José Sarney

O horror via internet

Os dois atentados desta semana trágica têm uma advertência: a internet, como toda tecnologia, pode ser usada pelo bem ou pelo mal, para o bem ou para o mal. Assim, temos que ficar atentos aos desafios de evitar, ou frear, essa face.

O caso mais emblemático foi o duplo atentado terrorista da Nova Zelândia. Lá o assassino atingiu duas mesquitas. Preso pela polícia, disse esta monstruosidade: “Não era preciso mirar, eu tinha alvos à vontade.”

Antes de chegar à mesquita de Al Noor, em plena hora das preces, quando cerca de 400 pessoas rezavam, ele parou, olhou para a câmara que o filmava e citou o nome de PewDiePee — um cômico que nada tem a ver com o terror, até há pouco tempo o mais acessado youtuber, pedindo que subscrevessem seu site. Um truque para que a transmissão do crime ao vivo, via Facebook, fosse assistida por mais pessoas.

Dali ele partiu para a primeira etapa do atentado, atirando a esmo entre os fiéis e matando 41 pessoas — um dos muitos feridos morreu depois num hospital. Frio, voltou ao carro e dirigiu até outra mesquita, onde mais sete morreram.

Enquanto isso, na internet, ocorria uma caça de gato e rato: a corrida entre os serviços do Facebook para fechar os links e as reproduções dos atos e sua reação em cadeia, como numa bomba nuclear, logo continuada em outros aplicativos. Mas o papel da internet no atentado não se limitou à exposição. Um manifesto do terror vinculou sua inspiração aos cultos da extrema-direita, citando o nome dos principais sacerdotes dessa religião, já antiga, mas agora renovada, da morte cega.

O assassino usou cinco armas, de pistolas a rifle automático. A Primeira-Ministra da Nova Zelândia foi enfática: as leis sobre armas do país vão se tornar mais rígidas, para aumentar a segurança. A nação do Pacífico é muito pacífica, e os 49 mortos desta trágica sexta-feira bateram, num só dia, seu total anual de homicídios.
Se o número de mortos lá foi maior, a nossa tragédia de Suzano nos fere mais o coração. Esses dois rapazes que também se prepararam frequentando páginas de doutrinação não agiram contra o “inimigo” do outro lado, mas contra os mais próximos de si. O tio que queria que um deles estudasse, os professores que representavam a educação, os colegas de bairro e escola.

Na internet treinaram nos vídeo-games e compraram parte, ao menos, de suas armas. Nós, também, temos que denunciar a facilidade do acesso às armas de fogo, responsável por nos colocar no terrível destaque mundial de país com mais homicídios do mundo.

E, no Maranhão, por exemplo, é necessário que se mude com urgência a política de segurança. Não é possível que os números mensais sejam equivalentes ao total anual de mortos da Nova Zelândia.

Ajoelhou tem de rezar

O Tempo da Quaresma começou. São os quarenta dias que antecedem a Páscoa, a Ressurreição, que, como diz São Paulo, é a essência do catolicismo, chegando mesmo a afirmar que “sem ressurreição não há cristianismo”. Este número de quarenta, cheio de significado no Antigo Testamento, também está ligado a várias passagens da vida de Cristo. Seus pais José e Maria levaram quarenta dias para levá-lo ao templo, quarenta dias, como dizem S. Lucas e S. Mateus, levou Jesus no deserto meditando antes de entrar em sua vida pública, e quarenta dias levou o Cristo para subir ao Céu depois da Ressurreição.

A Quaresma também é tempo de conversão dos ateus, dos agnósticos, dos ímpios e dos que seguem toda forma de não acreditar em Deus.

Marx dizia que a religião era o ópio do povo, porque o levava a esquecer os problemas materiais e a se dedicar a uma esperança vã de um ser superior, que lhe havia dado a graça de criar o mundo e criar a nossa vida.

