José Sarney
De Péricles às batatas
Ao discursar nas Nações Unidas, em 1989, tive a oportunidade de afirmar que “o caminho do desenvolvimento passa pela democracia”. A definição mais simples e mais antiga dela é a grega, cujos princípios básicos estão no discurso de Péricles, grande general e orador, aos mortos na guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta.
Ali ele define democracia pela junção de duas palavras gregas: governo do povo. E define a obediência às leis (estado de direito, que James Harrington, citando Aristóteles, sintetizou, milênios depois, como governo das leis e não dos homens); igualdade de todos; democracia representativa, isto é, não ser o governo de um só homem, mas de muitos, sempre escolhidos pelo povo etc. Lincoln, na beleza com que escrevia, aprimorou sua definição para: Governo do povo, pelo povo e para o povo; já Churchill, com cruel realismo, disse: É a pior forma de governo, exceto todas as outras.
Esta introdução é para dizer que as eleições são a essência da democracia. É por meio dela que o governo democrático se constitui. Por isso tem que ser limpa, sem deformação da interferência do poder político, econômico, militar e da fraude. Até hoje não conseguimos afastar essas ameaças, embora contra elas lute-se sempre.
Tivemos uma eleição atípica no último dia 7. E o resultado também foi assim. O país vive um caos institucional — como no universo de Einstein, sempre em expansão, os poderes ocupando espaços veloz e autoritariamente, um querendo engolir o outro. Por outro lado, tornou-se um país dividido, marcado pelo ódio e pela pregação da divisão de classes, pela insegurança jurídica — desapareceram a coisa julgada e o direito adquirido —, por leis circunstanciais e casuísticas desintegrando o estado de direito. Nesse clima, com trinta e nove partidos, uma Câmara de Deputados atomizada e o Senado também, sem falar na qualidade da representação, é impossível governar.
Mas fico feliz, pois, esquecendo tudo isso, sei que o País vai superar suas septicemias e vamos viver um Brasil que se contorce, mas que vai ressurgir.
Muito pior vivi eu, em 1985, quando Tancredo morreu e assumi a presidência da República. Mas comandei a transição, deixei a Democracia restaurada e o país andando.
Infelizmente, a Constituição de 1988, feita com os olhos no retrovisor, sem ver a sociedade do futuro, tornou o País ingovernável, e um anarcopopulismo levou-nos ao caos que atravessamos.
Como dizia Machado de Assis: aos vencedores as batatas. Mas que tenham sorte. São meus votos.
É chegado o momento de sermos bilíngues
A propósito do artigo de Juan Arias sobre o espanhol e o português como duas línguas irmãs, devo dizer que o texto é antológico, embora tenha minhas ressalvas sobre o “ão”. É muito autoritário e bem lusitano. Me encanta o ritmo e o doce deslizar, como águas que passeiam, do castelhano. Afinal é difícil compará-las. São xifópagas.
A aventura da língua portuguesa é notável. Embora Camões diga ser “a última flor da Lácio”, na verdade era um dialeto do espanhol, que não tendo terra para falar, ganhou os mares, indo até Nagazaki,onde recolheu palavras e deixou palavras. Enriqueceu-se e também influenciou a sintaxe de idiomas como o papiamento e o iorrobo, além de marcar o vocabulário de numerosos outros idiomas do iorubano ao japonês e o crioulo de Cabo Verde, Guiné, São Tomé, etc…Foi língua de Corte na África, nos reinos do Benim, Congo e Warri, assim como o francês no século XIII, tinha sido na Europa.
Pois bem, o português quando os oitenta anos do domínio português das navegações entrou em declínio, encontrou as terras do Brasil e seguiu sua vocação andante. Matou as línguas nativas, a língua geral do novo território, o neengatu, e só parou no contraforte dos Andes. E aí o que encontrou? O espanhol de onde tinha se separado. EL PAÍS nos encontra e nos integra. Agora é chegado o momento de sermos bilíngues, já que caminhamos para uma coisa horrível, o portunhol ou o espanholês, uma agressão ao português e ao espanhol. Infelizmente, muitas vezes sou obrigado a socorrer-me desse monstro. Quando Presidente tentei colocar o espanhol no currículo de nossas escolas do ensino Médio.
