José Sarney

O ano vai começar

O Brasil tem calendários diferentes dos resto do mundo, a começar pelas estações do ano.

Aqui só temos inverno e verão, inverno quando chove, verão, quando as chuvas não aparecem, e se surgem são atribuídas às frutas: do caju, da manga e assim por diante.

Estas são sempre seguidas de muito trovão e raio e passam rápido.

Depois, as nossas divisões do ano são marcadas pelas festas, santas ou pagãs. O Carnaval marca os dois primeiros meses. Depois vem a Quaresma, que dura quarenta dias, até o Domingo de Ramos. A Semana Santa culmina com a celebração da Eucaristia na Quinta-Feira, do Sacrifício na Sexta-Feira, a Aleluia e a Páscoa; a Paixão de Cristo sempre encenada e movimentando a população, como as procissões do Bom Jesus da Cana Verde, do Encontro e, para misturar tudo, a malhação do Judas — um Carnaval fora de época, com os bailes das aleluias, uma “páscoa” regada às toneladas de chocolate, referência especial de Gramado, e que os baianos não deixam passar em branco. Depois vem o São João com as quadrilhas, os forrós e as danças de São Gonçalo das Moças.

Se tem Copa do Mundo aí é que a coisa pega fogo, porque o país para de vez e é Carnaval todo dia, com ruas enfeitadas, bandeirinhas e bandeirolas, cerveja em toda porta de casa com amigos e aderentes, todos na torcida e improvisando botequins nas calçadas e em todos os andares dos edifícios.

Vem o 7 de setembro e o patriotismo por uns dias toma conta, sobretudo da meninada, e vai ao máximo se tem Esquadrilha da Fumaça.

Em anos de eleição este mês é o auge de trabalho de moças e moços, que, de bandeiras nas mãos, espalhados por todos os congestionamentos de trânsito, gritam o nome de candidatos de que nunca ouviram falar, nem sabem de quem se trata, tudo por cinquenta reais por tarde!

Chega outubro com as grandes concentrações religiosas do Círio de Nazaré, de Aparecida, do Juazeiro do Padre Cicero. Quando começa novembro começamos a ouvir longe os primeiros sinais dos sinos do Natal.

Afinal, depois de falarmos do ano inteiro, o essencial é dizer que o ano realmente começa depois do Carnaval. Essa é a festa das festas, aquela de que até hoje se discute quando começou. Os mais fanáticos dizem que vem das famosas bacanais romanas, importadas da Grécia, em que se homenageava o deus Baco, regadas a vinhos e orgias, e que de tal modo se excederam que o Senado Romano as suspendeu no ano 186 antes de Cristo. Outros o ligam às Saturnálias, também livres e pândegas, festas do deus Saturno, que também eram célebres na antiguidade.

Não vamos dizer que o nosso Carnaval seja tanto …assim… como aquelas festas do passado, porque a nossa só faz com que as mulheres de todas as idades mostrem seu corpo e as novas, queimadas de sol, aproveitem para também mostrar os seios, guardando o essencial, tudo para se preparar para as abstinências da Quaresma…

Outros povos comemoram também outros calendários, como o chinês, o judaico, o ortodoxo Juliano e um do meu avô, que dizia que ano novo era o do seu aniversário, nada do começado em janeiro.

É assim que o ano passa, e vai começar agora, neste ano que tem Carnaval, São João, Copa e eleição. Haja paciência para tanta monotonia!

A cada um seu Carnaval

O Carnaval é um ser vivo, tem sua dinâmica, sua transformação e é influenciado pela geografia, pelo clima, pela natureza, pela gente que o faz e desfaz. Não vem da Roma das orgias saturnais nem da Grécia das bacanais e dionisíacas. É do Brasil mesmo.

Há vários e incontáveis Carnavais. Um é da vila mais longe no meio da água da Amazônia, onde se pinta o corpo, faz baile no rio e sexo na mata. Outro é o de Pernambuco, onde as crianças já nascem com as articulações próprias para enrolar as pernas no ritmo do frevo que não se sabe de onde vem ou como começou e que o Capiba aproveitou para compor excitantes tocados.

O Carnaval da Bahia é o da Bahia, não há como descrever. É ainda Moraes Moreira, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, Carlinhos Brown e os Filhos de Gandhi.