No Maranhão estamos vendo o milagre da conversão dos comunistas, renegando o materialismo para acreditar em Deus, e ajoelhar-se para receber a benção quaresmal. São raros os milagres que acontecem em terras nossas, como esse a que nós estamos assistindo. Quando o Maranhão se formou, Nossa Senhora transformou a areia da praia em pólvora. Agora nós estamos vendo o círculo de pastores evangélicos impondo as mãos sobre as autoridades para que elas cumpram o ditado popular: “Ajoelhou tem de rezar”. E eles, contritos, rezaram, e na quarta-feira, foram receber as cinzas, quando o sacerdote proclama as palavras eternas que conscientiza os homens no ritual cristão: “Memento, homo, quia pulvis es et tu in pulverem reverterem.” — “Lembre, homem, que sois pó e em pó vos haveis de tornar.”

Isto nos deu uma visão de homens contritos, de tal modo que o Prefeito baixou tanto a cabeça que parecia mais um daqueles presos da Lava Jato, escondendo o rosto para não ser reconhecido, com o japonês ao lado.

E a conversão aconteceu, saíram de casa, brincaram o Carnaval, não deram dinheiro para os outros brincarem e se recolheram à meditação, deixando o comunismo, Marx e quejandos chupando o dedo, enquanto eles entravam na área das bem-aventuranças, passando pela ala dos santos e das virgens.

O glorioso poder dos fariseus que fingiam e a quem Jesus Cristo apostrofou: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos. Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia!” (Evangelho segundo São Mateus 23, 27-28 — Palavras de Jesus Cristo!)

Depois do dilúvio, cessada a chuva, foram necessários quarenta dias para que as águas baixassem e os homens — e os outros animais — pudessem pisar em terra firme. É o tempo dos milagres.

Oh! Maranhão de Nossa Senhora da Vitória, bravos agradecemos a conversão dos infiéis e que abandonem o ódio e as penas de pavão.

Ajoelhou, tem de rezar em grego: “Kyrie eleison! Christe eleison!”

Eu te conheço Carnaval

Eu tinha um tio Ferdinand, funcionário do Banco do Brasil, que era completamente louco pelo Carnaval. Para ele, o reinado de Momo começava no dia 31 de dezembro, quando nos costumes do velho Maranhão, abriam os bailes populares, de dominó, em que as mulheres reprimidas pela discriminação tinham uma oportunidade de, sob o anonimato, ”rodar a baiana”, e outros, homossexuais banidos e martirizados pela segregação, vestidos de mulher, soltar “a franga”. O baile de máscara acabou e foi até uma marchinha do tempo do Cafeteira (Cafeteira não quer/ máscara neste Carnaval!) e começou a modernidade menos carnavalesca e mais luxuosa das escolas de samba.

Dos bailes populares o mais célebre era do Moisés, uma figura simpática e alegre que conhecia todos os segredos e desejos que nascem e morrem no Carnaval. O Moisés todo ano abria o seu baile, sempre num sobradão desalugado, com grande pompa. Não só meu tio, meu pai e eu também, éramos seus fregueses. Eu menos do que eles, porque sempre fui retraído para a folia.

Outro dia, escrevi aqui sobre os folguedos populares e sobre a identidade brasileira e afirmei que o forte do Brasil era a música e incluí o Carnaval entre as referências maiores. O Carnaval é a mais alta manifestação da cultura da alegria do brasileiro, momento para a picardia e o riso, além de outras coisas boas que ele desperta. Com algum exagero, hoje, tendem alguns radicais religiosos e o Ministério da Saúde a julgá-lo um bacanal. Veja-se os anúncios que o Ministério divulga nas campanhas dos preservativos: “Tenha um Carnaval seguro, use a camisinha”. É até uma negação do significado de Carnaval, que todos afirmam vir do latim CARNE VALE, adeus a carne, porque anunciava um período que precedia a quaresma, tempo de jejum, inclusive do corpo.