A ética e a maria-mole
Foi um político, desses que trabalham com ideias, Cícero, quem fez da moral o ponto fundamental de sua extensa obra filosófica. Seus livros, sobretudo “De Officiis”, são tratados que ensinam a supremacia dos valores éticos. “Um dia só, vivido honestamente, é preferível a uma imortalidade imoral”, dizia ele.
Não podemos generalizar à classe política a conduta de maus políticos. Nem achar que é monopólio destes o que acontece nessa região cinzenta dos costumes.
A ética saiu dos tratados de filosofia para ser, nos nossos dias, uma das mais aliciadoras palavras do vocabulário político. A sua marca estoica desapareceu e ela tornou-se a conduta das pessoas com obrigação de seguir uma agenda de valores profissionais: a ética da política, a ética médica, a ética do futebol, a ética dos advogados, a ética da imprensa et cetera e tal. Para vigiá-las, passaram a existir os conselhos de ética, que enfeitam toda organização que se preza. Ética é também, na linguagem das doenças, uma febre que não passa, insidiosa.
O Renascimento e o Iluminismo libertaram o homem de todos os dogmas para que ele pudesse, no exercício da razão, gozar de liberdade para escolher entre o bem e o mal. Hoje, com a sociedade da informação, a transparência é básica para o autocontrole. Nada pode ser segredo. Isso dá uma sensação opressiva de perda da liberdade.
Tudo é público, e a mídia, com seu instrumental de meios, vigia, denuncia e condena. É um bem ou é um mal? Os resultados respondem positivamente. Há um movimento de melhoria de métodos e procedimentos. O medo ou a certeza de que é impossível esconder erros cria um outro patamar de condutas. Mas falta, ainda, que essa praxe se derrame de maneira homogênea no tecido social. Não basta o fogo cruzado em agentes de governo. Para o país sair da corrupção endêmica, é necessário mudar hábitos, costumes, e sanear, sem privilégios.
Vejamos o que ocorre em alguns setores industriais, protegidos da invasão moralizadora da sociedade da informação. Um fato terrível mostra o nível de proteção e impunidade que existe nesses segmentos. É o caso da fraude nas embalagens que de embalagem não têm nada, é roubo mesmo, a céu aberto. E a quem? Ao consumidor pobre. Papel higiênico, pacotes de biscoitos, bolachas, chocolates, sabonetes e sabões em pó estão fraudados. Mas os preços continuaram os mesmos. A esse procedimento estamos chamando de maquiagem, mas na realidade é um saque. E a permissibilidade é tanta que todos fizeram o acordo de preços.
Há uma ânsia nacional de moralidade. Fatos como esses não podem ser tolerados. Eles demonstram uma insensibilidade grave e uma confiança na impunidade para crimes de exploração dos mais fracos.
Estão furtando às famílias pobres, pois são as que mais sentem, suas bolachas, seu leite, sabão, arroz e feijão. E não é bandido alegando fome, mas gente querendo mais lucro. No Nordeste se diz “tirando pão da boca de cego”.
A ética ainda não alcançou os supermercados. A coisa chegou a tal extremo que criaram a dúzia de dez ovos. Quais os responsáveis? Não apareceram.
Deve ser a maria-mole, que perdeu 50 gramas!
Ainda uma vez o livro
Este espaço jamais pode ser usado para assuntos pessoais. Aqui, não tenho o Senado para atrapalhar-me, e sim o gosto de escrever. E nada melhor do que escrever sobre o livro.
Sempre acreditei que o livro e o jornal jamais acabariam. Sempre que surge uma nova tecnologia eles entram na berlinda. Leio, citado pelo jornalista espanhol Antonio Milan, que em 1894 perguntaram a um especialista qual seria o destino do livro no futuro: “Se por livro entendermos as inumeráveis somas de papel impresso, encadernadas sob uma capa com um título, reconheço que a invenção de Gutenberg cairá em desuso”. Para ele a vez era da reprodução fonográfica.
Era o som que entrava com tudo.
Com o advento da sociedade de comunicação, essa discussão aumentou e o fim do livro foi anunciado. Agora é a vez do “e-book” e do “kindle”. Este é capaz de armazenar milhares de obras que podem ser lidas, anotadas e folheadas. É uma tecnologia mágica, uma dessas porções que os bruxos da Idade Média buscavam criar.