O do Maranhão, com os nomes dos blocos picantes, cada um querendo ser mais criativo e escatológico, como o Siri-na-Vara, o Máquina-de-descascar-alho. E o Carnaval da roça, com galinhas mortas e peladas lanceadas em varas em honra a São Belibeu, o Bicho-Terra e a riqueza de nossa imaginação.

No Amapá o Carnaval também é uma festa da imaginação em cada lugar e em cada um. É muito criativo, que o digam o Futebol à Fantasia, no Trem e, claro, a Banda na terça-feira gorda…

O do Rio é um teatro a céu aberto, enredo que não se entende, o Marquês de Sapucaí caindo no samba na Marquês de Sapucaí, e na homenagem a Cervantes esse verso: “Vencer mais um gigante nessa história surreal”, que mistura “meu bom cangaceiro” com honra do negro, Graciliano, Rosa e Machado, e canhões. E também os blocos, que retornaram com toda a força no fim do século passado e hoje juntou aos antigos, como o Cordão da Bola Preta e a Banda de Ipanema, os novos “tradicionais”, como o Suvaco do Cristo, o Monobloco, o Simpatia é Quase Amor.

Morreu um irmão de minha avó num sábado de Carnaval. Um tio meu, farrista e carnavalesco, já tinha mandado fazer a fantasia e pediu à família: “Só me comuniquem quarta-feira, para começar meu luto.”

É assim o Carnaval. Nem os cemitérios escapam da fuzarca. Desde sempre, blocos de bêbados os invadem, para despertar os mortos com as velhas marchinhas do “Eu quero mamar” ou “Chiquita bacana lá da Martinica”.

Hoje o Carnaval é uma coisa. Ano que vem é outra. Sinto ainda falta do Joãozinho Trinta, não dele mesmo, mas das mulatas com seus corpos belos, esculturas de Deus, substituídas por esculturas de bisturi e com mais lantejoulas que gingado.

É difícil entender o Brasil sem o Carnaval. É a cultura da convivência, do amor ao corpo, da explosão de alegria. Isso é viver.

Enquanto todos brincam, eu vou passar o carnaval aqui em minha cama de hospital, onde me recupero de uma das piores coisas que podem acontecer com os velhos: queda. Ao menos espero estar protegido do Aedes aegypti e da dengue, da chicungunha e da febre zika.

É. A cada um o seu pecado.

Eu te conheço Carnaval

Eu tinha um tio Ferdinand, funcionário do Banco do Brasil, que era completamente louco pelo Carnaval. Para ele, o reinado de Momo começava no dia 31 de dezembro, quando nos costumes do velho Maranhão, abriam os bailes populares, de dominó, em que as mulheres reprimidas pela discriminação tinham uma oportunidade de, sob o anonimato, ”rodar a baiana”, e outros, homossexuais banidos e martirizados pela segregação, vestidos de mulher, soltar “a franga”. O baile de máscara acabou e foi até uma marchinha do tempo do Cafeteira (Cafeteira não quer/ máscara neste Carnaval!) e começou a modernidade menos carnavalesca e mais luxuosa das escolas de samba.

Dos bailes populares o mais célebre era do Moisés, uma figura simpática e alegre que conhecia todos os segredos e desejos que nascem e morrem no Carnaval. O Moisés todo ano abria o seu baile, sempre num sobradão desalugado, com grande pompa. Não só meu tio, meu pai e eu também, éramos seus fregueses. Eu menos do que eles, porque sempre fui retraído para a folia.

Outro dia, escrevi aqui sobre os folguedos populares e sobre a identidade brasileira e afirmei que o forte do Brasil era a música e incluí o Carnaval entre as referências maiores. O Carnaval é a mais alta manifestação da cultura da alegria do brasileiro, momento para a picardia e o riso, além de outras coisas boas que ele desperta. Com algum exagero, hoje, tendem alguns radicais religiosos e o Ministério da Saúde a julgá-lo um bacanal. Veja-se os anúncios que o Ministério divulga nas campanhas dos preservativos: “Tenha um Carnaval seguro, use a camisinha”. É até uma negação do significado de Carnaval, que todos afirmam vir do latim CARNE VALE, adeus a carne, porque anunciava um período que precedia a quaresma, tempo de jejum, inclusive do corpo.