Não sei por que me lembrei associar este Carnaval ao meu tio Ferdinand. Ele me traz à memória o seu bloco “O Bando da Lua”, sua participação no Corso lendário de domingo gordo, quando desfilava no carro da Chicó, entre aquelas mulheres de saias grandes colocadas para fora das carrocerias dos carros enfeitados. Seu espírito boêmio incorpora uma estória que fazia parte da história da nossa família. Um tio-avô nosso morreu no sábado de Carnaval, em São Bento. Ele recebeu um telegrama com a triste notícia. Leu e disse à esposa: “Guarde este telegrama e não diga nada a ninguém. Na quarta-feira de cinzas abra e comunique os amigos. Feche a metade da porta – como era costume – e vamos começar o luto”.

E esbaldou-se na farra durante o Carnaval. Algum abelhudo descobriu a morte do velho e cobrou dele, que pulava e não cantava no Bloco: “Canta Ferdinand!”, e ele respondia: “Não posso, estou de luto”.

Todos à folia.

Dom Motta E O Horário De Deus

No Amapá não existe mais horário de verão, sentido pela população apenas nas mudanças dos programas de televisão. Mas quando ele começou, na década de 1960, foi um inconformismo grande. Eu era governador do Maranhão em 1965, o último eleito diretamente pelo povo depois do movimento de 1964.

O povo chamava o horário de verão de horário novo e o outro, de horário velho ou “horário de Deus”. Era uma confusão muito grande porque ninguém obedecia ao relógio. Quando se marcava um encontro, vinha a primeira pergunta: “É no horário novo ou no horário de Deus?”

Senti isso na própria carne de maneira dramática, pois àquele tempo tínhamos ainda, no Natal, a Missa de Galo celebrada à meia-noite. Fazia parte dos costumes e dos respeitos a presença do Governador e do Sr. Arcebispo, àquele tempo, Dom João Motta, irmão do meu querido amigo e depois colega da Academia Brasileira de Letras, o grande poeta Mauro Motta. À meia-noite, cumprindo o horário de verão, cheguei à Igreja da Sé e lá sentei-me com minha mulher no lugar que nos era reservado.

E aí é que vem a história. Deu meia-noite e quinze, meia-noite e trinta, quinze para a uma, e o Arcebispo não chegava. Fiquei preocupado e com medo de que tivesse acontecido alguma coisa com ele.

Eis que, calmamente, então, Dom Motta veio entrando na Igreja, me cumprimenta na primeira fila, e eu, ingenuamente, pergunto: “Houve alguma coisa com o senhor?” Evidentemente, me referindo à demora. Ele, calmamente, me respondeu: “Ah, o senhor veio no horário novo? Eu vim no horário de Deus.”

A verdade é que, no Norte e Nordeste, ninguém se conformava com essa mudança de horário. Antônio Carlos Magalhães, com um projeto de lei, acabou com ele no Nordeste e na Amazônia. Nessas regiões, era uma confusão danada em todas as solenidades e festas. Muita gente perdia avião, enterro, batizado e casamento.

A justificativa de sua existência era a do consumo de energia e de a luz do sol entrar pelas primeiras horas da noite deixando as luzes públicas e residenciais apagadas.Pelos cálculos que tenho lido, ao longo desse tempo, a economia mensal tem sido de cerca de 5%.

Hoje, dezesseis de fevereiro, à meia-noite, no sul, eles vão aumentar os relógios em uma hora. Deus queira que, com o novo horário, desapareça o urubu que pousou na nossa sorte neste início de 2019. Brumadinho, restos de Mariana, jogadores do Flamengo queimados, jornalista Boechat vítima de lamentável acidente aéreo, Presidente Bolsonaro operado — graças a Deus já voltou —; o Fluminense ganhou do meu Flamengo de 1 x 0, o meu Bode Gregório suou para bater no Santa Quitéria, e eu, não encontrando assunto, estou malhando o horário de verão.

Que Deus nos afaste essa onda de tragédia!

