José Sarney
O sucesso de ser infeliz
Muito já se escreveu sobre a morte de Cássia Eller, sua tragédia e o mistério que sempre ronda o fim das celebridades, como ela, jovem, ousada, amadurecida no domínio de sua arte e, de repente, ferida em pleno vôo, fato que os romanos simbolizavam naquelas colunas partidas, marco dos heróis jovens tombados em plena glória. Volto ao tema para refletir sobre o destino.
As revelações que se fizeram sobre sua alma atormentada e triste nos remetem aos personagens mais pungentes de Dostoievski e de Dickens.
É difícil a convivência com o sucesso. E, cada vez mais, o sucesso é um exigente produto de consumo. O público tem fome de ícones e de símbolos. As pessoas são obrigadas a sucumbir ao sucesso. Os ídolos são cobrados e levados a extremos de sacrifícios e renúncias, sendo o menor deles o da privacidade. E privacidade não diz respeito somente à vida privada, mas ao direito de cada um ficar só, consigo mesmo, dentro do latifúndio da sua solidão, que é invadido pelos problemas que rondam o êxito: compromissos, vaidades, intrigas, disputas e toda sorte de sentimentos corrosivos do afeto. É preciso estar preparado para enfrentá-los.
Aí entra a questão básica da felicidade, da paz interior da doutrina cristã. O discurso mais comovente que já ouvi foi do senador Agenor Maria. Ele, simples marinheiro, de repente chega ao Senado. Começa a conviver com problemas políticos e pessoais. Em comovente pronunciamento, ele conta a sua vida de sucesso e de vitória. Mas, melancolicamente, conclui: “Tudo isso aconteceu comigo, mas o tempo mais feliz da minha vida foi quando eu vendia água em Caicó, no Rio Grande do Norte. Só possuía um jumento, dois tonéis e os meus fregueses. Não tinha nenhum dos problemas que me atormentam hoje”.
Quando vi a tragédia da cantora Cássia Eller, uma mocinha que saiu de Brasília, dos bares do circuito underground da cidade, com o baixo Hoffman na mão, olhos no futuro. Chegou ao mais alto ponto da fama com a alma arruinada, revoltada, escrava do sucesso de ser infeliz, que aumentou o seu infortúnio e a deprimiu.
O velho do Restelo, de Camões, diz aos que partem na aventura da busca de fortuna e fama em mares desconhecidos: “Oh! Vã cobiça dessa vaidade”. Para que serve tudo isso?
A sociedade industrial gera valores materiais. Os valores do espírito vão ficando como inúteis. A gente, sobretudo a juventude, mergulha no alcoolismo, nas drogas, no delírio das formas mais destruidoras da alegria. No fim desse túnel está a violência.
A história de Cássia Eller permanece interrogando nossos corações. A mocinha de Brasília, a jovem roqueira dos ritmos alucinantes, morre dizendo “não consigo mais relacionar-me com ninguém, só sirvo para ganhar dinheiro”, um testemunho e uma denúncia à nossa sociedade, voltada à busca compulsiva de bens e à sublimação de todos os prazeres.
É como se, numa premonição, Caetano Veloso, quando fez a composição “As Gatas Extraordinárias”, a ela destinada, estivesse falando pela voz do destino: “Tenho que pegar essa criatura / Tenho que pegar, tenho que pegar/ Tenho que pegar”.
O perigo de falar
Falar já é um perigo, falar demais é um desastre. Por isso, o rei David já advertia que o melhor é “guardar a língua, porque guarda a alma de muitos atropelos”. Mas uma coisa difícil é ficar calado. Eu, por exemplo, depois de 40 anos no Congresso, cheguei à conclusão de que, ao contrário do que todos pensam, o parlamento é lugar de ouvir e não de falar. Por outro lado, ouvir é bom porque ensina. José Guilherme Merquior, esse talento extraordinário, talvez a maior perda da inteligência brasileira nestes últimos tempos, foi acusado de gostar de citar, e a mim observou: “pois é, se eu cito é porque li, se li aprendi e, se confesso que preciso de aval ao que estou pensando e me socorro dos outros, é prova de humildade”. E deu uma boa gargalhada!