Ela não deve ser descartada, mas não substitui o livro. Creio que sua maior aplicação será para estudantes, que, em vez de uma mochila cheia de cadernos e tratados, vão poder ter todos os livros de consulta à mão. Mas o livro impresso é uma tecnologia mais avançada.
Não precisa de chips em placas que se encaixam uma às outras de modo a levar à tela os textos, necessitando de energia nas baterias, que devem ser alimentadas de tempos em tempos. O livro não precisa de nada disso, não quebra e pode cair.
Não sei se é por amor ao livro, mas tenho como dogma, desses de fanáticos, que eles continuarão, assim como os jornais, e jamais serão passados para trás. Há no livro o gosto, livro tem gosto, desde o táctil até o cheiro bom.
Um amigo, o grande tradutor francês Jean Orecchioni, certa vez me disse que leu num livro uma descrição tão realista do mar que ficou enjoado e teve de tomar remédio para o balanço dos barcos.
Por milhares de livros que possam acumular essas máquinas, elas jamais acumularão os tantos livros que existem num livro. Quantos livros há no “Dom Quixote”, o cavaleiro da triste figura? São milhares, e cada frase é um livro. São emoções que não acredito que se possa ter num livro eletrônico em que a própria tecnologia interfere em sua leitura, que tem de permanentemente manusear os botões de sua máquina.
Mas salvará definitivamente o livro a poesia. Ela não cabe numa tela e não precisa do mercado, porque seus leitores são os restritos poetas que fizeram o provérbio “Poetas por poetas sejam lidos”.
Sempre precisaremos desse companheiro, que, como dizia o poeta espanhol Manuel Machado, nos leve da “prosa ao sonho”.
Ode ao bigode
Sou supersticioso e acho que sempre me dei bem com o meu bigode. Não o trato com cuidado. Às vezes o deixo grande, outras, pequeno. Não mantenho coerência em sua tonalidade, que clareia e escurece sem que eu conserve a cor estável. Já foi maior, indo além dos lábios, e outras vezes foi menor e mais cheio.
Ele me acompanha desde os 16 anos, quando, para parecer mais velho, o adotei, abandonando a cara de criança que não achava combinar com meu serviço: contínuo da Polícia Civil do Maranhão, servindo café e distribuindo correspondência.
Começando a trabalhar em jornal, logo me colocaram o apelido de “bigodinho”. “Ê tu do bigodinho, faz a revisão deste texto”. E por aí passei a integrar-me a ele, companheiro da vida inteira.
Uma noite, em São João Del Rey, encontrei o Chico Caruso e lhe disse: “Eu ajudo muito os chargistas”.
E ele replicou: “Em quê?”. “Com meu bigode, que facilita o trabalho de vocês”.
Mas meu bigode teve outras ameaças. O Brizola, num daqueles rompantes de frases cruas, disse uma vez: “Vou raspar o bigode do Sarney”. E Vitorino Freire, meu adversário duro e violento do Maranhão, também, em momento de fúria agressiva, em vez de querer raspar, ameaçou: “Vou arrancar o bigode do Sarney a pinça, fio por fio”. Pediram-me a resposta.
Calmamente, como é do meu feitio, apenas comentei: “Vai doer muito…”.
O certo é que ele resistiu a tudo e a todos.
Não é que agora, eu tranquilo, fui ao médico para retirar uma lesão que encontraram em meu lábio superior, que foi novamente examinada, e o médico relatou os procedimentos a fazer: o primeiro deles, raspar o bigode. Eu quase desmaio.
“Doutor, este bigode já sofreu muita agressão e foi gozado em prosa e verso, o senhor acha que vou raspá-lo? A medicina está tão atrasada que não pode manter um bigode?”.
Quem se deu bem quando colocou bigode foi Caxias. Chegou ao Maranhão coronel, para pacificar a Balaiada, em 1840, sem bigode. Como sempre fez, agiu com a espada firme numa mão e a bandeira da anistia na outra. Concluiu a tarefa, veio a Maioridade e ele viajou ao Rio para a coroação de dom Pedro 2º já com um farto bigode, que deixara crescer no Maranhão. Chegando à Corte, foi eleito deputado e feito Barão de Caxias. A partir daí, foram só vitórias e aumentar o bigodão até chegar a Duque.