As Migrações Massivas

Desde 1992, pertenço a um órgão internacional de ex-presidentes da República e Chefes de Governo que se chama InterAction Council, composto de quarenta membros. Foi fundado pelo grande estadista japonês Takeo Fukuda, ex-Primeiro Ministro do Japão, e por Helmut Schmidt, Chanceler da Alemanha e um dos grandes homens de Estado da Europa, conhecido por seu talento e suas virtudes pessoais. Da América Latina eram três escolhidos: Miguel de la Madrid, do México; eu, José Sarney, do Brasil; e Raúl Alfonsín, da Argentina.

Ali convivi com grandes personagens mundiais. Do InterAction faziam parte Carter, Clinton, Valéry Giscard d’Estaing, Trudeau, o próprio Fukuda, Helmut Schmidt, Mikahil Gorbachev, Lee Kuan Yew, Felipe Gonzaga e tantos outros grandes homens. Discutíamos duas vezes por ano, tendo como convidados grandes conferencistas (McNamara, Kissinger…), e a temática era sobre assuntos mundiais da atualidade.

Mas recorro a essas lembranças para recordar a genialidade de Helmut Schmidt, o maior orador que conheci, de quem disse Élio Gaspari que, quando falava, era como se ouvíssemos um concerto de Bach. Numa dessas reuniões o tema era Os Problemas do Futuro da Humanidade: doenças desconhecidas, armas nucleares, vetores etc.

Helmut Schmidt propôs: “migrações massivas”. Isto há 30 anos. Ele, como profeta e homem público visionário, defendeu a introdução desse tema, dizendo que no futuro, com o fim das barreiras físicas e a formação de blocos regionais, as populações iam mover-se em busca de melhoria de vida, fugindo da miséria, do confronto de civilizações, das guerras, das perseguições religiosas e da insustentabilidade de alguns países, inclusive em balanço hídrico e alimentação — o que já se verifica, especialmente em alguns países da África.

Minha intervenção foi sobre armas nucleares: “enquanto existir uma ogiva nuclear na face da Terra, a humanidade estará sempre em perigo”. Hoje, quando assistimos ao começo de uma nova corrida armamentista, essa perspectiva nos assusta.
O que eu queria ressaltar é a genialidade de Helmut Schmidt ao prever as migrações e suas consequências. Hoje a Europa é invadida por refugiados do Oriente Médio e da África. Diariamente assistimos à tragédia da travessia do Mediterrâneo, com navios cheios de migrantes desesperados e quase morrendo. Podemos vê-los aqui mesmo na América Latina, com as migrações vindas do Haiti e da Venezuela, além das menores, de bolivianos, paraguaios e outros.

Pelo meu lado, agora que Trump e Putin acabam com os tratados de contenção nuclear INF (Intermediate-Range Nuclear Forces), de 1987, e START (Strategic Arms Reduction Treaty), de 1991, renovado em 1993 e 2010, e a Rússia desenvolve um míssil nuclear com cinco vezes a velocidade do som, em resposta ao anúncio americano de que desenvolve bombas nucleares de pouca potência (as velhas “bombas táticas”, que poderiam ser usadas mais facilmente por terem “danos limitados”), volto a ter medo de que o mundo possa acabar na insensatez dos homenzinhos e no inferno do holocausto nuclear.

A Venezuela num abismo

Estamos assistindo à situação trágica e triste da Venezuela. Não é com satisfação que invoco ter sido a primeira voz a levantar-se no Brasil, em discurso no Senado, contra os atos ditatoriais iniciais de Hugo Chávez, fechando rádios e televisões, começando o esmagamento da democracia.

A começar pela falsidade de chamar o seu movimento de “democracia socialista bolivariana”, uma vez que Bolívar morreu em 1828, sua luta era contra as monarquias e a favor da implantação de repúblicas na América do Sul — e a palavra socialismo aparece pela primeira vez nas enciclopédias em 1838, dez anos após à morte do Libertador. A escalada para a morte do estado de direito venezuelano prosseguiu com a prisão dos líderes oposicionistas, lembremos Lopez e Ledezma e suas heróicas mulheres Lilian e Mitzy correndo o mundo para sua libertação.

