela literatura, não me conformava com um país mergulhado no parnasianismo e aonde não chegara a Semana da Arte Moderna de 22.
Fundamos um grupo de escritores e pintores. Começamos a fazer poesia contestatária das formas antigas e organizamos o Salão de Dezembro no Teatro Arthur Azevedo, chocando com as novas formas.
Foi aí que chegou de Portugal Bandeira Tribuzzi, como ele mesmo dizia, “trazendo Fernando Pessoa na bagagem” e passou a nos atualizar. Conhecemos José Régio, Miguel Torga, Antonio Machado e Garcia Lorca.
Depois meti-me na política, e pensamos em mudar o Maranhão. Tribuzzi fez a parte econômica; nós, a militância política. Governador, pensei não só nas obras, mas nas novas ideias. Trouxemos o primeiro computador. Criamos a Sudema, cópia da Sudene. Com uma equipe de gente nova, implantamos o planejamento, coisa nunca pensada no Maranhão, mandamos os irmãos Lobato e Anselmo ao Japão para ver e estudar as novas tecnologias da educação. Pobres, fizemos um circuito fechado de TV para multiplicar o número de professores (seis mil alunos). Criamos o Projeto João de Barro, até hoje objeto de estudo e tese universitária. Fizemos a primeira televisão educativa do Brasil, que chamávamos de Didática. Criamos cinco faculdades e a UFMA, com a ajuda do Presidente Castelo, e passamos de 745 alunos para cinco mil. Implantamos 74 ginásios Bandeirantes no interior.
Quando recebi o título de doutor honoris causa na Universidade de Pequim, disse que todos os saberes da humanidade eram o resultado da acumulação que vinha da Idade da Pedra à desintegração do átomo. Portanto, o saber devia ser universal e patrimônio da humanidade, jamais objeto de comércio.
Agora chegamos à inteligência artificial, que projeta um futuro inimaginável, com a perspectiva de substituir o homem. As guerras não serão mais de balas e bombas, mas cibernéticas. Não teremos países grandes ou pequenos, mas sim os que dominam ou não dominam tecnologias. Na ponta do iceberg está a guerra comercial entre China e Estados Unidos, para saber quem dominará a tecnologia do 5G.
Assim, o mundo acelera para a velocidade da luz. Tudo se transforma, tudo avança. E o homem? Yuval Harari diz que os empregos desaparecerão em diversas áreas, inclusive na medicina. As máquinas farão diagnósticos e tratamentos.
Não sei se será melhor ou pior. O certo é que o homem que eu sou — e somos — vai desaparecer, como desapareceram os de Neandertal.
A humanidade cresce. Os empregos vão embora. O Brasil está vivendo a tragédia dos 42 milhões de desempregados ou subempregados, sem contar o que acontecerá quando o desaparecimento de empregos do futuro, que será estrutural, se somar a nossa miséria conjuntural.
O Padre Vieira dizia que tinha saudades do futuro; eu também. Mas com essas perspectivas, fico em dúvida: terei saudades do futuro ou do passado?
E agora a mídia publica: entramos no negativo. O Brasil está fazendo como rabo de cavalo, crescendo para baixo.
No Mato sem Cachorro
Nos ditados populares, nosso povo cunhou uma expressão para o momento em que estamos numa situação difícil: no “mato sem cachorro”. Quando vejo as dificuldades que estão sendo atravessadas pelo Presidente Bolsonaro, acho que o Brasil está assim.
Estamos enfrentando duas crises: uma, interna, da falta de recursos, recessão, no trincar da estrutura dos três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário; a outra, de natureza mais grave, porque estrutural, de mudança da humanidade, que está passando da sociedade industrial para a sociedade digital e das comunicações. Surgem novos conceitos sobre valores secularmente sedimentados e novas palavras para defini-los. A mentira é pós-verdade, fake news; novas definições surgem: modernidade, sociedade líquida (as mudanças são de velocidades imperceptíveis), a morte da verdade e da democracia representativa, a interlocução, na sociedade democrática, das redes sociais, enfim, um mundo transformado e não em transformação.
Na conjuntura, nosso País, saindo do sonho para o feijão, está com 58 milhões de desempregados, entre os que perderam as carteiras assinadas, os desocupados, os que nunca procuraram empregos e os biscateiros.