Eu, graças a Deus, preservei o meu e apenas fiquei uns dias com dificuldade na articulação da palavra. Melhor assim, porque hoje, após 50 anos de Parlamento, cheguei à conclusão de que ali não era lugar de falar, e sim de ouvir.
Eleição entre o bem e o Bal
Estamos numa eleição atípica. Sem som e sem trio-elétricos nas ruas, sem muros pintados, sem outdoors, sem camisetas, cartazes só dentro de casa e muitas outras restrições. Também no rádio e na televisão os programas eleitorais foram reduzidos a 35 dias, com uma limitação danada ao que falam os candidatos.
A coisa está de tal modo restrita que até artigos assinados, com as ideias do autor — o que pensa, o que reflete, aquelas ideias que deviam ser protegidas pelo princípio da liberdade de expressão e de opinião (“é livre a manifestação do pensamento”, diz o inciso IV do artigo 5º da Constituição) — são motivo para a Justiça Eleitoral ser acionada. Assim judicializa-se completamente a política, de maneira que a Justiça, por sua vez, fica seduzida a politizar-se.
O certo é que a nova lei não aprofunda a democracia nem valoriza o debate, mas tutela as eleições. Será isto um bem ou um mal? Conheci um fanhinho na feira da rua Bolívar, quando eu era deputado federal e morava nessa rua do Rio, que chamava de Bal o mal.
A lei eleitoral é muito estranha e a única coisa que pesa são as pesquisas, feitas de encomenda e, às vezes, por empresas constituídas somente para efeito publicitário e de propaganda. Basta ver que, aqui no Maranhão, o IBOPE, o maior e mais antigo instituto de pesquisa do Brasil, referência internacional, foi impugnado no TRE, com um pedido para não divulgar os seus resultados, porque uma outra pesquisa, de barriga de aluguel, dava números astronômicos e divergentes.
Mais tarde se descobriu o porquê. Os números eram astronômicos porque a estatística da pesquisa era feita por uma senhora que já estava no céu: depois de um ano na UTI de um hospital, falecera.
Mas isso já não escandaliza ninguém. Depois desse negócio de fake news a mentira passou a ser moeda corrente e é até elegante mentir, pois se faz isso com nome estrangeiro e bonito. O Washington Post de hoje publica um gráfico do receio das fake news, em que o Brasil aparece como campeão do mundo, com 85% de preocupação: parece que eles têm visto os programas do PC do B.
Vejo um programa de um candidato que tem as responsabilidades de governar dizer que ele fez isso e mais aquilo, e tanto fez que até o leão da Receita Federal se descobriu que são os dois leões do Palácio dos Leões.
Já se sabe que foram eles, e não ele, que fizeram falir e fechar as pequenas quitandas e lojas do Maranhão. Foram eles, os leões, que comeram as motocicletas e os carros tomados dos pobres.
Mas as barrigas que encheram não foram as deles, pobres barrigas de bronze.
Enfim, a luta que vemos é entre o bem e o Bal.
O medo e o sapo
A primeira coisa que existiu no mundo foi o medo.
Na expressão dos romanos Petronius, autor do célebre Satyricon, o primeiro romance, e Statius, “dolce poeta”, segundo Dante, “primus in orbe deos fecit timor” (no mundo o medo criou primeiro os deuses). Dizia Bergson, o grande filósofo, comentando esta frase, que “a religião vem menos do medo do que de uma reação contra o medo”.
O medo de que quero falar não é o filosófico, mas o real, principalmente na política maranhense, onde ele atualmente cresceu e muito, conforme afirmou em sua vigorosa entrevista a O Estado do Maranhão e à Rádio Mirante o Senador Roberto Rocha, candidato a Governador.
Além do interventor nos anos 30 do século passado, Martins de Almeida, o chamado Bala na Agulha, quando se formou um bando de capangas, conhecido de Turma do Papai Noel, que fez atrocidades, como invadir a Associação Comercial e dissolver uma reunião a chibata, quero lembrar João Lisboa, que no Jornal de Timon, ao tratar de Partidos e Eleições no Maranhão, já relatava a promiscuidade entre o medo e a política. Era Donana Jansen, tatibitate, dizendo “cute o que cutá meu filho Manezinho tem que ser deputá” — e haja cacete nas seções eleitorais, e deportações, como a de Candido Mendes de Almeida, embarcado à força num patacho para fora de sua terra. Há menos tempo, Neiva Moreira e Erasmo Dias apanharam na praça João Lisboa.