Não sei por que me lembrei associar este Carnaval ao meu tio Ferdinand. Ele me traz à memória o seu bloco “O Bando da Lua”, sua participação no Corso lendário de domingo gordo, quando desfilava no carro da Chicó, entre aquelas mulheres de saias grandes colocadas para fora das carrocerias dos carros enfeitados. Seu espírito boêmio incorpora uma estória que fazia parte da história da nossa família. Um tio-avô nosso morreu no sábado de Carnaval, em São Bento. Ele recebeu um telegrama com a triste notícia. Leu e disse à esposa: “Guarde este telegrama e não diga nada a ninguém. Na quarta-feira de cinzas abra e comunique os amigos. Feche a metade da porta – como era costume – e vamos começar o luto”.

E esbaldou-se na farra durante o Carnaval. Algum abelhudo descobriu a morte do velho e cobrou dele, que pulava e não cantava no Bloco: “Canta Ferdinand!”, e ele respondia: “Não posso, estou de luto”.

Todos à folia.

Divagações sobre o passado

Muitas vezes me disseram que era necessário dar um murro na mesa. A expressão, bem simplista, é daqueles que acreditam que se podem resolver impasses com gesto de força. Respondia que podia quebrar a mesa ou quebrar a mão, sem excluir quebrar as duas.

Cada vez mais consolido minha visão de que governar é harmonizar conflitos, exercer até o extremo a arte da paciência e da prudência. Isso não exclui o dever de ser firme quanto à defesa do interesse público. Não há maior coragem do que resistir ao emprego da coragem. Num regime democrático é preciso ter democratas. E a democracia começa dentro de cada um, é a consciência do óbvio, de que o nosso direito termina onde começa o dos outros.

A força é sempre a inconformação com os limites que nos são impostos pelo direito, pela lei, pela ética, pela moral. É o poder ilegítimo de impor vontades. Os custos dos impasses são maiores que os da negociação e do diálogo. Infelizmente, as instituições no Brasil são frágeis, por elas mesmas e pelos outros para as quais são feitas.

Tenho guardado silêncio sobre as circunstâncias do meu governo. Já fui julgado pelo povo brasileiro, no respeito com que me trata, nas lembranças com que me recorda. Agora mesmo, em recente pesquisa sobre os ex-presidentes, após Getúlio (e pour cause) estou empatado com Juscelino. Lembro esse fato porque a toda hora surgem julgamentos carregados de velhos preconceitos e distorções, como se nada houvesse acontecido depois que fui presidente, há 14 anos.

O grande problema brasileiro continua sendo político. O subdesenvolvimento político cria solidariedade com o econômico e o social.

Quero apenas lembrar que, em 1989, último ano do meu governo, a taxa de desemprego foi de 2,85%, residual, o PIB cresceu 25%, uma Argentina, tivemos as maiores safras agrícolas da nossa história, a geração de energia aumentou 31% e as linhas de distribuição, 57%, também recorde. Passamos a Inglaterra e a Itália. O Brasil saiu do 8º lugar para ser a 7ª potência industrial do mundo. A siderurgia expandiu-se 25% e a dívida externa diminuiu de 37,5% do PIB para 24,8%. Petróleo, as reservas aumentaram três vezes. Construímos os gasodutos de Mossoró, no Rio Grande do Norte, a Camaçari, na Bahia. De Campos, no Rio de Janeiro, a São Paulo, SP. A balança comercial superavitária era a terceira do mundo, ultrapassada apenas pelo Japão e Alemanha. Os programas sociais alcançaram índices jamais superados. O analfabetismo caiu 15% e a mortalidade infantil, 30%. Na área fiscal, encontrei um déficit de 2,58% e deixei, em 1989, um superávit primário de 0,08%, isto é, mais baixo 34%, um esforço fiscal extraordinário.

Mas a grande tarefa foi a transição sem traumas, conduzida com serenidade e tolerância. A inflação? A correção monetária distorcia os números e a economia convivia com várias moedas, o dólar, ORTN, moeda escritural e, por definição, moeda circulante, esta vulnerável ao pânico que surgiu com as expectativas do novo governo.