Felipe González, ex-primeiro-ministro da Espanha, meu amigo, com uma carta minha de solidariedade, foi à Venezuela para integrar-se aos protestos contra a ditadura que ali se implantava. Tragédia maior estava por ocorrer: Chávez, que rejubilava-se de ficar no governo até 2013, morre, e o substitui essa figura bizarra e grotesca de Maduro. Chávez tinha um objetivo, que ele resumia no seu lema “pátria, socialismo ou morte”, e em querer que a Venezuela se tornasse potência militar do continente. Nos tempos áureos do petróleo de preços altíssimos, compra 60 bilhões de dólares de armas, mais de 160 caças russos, 600 mil bombas guiadas por GPS, estações de radar chinesas ultra-sofisticadas, 138 navios, 15 submarinos, 100 mil rifles AK-103, distribuídos às milícias, e o direito de produzi-los.

Perguntava eu no Senado, àquele tempo: “Já que habitamos um continente pacífico, armar-se desta maneira contra quem? Para quem? Com que objetivo?” Evidentemente que tamanho poderio militar colocava o Brasil numa situação de inferioridade no continente e vulnerável em sua soberania. Denunciei que seu objetivo era retomar o território de Essequibo da Guiana — questão de limites da qual o Brasil participou e em que perdeu, no laudo do Rei da Itália, a parte do nosso território que levava nossa fronteira à bacia do rio Essequibo. Logo, uma guerra dessa natureza, que agora Maduro confessa ser um de seus objetivos, nos oferece uma visão do perigo que representa para nós uma ditadura dessas na Venezuela.

Chávez ainda dizia “a revolução na Venezuela é pacífica, mas não desprovida de armas”, o que se inspirava na frase de Lenine quando afirmou, na revolução de 1917 com o partido único: “Camaradas, agora não necessitamos de oposição: é melhor discutir com os rifles.”

Não deixemos passar essa oportunidade: o continente, bem como todas as nações civilizadas, deve se unir para encontrar uma solução pacífica para retirar a Venezuela dessa ditadura cruel e restituir o estado de direito ao país, que está à beira de uma guerra civil e vive uma catástrofe humanitária.

A indignação necessária

Não há olhos no Brasil que não tenham tido lágrimas ou vontade de tê-las com a tragédia da barragem de Brumadinho: os mortos sufocados por uma brutal e avassaladora corrente de lama e pó de ferro; a irresponsabilidade daqueles que não foram capazes de pensar que um dia isso poderia acontecer; a burrice e a estupidez das instalações administrativas e refeitórios a jusante da barragem… Para lembrar Fernando Pessoa, “quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram!” Quantas noivas perderam a esperança e o sonho de um bem-amado, quantas viúvas, qual Penélope, esperam em vão o retorno dos seus maridos?

Uma cidade condenada à morte e guardando para sempre a memória desses mortos. Os anos que passarem serão incapazes de sepultá-los ou esquecê-los. E a pergunta aterradora, que nos revolta qualquer que seja sua resposta — de quem é a culpa? E a dor de ver a procura dos corpos, procurados na esperança de poder dar-lhes uma sepultura cristã? E a dor dos olhos dos seus amantes e amados, na saudade de ver de novo?
Mariana ainda sangra, e Brumadinho sangra mais ainda. Uma, sangue da natureza e de gente; outra, hemorragia de gente, sofrimento, dor e morte dos rios Doce e, agora, Paraopeba; águas que não saciarão mais a sede de ninguém e se tornaram assassinas dos peixes e dos sapos. Ali não poderão mais beber as capivaras, os veados, as vacas e os bois. Tudo é lama, água e barro, pau e ferro.

Repetimos a pergunta amarga: de quem é a culpa?

Dos que pensaram que ali podiam barrar águas de rejeitos sem temor de que um dia poderiam destruir tudo; dos que, pela ganância, julgaram que era mais importante ganhar dinheiro, buscando o mais fácil em vez do mais seguro. Dos que autorizaram esse caminho. Dos que autorizaram essa torpeza. Dos que pensaram mais em ganhar mais, do que na vida e na morte dos que ali iam trabalhar, e escolheram aquelas montanhas e belíssimas paisagens ouvindo o silêncio das florestas e das águas para buscar repouso em pousadas, sítios, lugar de descanso e meditação.