Essa é a maior tragédia
Sem emprego não tem contribuição previdenciária, não tem consumo, não tem trabalho e, pior, não tem desenvolvimento e caímos na recessão. Esperávamos que com o novo governo as expectativas melhorassem, os investimentos chegassem, o Brasil crescesse. Os otimistas calcularam um modesto crescimento de 3% neste ano. Os economistas o abaixaram, pouco a pouco, e já está em 1,3%. Nosso Maranhão, também atingido pela crise nacional, ano passado já cresceu como rabo de cavalo, para baixo, menos -5,6% (o último ano de crescimento, 2014, foi mais 3,9%). Atualmente o nosso desemprego está mais alto, e apenas pessoas em desalento — que desistiram de procurar trabalho — já são 560 mil, segundo o IBGE.
Enquanto esse tsunami derruba tudo, o governo põe todas as suas fichas na aprovação da Reforma da Previdência, necessária, pois sem ela em 10 anos não teríamos dinheiro para sustentar os aposentados e nem como pagá-los. Eu acho que é uma pós-verdade, para usar uma linguagem atual. No meu governo a Previdência teve superávit em quase todos os anos. Por quê? Porque o Brasil crescia a 5% ao ano, e o desemprego era em média 3,86%. E empregados contribuem e dão recursos à Previdência. Assim, nosso maior problema é crescer, desenvolver. É a experiência do “saber feito”, para citar Camões. Até hoje não se repetiram os números de crescimento do meu mandato, PIB de 119,20%, e renda per capita de 99,11%. Quem quiser conferir vá na internet e veja os sites da Fundação Getúlio Vargas e do Banco Central.
E tudo mais está à espera da Reforma da Previdência, os investimentos estatais pararam: saúde, educação, energia e transportes intermodais. A Federação está desintegrada. Os Estados, falidos, uns mais, outros menos. Os políticos, no paredão, e o Bolsonaro debaixo de uma fuzilaria sem trégua. Numa síntese disso tudo está o Brasil. Ele é que apanha mais, aqui e lá fora.
Mas eu sou otimista e, quando presidente, afirmei quando veio o vendaval: o Brasil é maior do que qualquer problema, maior do que o famoso “abismo”. Nossa força, nossa riqueza, nosso povo vai superar tudo, sairemos do “mato sem cachorro” e voaremos em “céu de brigadeiro”.
Ainda uma vez o livro
ESTE ESPAÇO jamais pode ser usado para assuntos pessoais.
Aqui, não tenho o Senado para atrapalhar-me, e sim o gosto de escrever. E nada melhor do que escrever sobre o livro.
Sempre acreditei que o livro e o jornal jamais acabariam. Sempre que surge uma nova tecnologia eles entram na berlinda. Leio, citado pelo jornalista espanhol Antonio Milan, que em 1894 perguntaram a um especialista qual seria o destino do livro no futuro: “Se por livro entendermos as inumeráveis somas de papel impresso, encadernadas sob uma capa com um título, reconheço que a invenção de Gutenberg cairá em desuso”. Para ele a vez era da reprodução fonográfica.
Era o som que entrava com tudo.
Com o advento da sociedade de comunicação, essa discussão aumentou e o fim do livro foi anunciado. Agora é a vez do “e-book” e do “kindle”. Este é capaz de armazenar milhares de obras que podem ser lidas, anotadas e folheadas. É uma tecnologia mágica, uma dessas porções que os bruxos da Idade Média buscavam criar.
Ela não deve ser descartada, mas não substitui o livro. Creio que sua maior aplicação será para estudantes, que, em vez de uma mochila cheia de cadernos e tratados, vão poder ter todos os livros de consulta à mão. Mas o livro impresso é uma tecnologia mais avançada.
Não precisa de chips em placas que se encaixam uma às outras de modo a levar à tela os textos, necessitando de energia nas baterias, que devem ser alimentadas de tempos em tempos. O livro não precisa de nada disso, não quebra e pode cair.
Não sei se é por amor ao livro, mas tenho como dogma, desses de fanáticos, que eles continuarão, assim como os jornais, e jamais serão passados para trás. Há no livro o gosto, livro tem gosto, desde o táctil até o cheiro bom.
Um amigo, o grande tradutor francês Jean Orecchioni, certa vez me disse que leu num livro uma descrição tão realista do mar que ficou enjoado e teve de tomar remédio para o balanço dos barcos.