A correção mensal, dentro das circunstâncias daquele tempo, era a melhor vacina contra a recessão e a grande proteção dos salários.

Enfim, criamos uma sociedade democrática e o Brasil atravessou o gargalo institucional. E ficou o econômico, que é o cotidiano das nações.

Coisa boa é o tempo, que, como já disse muitas vezes, é uma invenção do homem.

Ano novo é sempre um instante de esperança no futuro. O meu avô não dava bola para as festas do fim de ano, alegando que o Ano Novo para ele era sempre o dia do seu aniversário, para completar: “gosto de festa e com cerveja”. Viveu 96 anos e sempre dizendo que o bom ano era o ano que passara, pois esse ele já vivera e contabilizara.

Lembro do velho Assuéro porque foi para o Maranhão na seca de 21, no século passado, e recitava uns versos que naturalmente trazia de violeiros dos sertões da Paraíba, melhor ainda, do Ingá do Bacamarte, onde se criou — que tinha fama de terra violenta, e de que se dizia que só se matava mais gente do que ali no Catolé do Rocha (outro município paraibano).

Eis os versos: “Eu vi a cara da fome / Na seca de 21 / Ô bicha da cara feia / Só mata a gente em jejum.” Aqui montou roça, e louvava sempre o Maranhão dizendo: “Se a minha alma tiver vergonha nunca mais sai do Maranhão. Ô terra boa. Já tive até um neto que foi Governador.”

Mas a verdade é que, meu avô à parte, sua lógica era perfeitamente defensável, porque costumamos falar sempre muito mal do ano que finda. Repetimos suas mazelas e sempre o julgamos ruim. Mas nem sempre o Ano Velho é ruim e benditos somos nós que o vemos passar.

O ano de 2017 terminou sendo o ano em que saímos da maior recessão de nossa história, em que tivemos a maior safra agrícola de todos os tempos, em que os juros saíram da taxa de dois dígitos e em que a inflação chegou a ser a mais baixa das ultimas décadas. O Brasil começou a gerar empregos e o velhinho apoiou a luta contra a corrupção com muitos dados positivos da atuação do poder Judiciário.

Nossa esperança é que 2018 supere estes dados, mas nem por isso deixamos de ressaltar que as coisas começaram a mudar a orientação das setas durante o andar sempre infinito do tempo.

Em 2018 temos a Copa do Mundo, em que podemos alcançar o hexacampeonato e mais uma estrela na camisa canarinho. Vamos desejar que o King Kong II, da Coreia do Norte, possa criar juízo e deixar de brincar com brinquedos perigosos, querendo jogar bomba em todo lugar e que o Trump também pare de brincar no twitter, jogando bobagens a torto e a direita. Vamos esperar ainda que os Estados Unidos tomem a decisão de acabar com esse costume de todo mundo andar armado, resultando nesses massacres em escolas e outros lugares públicos, como aconteceu em Las Vegas, com dezenas de pessoas mortas.

Mas quem nos salva e nos protege de todos esses males e perigos é Deus e seu filho, que veio à terra, assumiu a condição humana, no primeiro dia do ano foi circuncidado segundo o costume judaico e recebeu o nome de Jesus, como tinha sido anunciado pelo anjo quando anunciou a Maria sua gravidez.

Que o Criador nos ajude e, ao agradecermos a graça da vida no ano que passou, peçamos que dê um Ano Novo muito bom para todas as brasileiras e todos os brasileiros.

Vamos acompanhar o velho Assuéro, com muita alegria, boas festas e felicidade.

Dia de Reis : vivam os Pastores !

A obrigação dos cronistas de jornal é ficarem prisioneiros dos assuntos do dia a dia, senão vira jornal de ontem, isto é, superado e sem novidade.

Assim fiquei, ao sentar em frente ao computador, vacilando se abordava a especulação que fizeram de que eu vetara o Pedro Fernandes — logo o Pedro, de quem sempre só recebi provas de atenção, além de ser irmão do meu grande amigo Manoel Ribeiro — ou se ia falar dos Santos Reis Magos, cuja data hoje se comemora, num simbolismo em que se deseja afirmar que até os Reis, quando nasceu o Menino Jesus, foram adorá-Lo.