Não vou falar das declarações do Sérgio Motta. Afinal, perdeu-se o hábito de pensar alto, e quando alguém pensa, todos se levantam em guerra para a malhação. Na juventude, os partidos de esquerda tinham o conhecido hábito da autocrítica. Cada um levantava e dizia o que queria, trocavam palavrões, defendiam-se e por fim a coisa terminava em pancadaria ou em cervejaria. O ministro das Comunicações tem dado provas de que comunica e não se trumbica, como dizia o nosso grande pensador Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Isso é simpático e muito humano.
Mas o que eu quero falar mesmo é sobre o hábito de as empresas americanas considerarem o Brasil país colonizado, de quem o colonizador pode dizer tudo. Veja-se a indelicadeza, a falta de visão, a injustiça das declarações feitas pelas empresas de pesquisa farmacêutica dos Estados Unidos, na visita do então presidente Fernando Henrique. “Os Estados Unidos devem abrir sua carteira para este país pirata de patentes?”, esta foi a pergunta pela qual pagaram US$ 200 mil para encher as páginas do “New York Times” e do “Washington Post”. A primeira resposta é outra pergunta: Quando os Estados Unidos já abriram sua carteira para alguém bater? Cada descoberta tem atrás de si o saber acumulado da humanidade ao longo dos séculos pelo homem. Desde os tempos da Rodada do Uruguai, o Brasil vem fazendo esforços para conseguir resolver o problema dentro dos seus interesses e respeitando os tratados e acordos que mantêm bi e multilateralmente.
Os Estados Unidos não têm a Lei do Comércio 301, votada pelo Congresso defendendo os interesses americanos? Por que o Congresso brasileiro não pode estudar mais demoradamente a lei de patentes? Sou daqueles favoráveis à solução do problema, respeitando, dentro dos interesses nacionais, a propriedade intelectual. Mas condeno esta prática do “big stick” e das ameaças. O anúncio feito pelas empresas farmacêuticas dos Estados Unidos foi, no mínimo, uma leviandade.
Mas essa gente tem cabeça de girico. Severo Gomes contava que, quando ministro da Indústria e Comércio, um relatório de uma grande produtora de medicamentos dizia: ‘Este ano o inverno foi pequeno, tivemos prejuízos porque não teve muita pneumonia. Mas fiquem tranquilos, já dispomos de todas as informações metereológicas e no próximo ano vamos ter um inverno de arrombar, com pneumonias, tuberculoses, mortes, hospitalizações multiplicadas por mil e iremos vender bastante num total de anular os prejuízos deste ano. Fiquem tranquilos os acionistas.”
A reforma dos móveis
Durante meus sessenta e tantos anos de vida pública, a palavra que eu mais ouvi foi realmente Reforma. Mais isso não aconteceu só durante o tempo em que vivo. Abro os livros que li sobre história política e verifico novamente que não é uma palavra de agora. Ela resiste há séculos e o próprio Partido Comunista, quando estava no seu auge, já se dividia na luta entre Rosa Luxemburgo e Bernstein, na luta sobre quem devia tomar os rumos da nova ideologia. Reforma como antítese da Revolução. Rosa, La Roja, radical e intransigente, que morreu assassinada em circunstâncias misteriosas, de um lado, e seu contendor de outro, a defender mudanças que garantissem a sobrevivência do Partido.
Aqui mesmo no Brasil, durante o Império, o que mais se ouvia era a palavra Reforma. Nabuco, então — não o filho, mas o pai, o Conselheiro Nabuco de Araújo —, ao fundar o Centro Liberal, lançou o grande desafio para salvar o Império e o Brasil: “Reforma ou Revolução”, o mesmo slogan que seria usado trinta anos mais tarde pela socialista.
Jango ficou enrolado nessa questão e com ele a palavra Reforma — acrescentada da qualificação “de Base” — passou a ser, não a antítese de Revolução, mas a própria Revolução Comunista. Por isso terminou sendo deposto, livrando o Brasil do perigo vermelho!