Por milhares de livros que possam acumular essas máquinas, elas jamais acumularão os tantos livros que existem num livro. Quantos livros há no “Dom Quixote”, o cavaleiro da triste figura? São milhares, e cada frase é um livro. São emoções que não acredito que se possa ter num livro eletrônico em que a própria tecnologia interfere em sua leitura, que tem de permanentemente manusear os botões de sua máquina.
Mas salvará definitivamente o livro a poesia. Ela não cabe numa tela e não precisa do mercado, porque seus leitores são os restritos poetas que fizeram o provérbio “Poetas por poetas sejam lidos”.
Sempre precisaremos desse companheiro, que, como dizia o poeta espanhol Manuel Machado, nos leve da “prosa ao sonho”.
Não sou mais Excelência
Afinal eu nunca gostei de ser tratado como “excelência”. O Regimento do Senado determinava que os funcionários tratassem assim os senadores. Quando ali cheguei, em 1971, o ascensorista me cumprimentou: “Excelência Senador Sarney”. Disse-lhe: “Meu filho, não precisa do excelência”. Mas, no tempo do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público, havia uma regra que dizia como deviam ser tratados os chefes. Vinham de senhor a ilustríssimo, a excelentíssimo, etc. e tal. Era sempre uma pegadinha nos concursos a preparação de um expediente a uma autoridade, com o desafio para o concursando de acertar a fórmula de tratamento.
O Presidente Bolsonaro resolveu acabar com isso. Agora todos são SENHOR. Acho bom. Sempre me perguntam como quero ser tratado. Se Governador, Deputado, Senador ou Presidente. Sempre digo que, quando estudei, o Eduardo Carlos Pereira, autor da gramática em que estudei, ensinava que as pessoas deviam ser tratadas pelo título maior que tivessem. Assim, meu interlocutor dizia: “Presidente.” Eu respondia que gramaticalmente estava certo, mas como que eu gosto mesmo de ser tratado é de “Sarney”, filho da Dona Kiola.
Sempre foi uma coisa difícil o modo de tratar as pessoas. Aqui no Maranhão, por exemplo, um dos maiores brasileiros, o negro Cosme, que fundou o maior quilombo do Brasil — e a primeira medida que tomou foi mandar construir uma escola para as crianças —, gostava de ser chamado de “Imperador das Liberdades Bentivis”. Bentivis era o apelido dos membros do Partido Liberal.
Na Revolução Mexicana, iniciada por Madero, continuada por Pancho Villa, Orozco, Zapata, o primeiro decreto foi muito prático e aliviou grandemente o país. É que as solenidades públicas duravam sempre várias horas. Começavam com as nominatas — e haja nomes a citar, títulos a dar às pessoas, “ilustre”, “grande amigo”, “excelentíssimo”, “ilustríssimo”, “generalíssimo” e por aí iam. Madero proibiu que qualquer solenidade durasse mais de uma hora e que das nominatas constasse o tratamento das pessoas, todos saudados como “ciudadanos”. Naturalmente um plágio da Revolução Francesa, que determinou o tratamento geral de “citoyens”. A Revolução Russa firmou o tratamento socialista de “camaradas”, aliás também usado pelos nazistas e franquistas (sem esquerdismo). Os cubanos lançaram o “compañero”.
Quando George Washington foi eleito presidente dos Estados Unidos, seu vice, John Adams, propôs que fosse tratado de “His Highness, the President of the United States and Protector of the Rights of the Same” (Sua Alteza, o Presidente dos Estados Unidos e Protetor dos Direitos dos Mesmos). Benjamin Franklin foi singelo: “Loucura absoluta.” Já Thomas Jefferson achou que era “a coisa mais superlativamente ridícula que jamais ouvi.” Afinal o Congresso ficou ao tratamento de “Mr. President”.
E agora, à moda brasileira, sem revoluções, o Bolsonaro resolveu nossa situação: eu perdi Excelência, mas todos ganharam: agora sou Senhor, Zé do Sarney e de Dona Kiola. Só falta limitar as solenidades a UMA HORA.
Aeroporto: belo sonho sonhado
É a realização de belo sonho o aeroporto de Macapá, inaugurado sexta feira. Quando fui eleito Senador pelo Amapá, sonhei dotar o Estado de uma infraestrutura capaz de transformá-lo num grande estado. Pensava alto. Nada de plantar couve, plantar carvalho, como dizia Rui Barbosa.