Esses Reis são personagens misteriosos desde os Evangelhos. Basta dizer que, dos quatro evangelistas — Lucas, Marcos, João e Mateus —, apenas este dá conhecimento deles.

Eram do Oriente, eram persas e foram guiados por uma estrela; logo, eram astrólogos. Existe a dúvida se eram três ou mais, pois Mateus não diz quantos eram. E quando chegaram a Belém? É outra incerteza, pois, primeiro, estiveram com Herodes, para onde os encaminhara a estrela. Foram a Belém, porque os Profetas e os Salmos, no Velho Testamento, diziam que o Messias nasceria ali e seria adorado por Reis.

Herodes manda que O procurem em outro lugar, e não em Jerusalém, e depois voltem para dizer-lhe onde Ele estava. Logo, não foi no dia seguinte ao Natal. Mas, na Manjedoura, os pintores O colocaram ali, onde permanece até hoje, pela tradição.

Herodes, então, enganado pelos Reis Magos, que não voltaram, indo por outros caminhos, mandou matar todas as crianças, de dois meses a dois anos de idade, o que dá uma ideia de que foi durante o período do Natal que os Reis Magos visitaram o recém-nascido.

Daí a fuga para o Egito.
Outra pergunta que se faz é sobre a palavra “magos”: se vem de magia, pois os astrólogos seriam mágicos, ou se vem de palavra grega que significa sábio. Assim, em vez de mágicos, seriam Reis Sábios.

Mais dúvida: seus nomes eram Baltazar, Merchior e Gaspar, mas esses nomes lhes são atribuídos em evangelhos que não os sinópticos, e sim na vasta literatura de evangelhos apócrifos encontrados depois da Ressurreição.

Há ainda outra questão: a de que não seriam reis, e sim sacerdotes ou membros de alguma seita. Afinal, tudo é dúvida.

Mas a verdade é a que está hoje na história: foram reis, eram magos, chegaram até a Manjedoura levando incenso, ouro e mirra.

Dúvida maior tenho eu quando pergunto a todos “Qual é o dia da queimação das palhinhas?”, e ninguém sabe ao certo. Se estão no Presépio, será Dia de Reis?

Mas era em Dia de Reis que, nos meus tempos de infância, se pediam presentes, em papel de seda, rendado, que ainda estão nos meus olhos, bordados à tesoura, com belas flores e galhos de palmas. Junto vinham uns versinhos que diziam: “Dar Reis não é vergonha / Vergonha é não pagar / Um coração como o seu / A mim não pode negar!”. E eram papéis perfumados!

Assim chegamos ao fim desta crônica, fugindo a temas de vetos inexistentes e louvando a memória de Zezé Caveira, que, em Dia de Reis, 6 de janeiro, no Largo de Santiago, onde eu morava, saía com suas Pastoras, no canto das pastorinhas: “Lindas pastoras…”

Natal, Trump e Jerusalém

Estamos vivendo o Terceiro Domingo do Advento. Na liturgia da Igreja Católica, o Advento é o tempo preparatório da vinda do Filho de Deus, que, assumindo a condição humana, veio para mostrar aos homens que não estamos sós neste planeta azul, onde Deus nos colocou na beleza da Criação.

Jesus veio ao mundo numa pequena e pobre aldeia da Judéia, mas foi em Jerusalém que Ele passou os maiores momentos de sua vida. No templo de Salomão pregou, expulsou os vendilhões e desafiou os sacerdotes.

Jerusalém é um símbolo da humanidade, sagrado para as três religiões monoteístas do Ocidente. Ela foi palco de grandes batalhas, da destruição do templo, de sua reconstrução e de nova destruição, de invasões de bárbaros e da crença de que devia ser retomada, por um ou outro lado, inclusive na sedução das Cruzadas, onde se bateram santos e heróis.

Com o tempo, os homens, para resolverem questões políticas, dividiram a cidade,separada em áreas onde cada uma das religiões tinha o seu terreno sagrado, mas todos insatisfeitos e desejando tomar o todo e não ficar com apenas uma parte.