Na democratização da Reforma, esta tornou-se, como se dizia do chá de pau-d`arco-roxo, o remédio que curava tudo. Lembro-me bem que o comício célebre de 13 de maio, em frente ao Ministério da Guerra, estopim de 64, foi chamado “o Comício das Reformas”.
Já para os militares a palavra passou a ser um fantasma aterrador, porque militar reformado passa a ser “de pijama” e fica sem prestígio.
Eu, para superar o terror da expressão Reforma Agrária, coloquei no ministério o nome de “da Reforma Agrária” e por isso fui chamado de comuna.
Agora vivemos de novo o ciclo das reformas, palavra que Fernando Henrique não quis usar e substituiu por flexibilização. E o Temer quer caracterizar o seu governo como o “Das Reformas” e por isso está pagando um preço altíssimo.
Estamos em pleno mar das reformas. É reforma para todo lado, trabalhista, política, previdenciária, da Cúria Romana, do samba-enredo, da administração, do ensino médio, do Enem, do biquíni, da bolsa de valores. Todo jornal, toda revista, toda programação de TV está sempre buscando uma reforma. Tudo tem que ser reformado. Passou da política, cruzou as igrejas e agora é de tudo.
Até minha mulher quis reformar as estantes de minha biblioteca, que julgou velhas e feias. Foi uma briga danada e finquei pé no lado antirreformista.
Mas não fiquei cantando de galo, pois ela me disse: “Então vamos reformar os móveis da sala!…”
Histórias de meu avô
O velho Assuéro, meu avô materno, era uma dessas figuras inesquecíveis. Vermelhão, rígido, ombros largos, olhos médios e claros — e um falar firme que dava a impressão de jamais falava sem ser dando ordens ou, às vezes, pensando em voz alta. Viera para o Maranhão tangido pela seca de 1921, com minha mãe, mocinha de treze anos, e mais quatro filhos, o mais novo, Alberico, que aqui ficou a vida toda, depois de ter passado alguns anos na Polícia Militar de Pernambuco, onde chegou ao posto de major.
Gostava de falar por provérbios, muitos deles nordestinos, onde tinha sentenças preciosas.
Uma delas, talvez a que mais repito, era uma que dizia: “Três coisas neste mundo a gente não pode contar: as estrelas no céu, pau torto e gente besta.” Outro era: “Não há doce ruim, cabra bom, nem mulher feia de vestido branco.”
Certamente era uma alusão às noivas porque todas ficam bonitas nos seus vestidos de vestido de cauda rendada, usadas naqueles tempos.
Comecei a observar e me influenciar por esses ditados e tenho a certeza de que toda mulher vestida de branco fica bonita. Hoje é uma coisa fora de moda e são melhores os tomara-que-caia e as minissaias, que nos trouxeram as pernas e pedaços de coxa à mostra, desfrute que os nossos avós não tiveram, pois, naqueles séculos passados, nem os pés podiam ser mostrados. O islamismo vai diminuir por causa de permissão para usar essas coisas modernas, com passagem pelo biquíni, aquele que, segundo Roberto Campos, “mostra tudo escondendo o essencial”. Mas nos países ricos já começou um movimento de retirar os seios do essencial, numa tendência de um futuro muito promissor para a tanga.
Comecei com meu avô e fui atraído pelo biquíni e o tomara-que-caia. Mas no fundo o velho não gostava mesmo era de pano, preferia sem nada, e a prova é que me deixou uma tia quase da idade de Roseana.
Ele só não admitia era casamento sem virgindade. Era rígido e revoltado naquilo que chamava questão de honra. Um dia, eu estava na mesa de café com meu avô quando chegou um seu compadre, chamado Raimundo, e contou-lhe:
— Compadre Assuéro, a sua afilhada Teresinha perdeu a honra!
A virgindade, naquele tempo, era uma coisa sagrada: as moças não podiam jamais ter relação antes do casamento, tinham que casar virgens. Havia até uma comissão que, de manhã cedo, ia verificar se o casamento tinha sido consumado e se a noiva era virgem. O defloramento era motivo de anulação previsto em lei.