Brumadinho é uma tragédia e, mais do que uma tragédia, uma dor que dói hoje, vai doer amanhã e vai doer para sempre. Que ela seja um símbolo a ser seguido, e não esquecido, como Mariana, e que todas as barragens feitas e alicerçadas nessas mazelas sejam transformadas em obras seguras de engenharia, embaixo das quais todos possam dormir sem medo de ser tragados por elas.

Não me apresentem desculpas: não há desculpas. Não busquem argumentos: eles não existem. Grita mais alto a realidade dos fatos: que se enterre com os mortos de Brumadinho a falsa engenharia, a ganância, e que aflore daí, como exemplo, a punição de todos os culpados, pois ninguém resgatará mais a vida dos que morreram. A revolta do Brasil é justa, a indignação do Brasil, muito mais. Junto-me à dor de todas as famílias dos que morreram.

O leite da loba

O mundo inteiro ficou comovido com a história inusitada de um menino de rua, no México, que, fugindo de casa, perdido e sem nada para se alimentar, despertou o afeto de uma cadela -talvez da raça itzcuintl, sem pelos, que os astecas criavam para comer-, que passou a amamentá-lo ao lado de seus filhos.

Diferente foi a índia guajá, que também comoveu – e teve fotos em jornais e revistas de toda parte – ao entregar o seu peito a um porco-do-mato que, como o menino, apareceu perdido em sua palhoça. Num caso e noutro, a mulher e a cachorra valeram-se do sentimento da maternidade e do fato de o menino e o macaco terem fome.

História parecida com essa realidade de interação entre homens e bichos foi a saga de Rômulo e Remo. A lenda relata que ambos eram filhos do deus Marte com a troiana Réia Silvia e tinham sido jogados no rio Tibre. Chegando à margem, também com fome e frio, foram mamar numa loba, uma loba selvagem, mas de bons sentimentos, visão histórica e leite forte. Tão forte que os amamentados fundaram Roma, Rômulo fez muitas estripulias guerreiras e a loba virou estátua-símbolo da cidade -tão iconográfica que uma cópia dela veio parar em frente ao Palácio do Buriti, em Brasília, onde milhares transitam e vêem aqueles dois meninos mamando na bichinha.

No Brasil, temos aquele dito popular para marcar pessoas capazes de tudo, que diz: “Tem coragem de mamar em onça”, ou, se é sobre esperteza, “Tirar leite de pedra” ou “de cobra”.
Ultimamente, com as campanhas de amamentação, não se pode dizer que é por falta de seio materno que as crianças estão mamando em bicho. Passou aquele modismo capenga de que amamentar prejudicava a estética feminina. Ao contrário, não há evidências científicas de que boca de menino destrua a beleza dos seios de jovens mães, aconchego tão terno que, para dizer da idade de um bebê, a referência é de que “é menino de peito”.

Eu, de minha parte, criei o Programa do Leite, que chegou a atingir 8 milhões de crianças por dia e, graças a Deus, não vi notícia àquele tempo de nenhum menino tentando mamar em ovelha, cabra ou seja que bicho for para matar a fome.

O que havia de triste naquela história do menino do México não foram os peitos da cachorra, mas a tragédia dos meninos de rua, que enchem as cidades do mundo inteiro, famintos, doentes, abandonados. Como retrato desse fato, nada mais dramático e comovedor do que a figura que ficou símbolo da fome em Uganda, aquela mater dolorosa com o filho exangue no colo, o olhar triste para aquele corpo, que não tinha mais carne, só pele sobre os ossos. A essa imagem, que nos fez pensar no destino do gênero humano, junta-se, hoje, a paisagem dos meninos aidéticos africanos, amontoados, esperando o fim sem remissão.