Eu estava na Organização das Nações Unidas (ONU), em 1961, membro da Comissão de Política Especial, onde se discutia a questão dos refugiados árabes da Palestina, como eram chamados aqueles que haviam sido desalojados para a criação do Estado de Israel, que ocorrera sob a presidência, naquele organismo internacional, de um brasileiro, o grande Osvaldo Aranha. Dessa comissão fazia parte Golda Meir, um ícone na história de Israel, que ainda não fora primeira-ministra, era Ministra das Relações Exteriores e chefe da delegação israelense. Com ela muitas vezes conversei e por duas vezes almocei.

Já àquele tempo o tema causava profundos radicalismos.

Ano vem, ano passa e chegamos a uma relativa tranquilidade, com a fundação da Autoridade Palestina, que passou a unir os diversos grupos árabes da área em busca de negociar a Paz. Os que mais avançaram nessas negociações foram o presidente israelense Isaac Rabin e o presidente egípcio Anwar Sadat, ambos mortos por extremistas dos dois lados, imolados pela visão da convivência em harmonia, e o construtor do Acordo de Oslo, Shimon Peres, de quem fui amigo. Os três ganharam, com justiça, o Nobel da Paz.

Vários presidentes americanos tentaram resolver essa questão, devendo se destacar Carter, Clinton e Obama, e fizeram grandes esforços. Agora, quando parecia que as coisas iam serenar, ganhou as eleições americanas o Senhor Donald Trump, um troglodita da melhor espécie, que por nada, a não ser para desviar as acusações de assédio sexual e de aliança com os russos para fazer um jogo sujo contra a Hillary Clinton, resolveu anunciar que reconhecia Jerusalém como capital de Israel e iria mudar a embaixada americana para lá. Sabe ele que isso não é exequível, mas, na sua alucinação permanente, criou uma crise mundial.

Começa uma nova Intifada, a terceira, a inquietação invade a população de Telavive e o terrorismo recrudesce em todas as partes do mundo, em ondas de protesto e atentados.
Jerusalém é considerada sagrada por judeus, muçulmanos e cristãos. Ali, Jesus Cristo morreu, ressuscitou e anunciou que voltará, Maomé falou com Deus e Salomão construiu o Templo. Quantos mortos já contabiliza a loucura demagógica de Trump?

Os sinos do Natal já são ouvidos.

O mundo inteiro se prepara para as festas natalinas. No entanto, no Oriente Médio, em vez do Menino Jesus chega Trump, que não leva brinquedos, mas semeia a morte das crianças, nos dentes cerrados que de lado a lado se enfrentam e nas consequências, que sempre pesam mais para os mais fracos.

Choremos por essa guerra, que toda noite nos deixa comovidos com os cadáveres loucamente carregados por grupos de fanáticos religiosos, enquanto Trump nem se desculpa das acusações de desrespeitar mulheres.

Guadalajara

Passei alguns dias em Guadalajara, convidado para fazer a conferência de abertura da Feira Internacional do Livro. Falei sobre “O Livro e a Internet”.

A discussão, atual e universal, vai além da dúvida sobre se o livro digital vai fazer desaparecer o livro tradicional feito de papel e tinta. A sociedade de comunicação, de que todos nós participamos, provoca uma transformação que vai além dos nossos costumes e nos traz uma indagação instigante sobre o que acontece com o nosso modo de pensar. Envolvidos por ela, não sabemos suas consequências ou sua duração. A escrita, o livro e a literatura evoluíram por muitos séculos, marcando momentos importantes da história da humanidade.

Alain Peyrefitte, que foi meu amigo e presidente do conselho editorial do Le Figaro, fez-me uma pergunta instigante: “Como será a cabeça dessa geração que vai da cultura oral para a visual sem passar pela cultura escrita?”

Mas voltemos a Guadalajara, onde se realiza a maior feira do livro em espanhol do mundo, rivalizando em projeção com a de Frankfurt — e me disse a escritora e governadora Beatriz Paredes que no próximo o ano ela passará a alemã. Ali já estive três vezes, a primeira delas em companhia de Garcia Márquez, que fez a fala inaugural, Vargas Llosa, Nélida Piñon e outros grandes escritores mundiais. Outra vez encontrei-me lá com Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura, também meu amigo, que sempre teve palavras generosas sobre meus livros — quatro deles traduzidos pelo Fondo de Cultura Economica, o último A Duquesa Vale uma Missa, exposto no estande da editora. Reencontrei agora o grande historiador Enrique Krause, autor de uma fantástica coleção sobre os presidentes da Revolução Mexicana, Biografía del Poder, e tive a felicidade de rever o grande novelista, já bem velho, vencendo um grande derrame, Fernando del Paso, um ícone das letras hispânicas. E conheci o ganhador do Prêmio Cervantes, Emmanuel Carrère, filho de Hélène Carrère d’Encause, Secretária Perpétua da Academia Francesa — que me recebeu ali numa sessão memorável, em que tive a oportunidade de falar naquele templo de mais de três séculos. A conheci por intermédio do grande e saudoso amigo, Maurice Druon, que uma vez trouxe para conhecer a terra de seu avô, Odorico Mendes.