Em 1990 o aeroporto era modestíssimo, pequeno barracão de embarque. Apenas uma linha da Varig, representada por Zagury, servia a cidade. O porto de Santana era em Belém, de onde vinham as cargas para cá, em balsas. A estrada de asfalto que existia, a BR para o Oiapoque, tinha apenas cento e poucos quilômetros, até Ferreira Gomes, já construída por mim quando Presidente da República. Vim inaugurá-la juntamente com a ponte sobre o Rio Araguari, também feita no MEU GOVERNO. Energia, apenas quatro motores a óleo, que forneciam a Macapá eletricidade intermitente, com apagões mais da metade do dia.
Resolvi o problema da energia com os motores novos que consegui da Bahia, com o Governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, e depois, definitivamente, com o Linhão de Tucuruí. Consegui a transferência do porto de Belém para Santana e construímos lá o terminal de Contêineres para atender à Zona de Livre Comércio Macapá-Santana, obra que me custou grande luta. Assim, o Amapá tem hoje nela o motor de sua economia e a História do Estado se divide em antes e depois dela. Antes ia-se daqui para Belém para comprar, hoje de Belém se vem aqui para se abastecer. O que seria do Estado se não existisse?
Parti para consegui construir um novo aeroporto. Trouxe o Brigadeiro Adir, então presidente da Infraero, para fazê-lo. Mas naquele tempo havia uma longa lista e, para sermos prioridade, o governo do Estado tinha de participar da obra: apenas 10%. Mas o Governo alegou que não tinha recursos para participar. O meu sonho e o sonho do povo do Amapá foi adiado.
Quando Lula foi eleito, escolheu para presidente da Infraero o ex-Senador Carlos Wilson, que era meu velho amigo. Pedi a Lula o aeroporto novo para Macapá. Foi a primeira obra autorizada por ele. Carlos Wilson, para ajudar, mandou que o projeto básico fosse o mesmo que fora construído em Palmas. Quando me mostrou não tinha pontes que levassem o passageiro até o avião. Não concordei e o modificaram.
Foi feita a licitação. O consórcio que ganhou faliu. A obra parou e depois várias tentativas para termina-lo fracassaram por problemas dos construtores com o TCU. Continuamos lutando, até que conseguimos a retomada das obras, já então com recursos apresentados por emendas da bancada federal, que tiveram grande participação.
Agora está sendo inaugurado. Saúdo o povo do Amapá com meus parabéns. Eu amo este Estado. A ele devo um pedaço da minha vida. Aqui tenho grande amigos e sou grato ao seu povo.
Dizem os chineses que quem for beber água num poço deve lembrar de quem abriu o poço. Está no livro do Gênesis que no princípio era o verbo, o sonho.
Macapá agora tem novo ícone, o belo Aeroporto. Parabéns.
Velhos guerreiros
O tempo destrói tudo. E constrói. É dele que se faz a vida. Comovem, como exemplo, pessoas que, sendo o presente, são passos do passado. Lembro nossos velhos comunistas, intransigentes, ranzinzas nas posições inabaláveis. Como os santos, acreditavam em Deus e no Diabo. Contra este, matavam; por Aquele, morriam.
Essas reflexões ocorreram-me quando li uma entrevista de Santiago Carrillo, o velho líder comunista espanhol. Ele é da geração e da estirpe dos nossos Prestes, João Amazonas, Giocondo Dias, Álvaro Cunhal, o português. Isso significa vidas – umas mais, outras menos – de exílio, prisões, clandestinidade. Naqueles últimos dias, transcorreram na Espanha os 25 anos da matança da rua Atocha, 55, em Madri, começo da abertura política. O rei Juan Carlos tinha dado o sinal verde. Adolfo Suarez iniciou o processo. Um grupo de ultradireita invadiu o escritório dos advogados dos presos comunistas e assassinou cinco deles, cantando “Cara al Sol”, o hino franquista. Queriam deter a abertura.
Carrilo depõe: “A partir desse instante, tudo mudou”. Todos se uniram para enfrentar o radicalismo. Surgiu Moncloa e a legalização do Partido Comunista Espanhol. Quando se fala na democratização espanhola, esquecemos que foi marcada por um banho de sangue.