O Raimundo continuou:
— Eu vim aqui, compadre, para que o senhor me ajude. Eu já levei minha filha à delegacia de Pedreiras. O delegado mandou chamar o Antônio, autor da desonra de minha filha. Ele disse que ia se casar com ela para reparar o mal. Essa era a fórmula do art. 1.548 do Código Civil de 1916, que vigorou até o começo desse século.
O compadre continuou:
— Então, marcamos para sábado passado o casamento. Eu fui com minha filha à cidade de Pedreiras para o casamento. Mas o Antônio não apareceu. Eu vim falar com o senhor para procurar o delegado e resolver a questão.
Qual não foi minha surpresa quando o meu avô bateu a mão com força na mesa e disse:
— Compadre, você tá ficando um homem sem vergonha! Vá dar um corretivo nesse sujeito e venha me pedir para tirá-lo da cadeia! Não me venha com essa história vergonhosa, que eu já estou até com raiva!
O jogo da semântica
As palavras, como as pessoas, têm sua vida, nascem, exploram sua juventude e morrem no desaparecimento do uso. Algumas, intencionalmente; outras, em razão mesmo do desgaste.
Recordo-me a primeira vez que ouvi a resposta a pergunta que fiz: “Como está nosso amigo comum, Eurico? Ele me respondeu: “Joia.”
Eu nunca tinha ouvido essa palavra com esse significado. Depois, foi massificada como expressão de bem-estar.
Outro amigo meu, quando viajei a Nova York e lá comentavam sobre o Brasil, me disse:
— É o país mais legalista do mundo. Quando se pergunta até sobre as pessoas:
— Como vai?
A resposta vem rápido:
— Tá legal.
Isso mostra nosso apreço à lei e a condenação a tudo que está fora dela.
Que grande hipocrisia pensar assim! Tá legal não tem explicação. É tá legal, e se aplica a muitas coisas.
Agora, a moda e a palavra que entraram em circulação foi delação, que passou a ser ofensiva para aqueles juízes que levam o pobre coitado a mostrar uma fraqueza de conduta. O delator hoje é colaborador. A primeira vantagem que ele tem ao delatar é trocar de conceito: de pessoa de conduta ultrajante para pessoa de conduta heroica.
A palavra também é objeto de consumo: consome-se até, como a própria moda, deixar de ser moda. A juventude, esta, tem o seu vocabulário próprio.
E eu, outro dia, tomei conhecimento da minha ignorância do vocabulário jovem quando perguntei a um filho meu se gostava de skate, ele me respondeu: “Meu tio, é massa.” Eu, inocentemente, perguntei “Massa de quê?” “É massa, meu tio. O senhor não sabe o que é massa?”
Recordo-me, com saudades, de uma palavra que o velho Nascimento Morais, meu companheiro de redação no jornal O Imparcial e notável figura do jornalismo maranhense, me passou num conselho: quando quiser escrever uma catilinária sobre alguém, comece com a palavra sevandija. Se não tiver sevandija, não é lapada nas costas. Mas ela já desapareceu. E eu mesmo, com saudades dela, tenho receio de empregá-la para não parecer esnobe e querer obrigar a consulta a um dicionário.
Tive um colega na Academia Maranhense de Letras que tomou parte numa discussão levantada pelo Professor Mata Roma sobre semântica.
Ele levantou-se e recitou os versos de Bilac: “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas.” E concluiu: “Olhe o jogo da semântica.” Nem ele sabia o que era semântica. O velho Mata Roma disse: “Aqui não quero falar mais. Encerro minhas considerações nesse momento.” E ficamos, em nosso cotidiano na Academia, de vez em quando, a olhar para o outro colega e dizer: “Olhe o jogo da semântica.”
Domingos Vieira Filho teve a pachorra de coletar palavras do nosso linguajar. Escreveu um livro excelente A linguagem popular do Maranhão. Nela encontramos algumas expressões que já estão mortas, como, para citar uma erudita, machavelismo, que nada mais é do que a cultura chegando ao povo. Vem de Maquiavel e maquiavelismo. Além das eruditas, há as populares: canto, cruzeta, qualira.
Quero encerrar essas lembranças e brincadeiras com palavras repetindo uma nova expressão, que circula hoje entre os jovens e até entre os velhos: “Tô de boa.”