Em Guadalajara tive a assistência diária do grande artista mexicano Jesus Guerrero, outro velho amigo, de quem recebi na dádiva de sua generosidade duas obras belíssimas, que enfeitam minha casa em Brasília.

Guadalajara tem um grande carinho pelo Brasil. Não nos esqueçamos que foi nessa cidade que o Brasil fez a base para ganhar a Copa de 70. Eles até hoje não esquecem que lá jogamos muitas partidas, sempre com o calor de sua entusiasta torcida. Para fazer uma comparação, Guadalajara representa para o México aquilo que São Paulo representa para o Brasil, não somente por sua grande importância econômica, mas como centro cultural. Também devemos ressaltar o grande e maior orgulho da cidade, a Universidade de Guadalajara, que tem 280 mil alunos em seus diversos campos. Ali, como já contei, está o Hospicio Cabañas, com as obras de Orosco, o mundial conhecido, pintor mexicano.

Assim, entre recordações e livros, volto ao Brasil, pensando no meu destino dividido entre duas paixões, a literatura e a política, sem saber para qual tenho mais gratidão, se para uma que me fez Presidente da República, se para a outra que me fez já publicar 119 títulos e membro e decano da Academia Brasileira de Letras.

Conselho e água benta

O Marquês de Pombal, muitas vezes chamado de “déspota esclarecido”, gostava de dar conselhos a todos aqueles que nomeava para postos de mando no mundo português. Assim, a um governador do Maranhão, seu sobrinho, o Marquês de Mello e Póvoas, Pombal fez uma carta dizendo-lhe como devia governar. Esta carta é, até hoje, um manual de bom senso.

Não era na linha de Maquiavel, da sobrevivência esperta, dos interesses do Príncipe, mas na direção do bem comum. O primeiro conselho que lhe dava era o de ter espinhos nos ouvidos, para que as coisas não entrassem de uma vez só. E que quem governa deve ter dois ouvidos, um para ouvir o presente e outro para ouvir o ausente.

Há um brocardo muito nosso que diz que “conselho e água benta só se dá a quem pede”. E não há coisa mais difícil do que dar conselhos. Há muitas espécies de conselhos. Uma parte que se pode chamar de conselhos de bem-querer. São os dos amigos mais chegados, dos filhos, dos parentes e de todos aqueles que nos cercam com afeto. Em geral superestimam as nossas qualidades, são intolerantes com os que nos criticam, mas todos eles são voltados para o melhor e têm como base o amor.

Outro conselho é aquele do amigo sincero, porém pouco inteligente, que nos dá de boa-fé conselhos errados e muitas vezes desastrosos. Há o conselho dos bons amigos e inteligentes, experientes e com espírito público, que muitas vezes são duros, são claros, são difíceis de ouvir, mas estes são melhores e devemos nos aproximar deles.

Em geral são de pessoas que têm espírito público, que muitas vezes não têm tantos motivos de nutrir afetos por nós. Este é o bom conselho. É tão bom que se criou a devoção de Nossa Senhora do Bom Conselho.

Mas há o conselho pior de todos que é o dos bajuladores, dos interessados, daqueles que desejam aconselhar errado para que as coisas não dêem certo e eles possam prestar serviços e ganhar espaço. Este conselho tem o defeito de esconder-se nos mantos de todos os outros conselhos, é cheio de mimetismo e é muito agradável de ouvir. Fuja dele como o Diabo da cruz, como diz a boca do povo.