Se fazia o diabo na política do Maranhão, não só a agressão física, mas a coação moral, a compra de votos, e as demissões em massa.
Os comerciantes eram proibidos de embarcar mercadorias para transporte na Estrada de Ferro de quem não desse o apoio “certo”, como aconteceu com a grande firma Lages & Cia., que faliu vítima desse método. Hoje existe a quebra dos pequenos comerciantes, com os impostos que não podem pagar, além dos carros e motos apreendidos.
Eu, quando fui Governador, acabei com isso. Foi um período de paz duradoura que sobreviveu até recentemente. Não demiti ninguém, acabei com a nomeação e perseguição política do cobrador de imposto. Meu temperamento sereno, paciente, aberto ao diálogo, funcionou.
Agora, o medo está aí. É medo de bandido, de bala perdida, de perder o emprego, de sofrer perseguição, da violência que campeia solta. Só num dia tivemos cinco homicídios na cidade.
Quando eu era menino tinha um medo danado de alma, da Manguda, uma visagem que aparecia nas noites de lua, e de sapo.
Hoje o mundo político está sem medo de alma nem de sapo. Mas haja medo de perseguição, de perder asfalto, de receber desaforos e de ter as emendas orçamentárias para obras em seus municípios suspensas.
Mas eu continuo com medo de mau-olhado e de olhos excomungados. Inveja e ódio.
O Maranhão precisa de grandeza de espírito e de paz e segurança, de ser como sempre foi, uma família sem ódio e sem medo de perseguição.
Ainda uma vez o livro
ESTE ESPAÇO jamais pode ser usado para assuntos pessoais. Aqui, não tenho a política para atrapalhar-me, e sim o gosto de escrever. E nada melhor do que escrever sobre o livro.
Sempre acreditei que o livro e o jornal jamais acabariam. Sempre que surge uma nova tecnologia eles entram na berlinda. Leio, citado pelo jornalista espanhol Antonio Milan, que em 1894 perguntaram a um especialista qual seria o destino do livro no futuro: “Se por livro entendermos as inumeráveis somas de papel impresso, encadernadas sob uma capa com um título, reconheço que a invenção de Gutenberg cairá em desuso”. Para ele a vez era da reprodução fonográfica.
Era o som que entrava com tudo.
Com o advento da sociedade de comunicação, essa discussão aumentou e o fim do livro foi anunciado. Agora é a vez do “e-book” e do “kindle”. Este é capaz de armazenar milhares de obras que podem ser lidas, anotadas e folheadas. É uma tecnologia mágica, uma dessas porções que os bruxos da Idade Média buscavam criar.
Ela não deve ser descartada, mas não substitui o livro. Creio que sua maior aplicação será para estudantes, que, em vez de uma mochila cheia de cadernos e tratados, vão poder ter todos os livros de consulta à mão. Mas o livro impresso é uma tecnologia mais avançada.
Não precisa de chips em placas que se encaixam uma às outras de modo a levar à tela os textos, necessitando de energia nas baterias, que devem ser alimentadas de tempos em tempos. O livro não precisa de nada disso, não quebra e pode cair.
Não sei se é por amor ao livro, mas tenho como dogma, desses de fanáticos, que eles continuarão, assim como os jornais, e jamais serão passados para trás. Há no livro o gosto, livro tem gosto, desde o táctil até o cheiro bom.
Um amigo, o grande tradutor francês Jean Orecchioni, certa vez me disse que leu num livro uma descrição tão realista do mar que ficou enjoado e teve de tomar remédio para o balanço dos barcos.
Por milhares de livros que possam acumular essas máquinas, elas jamais acumularão os tantos livros que existem num livro. Quantos livros há no “Dom Quixote”, o cavaleiro da triste figura? São milhares, e cada frase é um livro. São emoções que não acredito que se possa ter num livro eletrônico em que a própria tecnologia interfere em sua leitura, que tem de permanentemente manusear os botões de sua máquina.