O Brasil fez a transição mais pacífica de todas. Lembro-me da legalização dos partidos comunistas. Hoje parece um assunto banal. Ser comunista despertava ódio e ameaças. Tancredo Neves, diante do problema, que era crucial para os militares, disse que a legalização do PC era um assunto do Judiciário, não do Executivo. Quando assumi o governo, minha conduta foi remover de uma vez todos os impasses. Tancredo, com sua força política e sua liderança, poderia ter estratégias de aproximação sucessivas. Eu não. Tinha de ganhar tempo para evitar reações. Assim, antes de qualquer discussão, surpreendi a todos recebendo Giocondo Dias, João Amazonas e os líderes dos partidos chamados fora-da-lei. A partir daquele instante, não havia mais o que discutir sobre partidos comunistas. Estavam incorporados ao processo político, com o aval do convívio com o presidente, o que acabava com o preconceito e com a discriminação.
Conheci então, de perto, Giocondo Dias, de quem Jorge Amado gostava muito. Homem simples, patriota e bom. E João Amazonas, que assumiu a sua aposentadoria, cercado pelo respeito nacional, uma vida de firmeza missionária. Quando conversava com ele, ouvia os passos de sua geração de resistência. Tempos depois, encontrei-o em um avião, já no esforço da velhice, ainda na paixão da luta. Era o mesmo idealista. Prestes, pessoalmente, vi uma só vez – foi visitar-me numa peregrinação que fez ao Congresso. A foto de sua visita foi aproveitada num filme que rodou nos quartéis para mostrar a cumplicidade dos comunistas com a chapa Tancredo-Sarney.
Vejo com o mesmo olhar Castelo Branco, Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto, Raul Pila, Juarez Távora, Austregésilo de Athayde, Barbosa Lima Sobrinho, Arthur Bernardes, Tristão da Cunha. De todos, esquerda ou direita, podíamos discordar, mas jamais deixar de respeitar suas idéias e louvar suas vidas. Nossos velhos são a nossa história.
Hoje, muitos falam da transição democrática citando pessoas com um sotaque de discriminações.
Eu, oleiro desse período, que amassei o duro barro da restauração das instituições, quando vi a Espanha lembrar seus massacres político-ideológicos, recordei a paz e a tolerância com que o Brasil voltou à democracia.
Tempo de orações
Começou a Quaresma? Não sei. Antigamente era período religioso fixo que se iniciava na Quarta-Feira de Cinzas. Hoje, depende. Na Bahia ninguém sabe bem quando acaba o Carnaval e, se o Carnaval não acaba, não começa a Quaresma.
No Maranhão, a Quaresma verdadeiramente só começa depois do “lava-pratos” na igreja de São José do Ribamar, o santo padroeiro do Estado, no domingo após o Carnaval, quando se reúnem todos os blocos e foliões, entre ressacas e devoções.
Nos Estados Unidos, de onde acaba de chegar o doutor Armínio Fraga, presidente do Banco Central, não há Quaresma porque não existe Carnaval. Em Veneza há um Carnaval lerdo, mas, como é tradição na Itália, na quarta-feira os sinos tocam em dobrados de tristeza chamando os fiéis às cinzas.
No Brasil muitas vozes pedem que diminua esse espírito de Carnaval permanente, mas a tendência é as Quaresmas eventuais diminuírem.
Afinal, o Carnaval é a preparação dos cristãos, permitindo-lhes uma concentração de alegrias, para enfrentar os 40 dias bíblicos de Moisés e Jesus Cristo, no deserto, mergulhados em oração e sofrimento, para chegar à semana da Paixão.
E as cinzas? São o simbolismo da dor, conforme os textos sagrados. Tamar, quando violentada por Amnom, rasga as vestes e passa “cinza na testa”. O rei de Nínive, avisado pelo profeta Jonas da destruição da cidade, deita-se “sobre cinzas”. As cinzas sempre lembram o infortúnio e o destino do homem: o pó, o nada.
E nada mais ausente do espírito carnavalesco do que a lembrança da morte. O Carnaval tem o dom de fazer esquecer tristezas. O país, nessa época, tira férias. Não só do trabalho, mas de suas preocupações e problemas. É tempo de tréguas. Não há governo nem oposição, nem Bolsa, nem dólar, nem recessão, nem inflação. Se os governos durassem os dias de Carnaval, seriam lembrados como os melhores governos, justamente porque no tempo de Carnaval a sensação geral é de falta de governo. O poder é exercido diretamente pelo povo nas ruas, numa manifestação de poder anárquico.