Faço estas reflexões um pouco gongóricas para lembrar-me de quantas vezes recebi conselhos, de quantas vezes errei em segui-los e como é difícil descobrir entre o bom e o mau conselho. Há o conselho da experiência, mas este conselho não é conselho, é testemunho. Dizer o que se fez por um conselho não significa que venha ocorrer os mesmos efeitos, embora existindo as mesmas causas.

Há -não devo entrar no terreno da sociologia- a chamada teoria do intervalo. O que acontece nesse tempo, que correu do antigo tempo ao novo tempo? Por outro lado há sempre aquele ceticismo quanto ao valor da experiência. Bernard Shaw dizia, naquele seu famoso humor britânico, que a experiência só serve para uma coisa: que a experiência não serve para nada.

A gente tem sempre a impressão de que tudo é fácil de ser corrigido e de que as decisões são fáceis. É mais ou menos aquela indagação de Garrincha ao técnico que dizia como devia jogar: “E o senhor combinou com o outro time?”

O melhor mesmo é o que está no espírito de nosso provérbio popular, de que conselho e água benta são coisas parecidas. Mas não são. Água benta se não faz bem, mal não faz. Um mau conselho, às vezes, é pior do que um mau amigo. Veja-se este de enviar a emenda da Previdência.

O corredor da Esplanada

O argumento principal para a mudança da capital para Brasília era a atmosfera irrespirável do Rio de Janeiro, centro do caldeirão em que ferviam pressões de toda ordem, que vulneravam o poder e imobilizavam decisões. O argumento histórico do centro geográfico do país, da marcha para o interior do Brasil esquecido do Planalto, cedia lugar à evidência de que era impossível governar do Rio. Juntava-se o mau humor com o tráfego (sem tráfico), agitações de rua e uma indefesa localização dos edifícios-símbolo do poder, leia-se Catete, Laranjeiras etc. Sussurrava-se, como motivo oculto, livrar-se o governo da Vila Militar, tão presente na história do país. “A Vila vai descer”, temor dos presidentes.

A meu ver, havia outro motivo bem mais pessoal e circunstancial que deu a Juscelino a energia com que marchou para a mudança: a necessidade de fuga. Fustigado por Carlos Lacerda e nossa UDN, por grupos que vinham da República do Galeão, deu uma de d. João 6º: fugir para o Brasil. Era hora de fugir para Goiás e, assim, sair do caldeirão das ameaças institucionais. Pregava-se um regime de exceção por dois anos. Surgiam as revoltas de Jacareacanga e Aragarças e a UNE ao lado do Catete.

Juscelino mudou-se. Talvez, se tivesse ficado no Rio, haveria o perigo de deposição, renúncia ou suicídio, rotina histórica.

Mas os problemas emigraram da costa para o centro. Anchieta falava de uma marcha em que os índios correram. Ele pediu: “Parem! Vocês deixaram a alma para trás. Parem, vamos esperar que ela chegue.” Brasília foi assim. Andou depressa; e a alma das pressões chegou e transformou a cidade num centro ideal para que elas se exerçam. O que existia no Rio veio em dobro.
Basta ter um apoio logístico e a sedução de um passeio, uma causa (que necessariamente não precisa ser boa) e todos os caminhos convergem para um corredor: a Esplanada dos Ministérios, que desemboca na praça dos Três Poderes, o altar dos deuses.

Os manifestantes voltam para casa com a sensação do dever cumprido e a felicidade de ter visto e desafiado o monstro: o Poder.

O Brasil nos últimos anos tem exercitado e talvez esgotado toda a sua capacidade de confrontação. Vivemos numa panela de pressão com enfrentamentos sucessivos e cotidianos. Não se vislumbra um espaço ao entendimento. Esgarça-se a disposição para dialogar e perpassa um pessimismo geral.

Fizemos a República sem povo e, hoje, achamos que podemos fazer povo sem a república, política sem políticos, o futuro sem o passado. Tudo é ruptura, é confronto, é divergência, é luta, é desintegração. A casa está muito dividida, mas não é hora de esticar a corda.

Existe grande insatisfação mas nenhum apoio do povo a qualquer golpe.

Esse slogan de “fora, renúncia e impeachment” é primário e populista.

É preciso o Brasil ter um espaço para restaurar a paz e a convivência. Sair dos passos vazios do corredor da Esplanada e buscar o bom senso.