Mas salvará definitivamente o livro a poesia. Ela não cabe numa tela e não precisa do mercado, porque seus leitores são os restritos poetas que fizeram o provérbio “Poetas por poetas sejam lidos”.
Sempre precisaremos desse companheiro, que, como dizia o poeta espanhol Manuel Machado, nos leve da “prosa ao sonho”.
Da humildade
Depois da rotina das pesquisas de opinião, governar ficou mais humilde. O poder tem muitas definições e é acusado de produzir muitos efeitos. É considerado perigoso, com aspectos transgênicos que transformam normais em super, fracos em fortes, fortes em débeis, ignorantes em sábios, sábios em bobos, honestos em amorais e estes em respeitáveis criaturas. Aguça vaidades, constrói cegueiras, instiga a maldade e, não raro, transforma virtuosos em pecadores. Mas há os que nele descobrem outras virtudes, como Clinton e Kissinger, que o consideram afrodisíaco, sedutor e sensual. Há os que o vivem como sublimação de vaidades e prazeres. Tem todos os gostos.
Mas o poder político, síntese de todos os poderes, é nobre. Intrinsicamente é bom, seus pressupostos são o governo da sociedade e o bem geral, construído ao longo do tempo, para possibilitar o ordenamento da sociedade e do Estado. Os antropólogos acompanharam o surgimento do poder (como nasceu, como se estruturou, a quem serviu) desde as tribos primitivas até a sofisticação dos tempos atuais, como um instrumento necessário aos níveis de conviver.
Como a criação do homem tem duas faces, é tudo isso e nada disso. O poder, por definição, dá às pessoas a faculdade de se fazer obedecer, pela força, por outras pessoas. É uma arma tão perigosa que Deus, detentor absoluto de todos os poderes, se revelou para não exercê-lo e sufocar o livre arbítrio da criação. E, assim, foi humilde.
O poder se desdobra.
Há poder pessoal e há poder coletivo, mas este, em geral, transforma-se em pessoal,pela tendência a ser delegado. Weber diz haver uma espécie de poder pago pela sociedade, entre cientistas, que não deve ser exercido “como empresarial”.
O poder é sempre ardiloso. No terreno abstrato, a religião tentou cercá-lo pela invocação de preceitos morais. No campo da realidade, criou-se a lei, um poder atemporal e impessoal, como uma maneira de enquadrar os governos, o Estado de direito, das leis e não dos homens, com o controle de um poder sobre o outro, na busca de equilíbrio e harmonia.
Destaco uma característica no poder que deve ser meditada por todos que o exercem: o princípio e o fim. Quando acaba, não resta nada. Plácido Castelo, antigo governador do Ceará, numa imagem simples, falava que o “poder é uma caneta com prazo marcado”. Quando acaba a tinta, não escreve mais. É o que está acontecendo com a de muitos que agora estão em desespero, porque sentem que está chegando ao fim.
Essa noção de fugacidade desperta o único e definitivo antídoto contra suas demoníacas tentações: a necessidade de sermos humildes no exercício do poder. Se exercido com humildade, quando desaparece não faz falta, não destrói as pessoas. A humildade não faz mal a ninguém. Ela é tranquilizadora, benéfica e ajuda a viver.
Isto é o que tem faltado e tem transformado os tempos atuais no Maranhão em tempos de arrogância, de autoritarismo e de desprezo às pessoas.
Certa vez estava com Tancredo e resolvemos indagar quais as dez maiores virtudes para governar. Tancredo falou em primeiro lugar.
Bateu na minha perna e disse: “As sete primeiras são humildade e paciência; as três que faltam você, Sarney, pode preenchê-las.” “As minha três também são em primeiro lugar humildade, em segundo paciência, e em terceiro humildade.”
São duas coisas que têm faltado atualmente na política: paciência para ouvir e tratar bem aqueles que necessitam ser tratados bem; e humildade, inimiga da arrogância, da perseguição, do ódio, da inveja — e amiga de Deus.
Quero acrescentar também uma advertência: aqueles que fingem e simulam fé não enganam ninguém. Os fariseus são bem conhecidos e aqui, agora, escondem seu autoritarismo e simulam fé. Que bom te ver, Roseana, e saber que vamos ter paciência, humildade e fé.