Passado do Futuro
O tema do tempo sempre fascina a mente humana. Primeiro que o tempo não existe: é uma criação do homem. O tempo é um pedacinho da eternidade. Mas lembro-me de duas sínteses literárias de que eu gosto muito, quando se trata do tempo. Uma é do T. S. Eliot, o grande poeta inglês, que abre um poema sobre o tempo com estes lapidares versos: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. (“And time future contained in time past.”)
Tenho, ao longo da vida, escrito muito sobre o tempo em crônicas, meditações e vivências. E vejo, com alegria, que um artigo meu renova essa discussão e traz o Padre Vieira para o centro dela.
Que bom que o Amapá não esqueça Vieira. Mas acusar-me de passadista é uma deslavada ofensa, uma vez que ninguém mais do que eu procura estar com os olhos voltados para a frente, tentando desnudar o futuro.
Assim, o período que exerci a presidência foi o último tempo em que o Brasil preocupou-se com os avanços da modernidade: fizemos o laboratório de construção e teste de satélites; nossa comunidade científica dominou o desenvolvimento da fibra ótica; construímos o síncroton para estudar a estrutura da matéria, aquilo que tanto preocupa o homem, até hoje em busca da Partícula de Deus; fizemos um avanço extraordinário em algo com que o mundo até hoje tem preocupações, como o caso do Iran — a descoberta do enriquecimento do urânio na fábrica de Aramar, abrindo as portas para o aproveitamento da energia nuclear para fins pacíficos; e os materiais dos semicondutores. Até hoje a comunidade científica me homenageia por esse feito e tem saudades do passado, ainda sem motivos para ter, como Vieira, saudades do futuro.
No Maranhão, trouxe o primeiro computador que entrou no Nordeste, um Burroughs de pesquisa, para substituir as máquinas; instalamos a primeira tevê didática, hoje educacional, do Brasil; e mandei os Professores Lobato e Anselmo ao Japão para serem capacitados para as novas tecnologias do ensino.
No Senado, modernizei toda a máquina administrativa, informatizando-a, e fiz parte da comissão que criou o Prodasen, o grande banco de dados que temos no País.
Fui o primeiro — e único — Presidente a visitar o acelerador de partículas do Fermilab. Tenho verdadeira fascinação pela física pura e pelas descobertas de partículas.
Mas a acusação que me fizeram de passadista nada mais era do que protesto contra a crítica que fiz ao stalindino, que, num estado agrícola como o Maranhão, desconhece a função social da propriedade e coloca-se contra ela, perseguindo comerciantes, industriais, fazendeiros e produtores rurais, determinando que esses não tenham a proteção do direito de imissão em suas terras, proibindo a Polícia de garanti-los — segundo me dizem, há mais de dez mil mandados que foram proibidos de serem cumpridos.
Tudo isso, no final, implica na destruição de empregos, quando o Estado apresenta uma alta estatística de perdas de postos de trabalho.
Nada tão decadente quanto o stalindinismo, que completa, neste ano, 100 anos, tendo sido responsável por um grande atraso da humanidade e por vinte milhões de mortos, além de ser pregador da volta ao terror da Revolução Francesa, a guilhotina da Praça da Concórdia, em Paris.
Para terminar, numa homenagem ao tempo, cito Platão. Para mim, na melhor definição (em Timeo) sobre ele: “O tempo é a imagem em movimento da eternidade.”
A teoria da greve geral
O Brasil está num saudosismo danado e deseja ressuscitar, na prática política, meios há muito mortos. É a famosa volta dos dinossauros. No princípio do século passado, há mais de um século, o comunismo — ou melhor, os teóricos do comunismo — pregava que a maneira de derrubar governos e implantar o marxismo era os operários fazerem uma paralisação geral, imobilizando todo um país, que, assim, sem funcionar, seria uma presa fácil da ditadura do proletariado.
E a moda circulou por todo o mundo, sobretudo pela Europa, berço do pensamento político humano.