Voltando ao leite, enquanto nos revoltamos com o problema da infância abandonada, temos aquela turma catalogada pelo humor brasileiro: “Mamando nas tetas do Tesouro Nacional” ou, como diz o Elio Gaspari, na Viúva.

O enterro da verdade

Falei, na última semana, da questão da verdade. Continuo minhas reflexões. Citei o grande Unamuno — e lembro o mais espanhol dos pintores, Goya.
Goya foi o retratista insuperável da corte espanhola, mas sua obra tem uma vertente de crítica social que cresce a partir da Revolução Francesa. As guerras pela independência e contra o absolutismo no começo do século XIX foram brutais. Ele as comenta em “Los desastres de la guerra”. No fecho da série, depois das violências dilacerantes que mostra, uma gravura se intitula “Murió la verdad”: o corpo de uma jovem de seios nus ilumina a cena, sendo enterrada por figuras grotescas, a Justiça caída ao lado, suas balanças no chão. A jovem é La Pepa, apelido da primeira constituição espanhola, feita em Cádis, que vigeu de 1812 a 1814 e de 1820 a 1823 — e no começo de 1822 foi, por um dia, a primeira constituição do Brasil. Em 2012, na comemoração dos 200 anos de La Pepa — que marcou profundamente o século XIX e foi mais influente na América que a constituição francesa —, fui convidado para fazer a conferência de abertura do grande evento. Foi uma manhã memorável porque a solenidade se realizou no Oratório de São Felipe Néri, a capela barroca onde foi escrita a constituição, tendo ao fundo, ornamentando o altar-mor, lindo quadro da Imaculada Conceição, considerado uma das melhores obras de Murillo.

Para Goya a verdade era o símbolo dos grandes princípios políticos da Revolução Americana, cristalizados por Jefferson como direito a vida, liberdade e busca da felicidade, e da Revolução Francesa, liberdade, igualdade, fraternidade.

Dois professores de Harvard, Levitsky e Ziblatt, estudaram Como as Democracias Morrem. Identificaram alguns padrões: a rejeição pelos políticos das regras democráticas do jogo, a negação da legitimidade aos oponentes políticos, o encorajamento à violência e as restrições às liberdades, inclusive de imprensa. Cada um deles, por si, atestaria que a democracia está em risco. No cenário norte-americano, no último século, só Nixon se enquadrara num deles — e, agora, Trump se encaixa nos quatro. E um dos seus principais instrumentos seriam as fake news.
Dizia eu, falando sobre a comunicação no mundo digital, que nele “as fronteiras entre o original e suas cópias parecem ter desaparecido. Ao não distinguirmos mais os originais das cópias, todo o problema da alteridade parece se complicar. O que era antes verdadeiro, vaga hoje na incerteza. As informações ganham valor de verdade simplesmente por estarem na internet.”

É a antiga brincadeira do telefone sem fio, em que uma frase é repetida ao longo de uma roda e, ao chegar ao primeiro autor, já é outra. Na internet, uma informação alcança milhões de pessoas num instante, sem exame crítico, aceita por vir da pessoa ao lado, diante da qual desarmamos os filtros do senso crítico. A verdade é atestada pela proximidade.

A interferência russa na eleição americana, que é fake news, segundo Trump, mas não é fake news, é verdade, foi feita não com uma grande mentira, mas com milhares de pequenos incentivos nas redes sociais aos preconceitos de grupos: aos carvoeiros desempregados, aos criacionistas desconfiados da ciência, aos brancos que têm medo de pretos, aos pretos com medo dos imigrantes… As fake news são pedrinhas lançadas morro abaixo que levam de roldão pedras, matos, florestas inteiras.

Mas nós devemos também meditar sobre que dizia o Padre António Vieira: que o Maranhão era a terra da mentira — e como tem mentira!

Sei quem ela é

m senhor, de certa idade, chegou ao posto de saúde para fazer um curativo na mão. Estava agoniado, mas não por causa do ferimento e sim porque estava com pressa.

– Tenho um compromisso e já estou atrasado, disse o homem.

– Será que não pode esperar alguns minutinhos?, perguntou a enfermeira.