Afonso Arinos dizia que não se podia falar de poder sem pensar em pessoas. Esse é mais um fenômeno na área da sociologia do que na da ciência política. O poder é um grupo de pessoas que fala em nome de todos.
Senti isso quando ouvi uma passista de escola de samba dizer na TV, banhada em felicidade: “Hoje é meu dia. Eu mando e desmando, sou rainha, posso tudo, sou dona de mim e de todos”. Para concluir: “Dura pouco, mas sou total”.
Esse é o espírito do poder total da alegria. Nada mais democrático do que um dia de Carnaval; ninguém é rico nem pobre, nem chefão nem comandante. Todos estão nivelados por uma força interior de busca da felicidade momesca.
Como em tudo, a porta da perdição é mais larga do que a da salvação. Alguns em busca do Carnaval que invade e se prolonga na plenitude de todos os gostos. Agora, com ou sem Carnaval requentado, é enfrentar a Quaresma, tempo de meditação. E o Brasil está precisando muito de muita meditação, de preces e indulgências. o Amapá também.
Imprensa e governo
É um tema que jamais se esgotará as relações imprensa versus governo. Foi no século 18 que se estabeleceu uma grande regra sobre esse antagonismo: a primeira emenda à Constituição Americana, de autoria de Thomas Jefferson, que assegurava a liberdade de imprensa, contrabalançando a inviolabilidade da palavra dos congressistas.
Àquele tempo, a imprensa jeffersoniana era um panfleto-jornal, do tamanho do que é hoje uma página de livro, impresso em prensa artesanal, papel grosso e molhado. Duzentos anos se passaram. Hoje, tudo mudou. O jornal é o rádio, a televisão, o outdoor, a Internet e centenas de meios maiores, menores, imaginativos, grosseiros, o chamado instrumental da comunicação, não para contrabalançar a inviolabilidade da palavra do Legislativo, mas para influir sobre as pessoas, criar opiniões, induzir o consumo, os hábitos, monitorar e forçar decisões. Deixou de ser o quarto poder para ser aquele sobre o qual nenhum controle institucional é lícito existir.
Comunicação tem mais a ver com o conjunto das atividades econômicas do que com o governo. Mas há, por trás desse processo, um aspecto político que evidencia a obsolescência do sistema concebido por Montesquieu, que durou 250 anos e está em total desintegração. Agora, a discussão é saber: quem representa o povo? O Legislativo ou a mídia? A mídia já ganhou essa batalha. Há uma falência da democracia representativa que não pode concorrer com a massificação dos assuntos, em tempo real.
Nasceu um novo interlocutor da sociedade democrática: a opinião pública, que se expressa pela mídia, que é um dos maiores ramos econômicos mundiais e influencia todos os outros negócios públicos ou privados, direta ou indiretamente. Orienta o mercado financeiro, o consumo, os hábitos e tem o poder de acuar governos. Não há mais vínculo com a instituição jeffersoniana do século 18.
A legitimidade de governar no sistema representativo é dada pelas eleições. Essas são, hoje, um ritual meramente formal. As eleições envelhecem. São apenas um momento, um estado de espírito. Não é incomum, um mês depois de eleito, um mandatário perder a legitimidade. Esta reside na opinião pública, aferida por pesquisas de opinião.
Duas grandes revoluções ocorreram: o alto desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação e a libertação da mídia da publicidade governamental. O grande faturamento vem de setores particulares. Esses necessitam da mídia para ganhar dinheiro, e a mídia libertou-se do governo. A única ameaça que ronda seu poder é a Internet, mas a mídia já invadiu a Internet e com ela tem estreita relação.
O livro do senhor Mario Conti, “Notícias do Planalto”, acabou reacendendo essa discussão que, além do perigo da manipulação política, pesquisada com correção e trabalho exaustivo, nos remete a uma reflexão sobre um novo modelo, pós-democracia representativa, que certamente vai surgir, tema de efervescência entre os cientistas políticos. Acham estes que o Muro de Berlim não caiu somente sobre o comunismo, mas sobre o modelo político do Ocidente, abalado por dois setores novos: a mídia e as ONGs.