A greve foi uma conquista dos trabalhadores, usada desde o princípio da Revolução Industrial (os exemplos da antiguidade tratam de universos muito distintos), num tempo em que a exploração do trabalhador o tornava escravo do trabalho e do patrão. Os menores e as mulheres, com salários mais baixos, eram vítimas das mais cruéis explorações. Com estes excessos foi natural nascer a reação, inclusive contra o lockout — a empresa fechar para obrigar o trabalhador a aceitar trabalhar com salários miseráveis. Se o patrão podia impor suas condições ao empregado, fechando as fábricas, arrancando-lhe o meio de ganhar o seu pão, porque esse não podia também fechar a fábrica, obrigando o patrão a ficar sem ganhar dinheiro, paralisando seu negócio por tempo indeterminado. Eis o nascimento da greve, justa reivindicação por salários e contra a exploração. Depois, com o andar da carruagem, surgiram os sindicatos, que — mais adiante com a força da contribuição sindical — deram aos operários condições de politicamente enfrentar os chamados partidos de massa contra os partidos de quadros. Duverger trata desse tema longamente.
E então a greve passou a ser um instrumento também político. Os partidos ideológicos incorporaram aos seus programas o direito de greve, que deu seus resultados e serviu bastante para o avanço do bem-estar da classe operária. Isso foi no passado. O trabalhador, hoje, com os sindicatos e suas confederações, tem uma força muito grande e não precisa recorrer às greves para obter conquistas.
As convenções coletivas, os direitos constitucionais, a empresa moderna com seu sentido social, tornaram a greve geral anacrônica, que apenas resiste em países subdesenvolvidos e sem instituições fortes. Por outro lado, a diversidade de trabalho fez com que o trabalhador também não tenha interesse em paralisar a empresa.
Daí o fracasso das greves gerais. No meu governo tentaram duas, e ambas fracassaram redondamente. Essa de sexta-feira seguiu o mesmo caminho e resumiu-se a tentar impedir que circulem os meios de transporte, o que revolta o próprio trabalhador, além de criar o medo da violência com os confrontos entre baderneiros e a polícia — também desaparelhada para enfrenta-los por meios democráticos, sem apelar para uma repressão com uso excessivo da força e com brutalidade. O que antigamente eram os piquetes, hoje são os arruaceiros, sem nada que seja trabalhador.
Daí porque, hoje, greve geral fracassa, irrita o trabalhador e atrasa as conquistas trabalhistas.
A Pascoela
As Oitavas de Páscoa, semana seguinte ao Domingo da Ressurreição, foram chamadas, durante muito tempo, de Pascoela. Assim ela é tratada na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel I, o Venturoso, narrando a descoberta do Brasil.
Diz Pero Vaz de Caminha: “Ao domingo de Pascoela pela manhã, … mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa…”
Entre nós quase se esqueceu a denominação Pascoela, que ainda persiste em Portugal. Mas meu amigo Padre Wagner Portugal fala, em seu “Apostolado da Oração”, da semana da Pascoela.
Essa semana é uma semana muito importante na Liturgia. Das 16 antigas festas de “oitavas” — a semana seguinte a uma festa —, a Igreja reteve duas: a do Natal e a da Páscoa.
A Pascoela era chamada semana branca, ebdomada alba. É a continuação da grande festa da Ressurreição do Senhor.
A primeira leitura, nesses dias, é sempre dos Atos dos Apóstolos: na segunda, os testemunhos da ressurreição (At 2, 14-32); na terça, a exortação de S. Pedro ao batismo (At 2, 36-41); a cura do coxo por S. Pedro (At 3, 1-10); Pedro lembra a morte de Cristo para enfatizar a ressurreição (At 3, 11-26); Pedro e João, presos, anunciam que só em Jesus há salvação (At 4, 1-12); no sábado, mandados calar pelo Sinédrio, os dois apóstolos dizem que “não podemos nos calar sobre o que vimos e ouvimos” (At 4, 13-21). No domingo da Pascoela os Atos proclamam a eucaristia: “partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2, 42-47).
Nesse domingo branco o Evangelho segundo S. João conta a presença de Jesus entre os discípulos.