– Sabe o que é, continuou o homem, todas as manhãs eu vou ao Asilo Santa Lúcia visitar a minha esposa e tomar café com ela. Ela já está lá há alguns tempos, pois sofre de Alzheimer.

A enfermeira ficou encantada com a serenidade do velho e, quando acabou o curativo, disse: – Pronto, agora pode ir. Será que a sua esposa vai ficar zangada por alguns minutos de atraso?

– Com certeza não, respondeu o senhor, ela já não sabe que horas são; nem mesmo sabe quem eu sou. Faz quase um ano que não me reconhece. A enfermeira perguntou, então, por que tanta necessidade de ir ao asilo todos os dias e no mesmo horário. Ele respondeu:

– Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei muito bem quem ela é!

Com o domingo do Batismo de Jesus no Rio Jordão junto a João Batista, encerramos o tempo do Natal. A página do evangelho de Lucas retoma a apresentação de João de si mesmo e de Jesus. Ele, o Batista, batiza com água, mas o mais forte que virá “vos batizará no Espírito Santo e no fogo”. Essa será a missão de Jesus, mas para saber quem ele é precisa a voz do Pai: “Tu, és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”.

Já entendemos que existem várias formas de conhecimento. O mais imediato é o intelectual que, geralmente, vem do estudo ou da experiência prática. Na literatura, encontramos o conhecimento do “coração”, quando alguém é “cativado” pelo outro ou pela outra, como lemos no Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. No Antigo Testamento se fala de “sabedoria” e no Novo de uma revelação e de um “conhecer” que são dons de Deus Pai, palavras e gestos de Jesus, o Filho, e frutos do Espírito Santo. Com isso, entendemos algo simples. Têm “conhecimentos” que ficam na cabeça e não passam nunca no coração e na vida. Têm outros, porém, que envolvem, em diferentes graus, a pessoa toda: inteligência, sentimentos e decisões a respeito do próprio agir. Tem crist ãos que se consideram tais, porque leem a Bíblia, conhecem a Doutrina Cristã e as normas da Igreja. No entanto, Jesus Cristo não é um retrato ou um crucifixo pendurado na parede ou no pescoço, não é um livro para ler e, menos ainda, um conjunto de leis. Ele é uma pessoa.

Cada pessoa é alguém que deve ser encontrado e descoberto através da convivência, da familiaridade, da escuta. O mesmo acontece para cada um de nós: é mais o que não sabemos de uma pessoa, daquilo que aparece aos nossos olhos ou da ideia que nós fazemos dela. Por isso, os esposos nunca acabam de se conhecer e os pais nunca devem pensar que conhecem os seus filhos. Sempre tem algo de novo e, às vezes, até nós nos surpreendemos conosco. Não sabíamos que tínhamos aquele talento ou aquele defeito. Mas não devemos ter medo, ao contrário. Talvez essa seja a beleza da vida: ninguém nasce programado ou pré-fabricado, temos muitas chances de nos ajudarmos uns aos outros a construir as nossas personalidades. É um trabalho maravilhoso e desafiador que nunca acaba. Igualmente, para quem não quer ficar cristão só pela “cabe ça”, mas quer sê-lo também pelo coração e pela vida, é necessário sempre renovar e melhorar o próprio, digamos, entrosamento com Jesus.

Como ser seguidores de quem não conhecemos bem? Como “arriscar” sobre a sua palavra? O “batismo” de Jesus marca o início da sua vida pública. Com o nascimento, ele assumiu a solidariedade com a natureza humana, agora, com a sua vida, paixão, morte e ressurreição, vai transformar os acontecimentos em história de “salvação”, de reconciliação entre Deus e cada pessoa de boa vontade. Mais nada do que é humano ficará fora do projeto de amor do Pai, nem o sofrimento e nem a morte. Somente quem se envolve e ama consegue entender um pouco da missão de Jesus. Vamos acompanhá-lo, vamos conhecê-lo mais. Sem ele, nem nós sabemos mais quem somos.