O orador não soube parar
Conta Mark Twain: “Alguns anos atrás, estava assistindo a um ofício religioso quando um missionário veio fazer a pregação do dia. Começou a falar sobre a caridade, com um brilho, que a todos comoveu. Não fugi ao sentimento geral, e já tinha uma nota de 100 dólares na mão para colocar na bandeja das doações. Via gente até com mais dinheiro nas mãos para doar. Atingido o clímax, o orador não soube parar, e continuou falando e falando. O calor ia ficando mais forte e o sono se apoderando dos o uvintes. Mas o entusiasmo foi descendo, descendo até 50 dólares. O homem continuou a falar, e meu entusiasmo e meus dólares continuaram a descer. Finalmente, quando a bandeja passou por mim, coloquei nela 10 centavos.”
Seguimos, neste domingo, com o evangelho de Marcos e ele nos prepara ao momento daquela que estamos acostumados a chamar de “multiplicação dos pães e dos peixes”. Jesus tem compaixão do povo que tem fome da sua palavra e fome de pastores capazes de o guiar no caminho certo. O olhar de Jesus é o mesmo olhar misericordioso do Pai. Aquelas “ovelhas”, a numerosa multidão daquele tempo e a humanidade inteira, parecem-se com um rebanho perdido que não sabe mais para onde ir. No meio de tanta confusão de palavras e ideias, perderam o rumo e não tem quem possa ir à sua frente. Quem lhes dirá uma palavra confiável que valha a pena ser seguida e obedecida?
Jesus responde ensinando a todos a oferecer o pouco que tem. O evangelista não explicita nos detalhes o ensinamento de Jesus, mas apresenta os seus frutos, como veremos nos próximos domingos nos quais a Liturgia da Palavra nos fará ler o capítulo 6 do evangelho de João. Nele, Jesus será apresentado como o Pão da Vida (Jo 6,35), verdadeira comida e verdadeira bebida, mas também como aquele que tem “palavras de Vida Eterna” (Jo 6,68). Pão e palavra andam juntos. São as duas necessidades fundamentais da vida de qualquer ser huma no: o alimento “material” para não morrer e satisfazer as nossas necessidades vitais e o alimento “espiritual” indispensável para sermos pessoas de relação e de amor. Por isso, por enquanto, Jesus ensina.
Marcos parece nos dizer que a fome da Palavra vem antes da fome corporal que Jesus também irá, depois, satisfazer. Se a mensagem de Jesus fosse acolhida seriamente seriam resolvidas a fome material e a fome de comunhão fraterna da humanidade. A proposta dele é sempre aquela do amor a Deus e ao próximo. Um amor real feito de sentimentos e razões, mas, sobretudo, de ações capazes de aproximar as pessoas, torna-las mais fraternas e amigas, construtoras de um mundo de paz e justiça. Com efeito, se ainda milhões de seres humanos passam fome e morrem de doenças, há tempo vencidas em outros lugares, é porque falta solidariedade e partilha. Esta é a Palavra-Boa Notícia que Jesus oferece a toda pessoa que decida reconhecer aos outros a mesma dignidade e o mesmo direito ao bem-viver. Para continuarmos a ser egoístas e interesseiros, cada um defendendo as suas vantagens e os seus privilégios através de armas atômicas, riquezas mal distribuídas ou leis injustas, não precisava que Deus Pai enviasse o seu Filho até nós.
Todos percebemos que há muitas coisas erradas no mundo e que não foi Deus que as quis. No entanto, o nosso anseio de mudança é muito fraco. Não nos atormenta como a fome de comida e a sede de água. Basta pouco para nos distrair ou basta alcançar um degrau a mais na sociedade para esquecermos da exclusão dos demais. Sempre olhamos para aqueles que achamos mais no alto da escada da vida, dificilmente olhamos para baixo. Pela situação confusa, culpamos os outros, o sistema, o destino, ou até mesmo Deus. Aceitar a responsabilidade de cada um, a nossa também, se feita de pequenos gestos de indiferença e de falsidade, nos custa muito. Nos falta escutar o ensinamento de Jesus e confiar mais na sua Palavra. Enchemo-nos demais com as nossas conversas. Acabamos saturados como numa pregação enjoada que nunca acaba. Um pouco de silêncio como aquele ao qual Jesus convidou os discípulos nos faria muito bem.