Ao entrar, Jesus diz e repete: “A paz esteja convosco.” Essa saudação simples, Shalom alechem, em hebraico, o mesmo Salaam Aleikum em árabe, assume um novo significado quando o Senhor sopra sobre eles e complementa: “Recebam o Espírito Santo.” Ele traz, portanto, a Si mesmo, e é a paz.
Por causa deste trecho do Evangelho, em que o apostolo só acredita na ressurreição depois de tocar nas chagas de Jesus, o domingo de Pascoela também é chamado de domingo de São Tomé. É ainda o domingo de Quasimodo, ou o Quasimodogeniti, da antífona “Quasi modo geniti infantes…” (1 Pe 2, 2), cantada nessa data.
Daí o nome dado por Victor Hugo ao personagem de Notre Dame de Paris: “fosse para marcar a data em que o corcunda foi encontrado, fosse para assinalar sua aparência incompleta”.
O Chag HaMatzot, festa dos pães ázimos, é um antecedente da Pascoela. Foi instituído por Moisés (Ex 12, 3-6). E os judeus ainda o festejam durante uma semana, em continuidade com a Pessach, belas festas com seu ritual muito antigo, tão importante para eles quanto significativo para os cristãos.
Assim, quando vou cumprimentar meus amigos, a quem não cumprimentei na Páscoa, digo Feliz Pascoela, sem esquecer que nela foi descoberto ou completou-se o achamento de nosso país.
Assim, com este artigo espero ter completado o meu tema da Páscoa. E a todos desejo que tenham tido uma feliz Pascoela.
Passado do Futuro
O tema do tempo sempre fascina a mente humana. Primeiro que o tempo não existe: é uma criação do homem. O tempo é um pedacinho da eternidade. Mas lembro-me de duas sínteses literárias de que eu gosto muito, quando se trata do tempo. Uma é do T. S. Eliot, o grande poeta inglês, que abre um poema sobre o tempo com estes lapidares versos: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. (“And time future contained in time past.”)
Tenho, ao longo da vida, escrito muito sobre o tempo em crônicas, meditações e vivências. E vejo, com alegria, que um artigo meu renova essa discussão e traz o Padre Vieira para o centro dela.
Que bom que o Maranhão não esqueça Vieira. Mas acusar-me de passadista é uma deslavada ofensa, uma vez que ninguém mais do que eu procura estar com os olhos voltados para a frente, tentando desnudar o futuro.
Assim, o período que exerci a presidência foi o último tempo em que o Brasil preocupou-se com os avanços da modernidade: fizemos o laboratório de construção e teste de satélites; nossa comunidade científica dominou o desenvolvimento da fibra ótica; construímos o síncroton para estudar a estrutura da matéria, aquilo que tanto preocupa o homem, até hoje em busca da Partícula de Deus; fizemos um avanço extraordinário em algo com que o mundo até hoje tem preocupações, como o caso do Iran — a descoberta do enriquecimento do urânio na fábrica de Aramar, abrindo as portas para o aproveitamento da energia nuclear para fins pacíficos; e os materiais dos semicondutores. Até hoje a comunidade científica me homenageia por esse feito e tem saudades do passado, ainda sem motivos para ter, como Vieira, saudades do futuro.
No Maranhão, trouxe o primeiro computador que entrou no Nordeste, um Burroughs de pesquisa, para substituir as máquinas; instalamos a primeira tevê didática, hoje educacional, do Brasil; e mandei os Professores Lobato e Anselmo ao Japão para serem capacitados para as novas tecnologias do ensino.
No Senado, modernizei toda a máquina administrativa, informatizando-a, e fiz parte da comissão que criou o Prodasen, o grande banco de dados que temos no País.
Fui o primeiro — e único — Presidente a visitar o acelerador de partículas do Fermilab. Tenho verdadeira fascinação pela física pura e pelas descobertas de partículas.
Mas a acusação que me fizeram de passadista nada mais era do que protesto contra a crítica que fiz ao stalindino, que, num estado agrícola como o Maranhão, desconhece a função social da propriedade e coloca-se contra ela, perseguindo comerciantes, industriais, fazendeiros e produtores rurais, determinando que esses não tenham a proteção do direito de imissão em suas terras, proibindo a Polícia de garanti-los — segundo me dizem, há mais de dez mil mandados que foram proibidos de serem cumpridos.
Tudo isso, no final, implica na destruição de empregos, quando o Estado apresenta uma alta estatística de perdas de postos de trabalho.
Nada tão decadente quanto o stalindinismo, que completa, neste ano, 100 anos, tendo sido responsável por um grande atraso da humanidade e por vinte milhões de mortos, além de ser pregador da volta ao terror da Revolução Francesa, a guilhotina da Praça da Concórdia, em Paris.
Para terminar, numa homenagem ao tempo, cito Platão. Para mim, na melhor definição (em Timeo) sobre ele: “O tempo é a imagem em movimento da eternidade.”
Ai se eu te pego!
O inverno, como aqui chamamos o tempo das chuvas, sempre fez parte da cultura do Amapá como uma época em que muda o ânimo das pessoas, dos bichos e da terra. As primeiras chuvas trazem nos pingos d´água um gosto da alegria. Reclama-se dos transtornos que elas causam, mas são recebidas com satisfação.
Mais do que na capital, elas representam uma cultura do interior ligada à fertilidade, à dimensão da safra, à chegada das primeiras espigas, às festas do milho verde, das canjicas, das pamonhas e dos bolos de milho.
Lembro-me como ficaram indeléveis na memória da minha infância em São Bento as expressões de todos “os campos estão enchendo”, perigo das cobras fugindo das águas e invadindo as casas; os pássaros de arribação que chegavam, como os jaçanãs, as marrecas, os mergulhões, os socós e os peixes: jejus, acarás, bagrinhos.
Lembro-me bem quando aqueles véus opacos de rajadas de chuva começavam a cair no campo aberto e ficando verde, com os brotos que nasciam da canarana, do arroz brabo, do andrequicé. O coro dos sapos, na sua linguagem das contas, os pequenos gritando “dois mais dois”, os maiores respondendo “quatro” e os outros “quatro mais quatro”, “oito” e então a saparia geral a gritar ” oito mais oito “, e todos em zoada geral: “dezoito, dezoito, dezoito……”. Então, entrava o sapo velho com todas as forças de sua garganta de sapo, proclamava: “Tá errado, tá errado…” E nós meninos, brincando de sapo na cantoria que eles entoavam. As muriçocas chegando, os besouros, o ritual da queima de estrume de boi para afastá-los. Tudo isso eu falo não com um sentimento de saudade, mas de nostalgia. Nada mais definitivo em todos nós, do que o tempo de menino e menino da Baixada tem o inverno, o campo, os bichos e os capins como lembranças indeléveis. Quando o inverno era dessas chuvas de pingo grosso que doía na costa quando tomávamos os eternos “banhos de chuva”, dizíamos que era “inverno tradicional”, forte e de todos os dias e aqueles de tempo cinzento, de chuvinha rala, essas que duravam o dia todo, era a voz do meu avô que dizia: “Este é o inverno criador, bom para o gado, pois não alaga tudo de uma vez só”.
O homem mexeu com tudo e fez cidades nas beiras do rio e nas grandes, com asfalto e calçamento, não deu mais condições da água infiltrar-se para formar o lençol freático, e então vêm as enchentes que param tudo, invadem as pobres residências e se vê repetir a cena diária das televisões, das ruas serem rios e dos desastres das barreiras com dramas e tragédias familiares.
Há o velho provérbio nosso de “abril chuvas mil, maio trova e raio”.
Todos os dias quando falo com Macapá é minha primeira pergunta: já chovendo muito? E a resposta “às vezes sim, às vezes não”, com as justificativas de que tudo está mudando.
E o tráfego da cidade cada vez mais caótico. Já sem água é difícil, “alvará com as ruas alagadas e os buracos abertos”, me diz o caboclo Juvenal.
Pergunto por um e outro amigo e me dizem que um deles está no interior do estado, de carro. Respondo: “Com essa chuva toda”. Mas aí me respondem: “Ele não é feito de tapioca!”.
Ah! Inverno da minha infância: “Ai se eu te pego!”.