José Sarney
Pilla e parlamentarismo
Toda a classe política e os estudiosos da ciência política chegaram à unanimidade na denominação do atual sistema de governo do Brasil como presidencialismo de coalizão, que tanto tem feito sofrer o Presidente Lula. Certo ou errado, passou a ser chamada assim essa maneira de funcionamento do Congresso, extrapolando para o campo do Executivo no seu relacionamento com os partidos políticos.
Mas aqui e ali, de boca em boca, ou de sussurro em sussurro, todos falam que caminhamos para o parlamentarismo, experiência adotada como fórmula para superar a crise gerada com os militares, em 1961, para que Jango pudesse assumir o Governo, após a renúncia do Jânio. Mas aquele não era um parlamentarismo e sim um arremedo de solução para superar um problema político. Tanto é verdade que, na própria Emenda que o adotou, já estava o germe de sua extinção: o Plebiscito, que depois veio a realizar-se.
Para mim o problema agora é mais sério. Ele será o ponto central da discussão que vai estabelecer-se quando entrar em debate a Reforma Política, talvez a mais urgente e necessária de todas.
Quando falo de parlamentarismo não posso fugir à lembrança de um grande homem público do nosso País, exemplo de fidelidade aos seus ideais, de austeridade, de compostura, de cultura, admirado pela sua vida política dedicada à causa do parlamentarismo, de que se tornou símbolo: lembro Raul Pilla. Quando cheguei à Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, em 1955, não pude resistir à emoção ao ver, em carne e osso, a figura lendária do grande brasileiro — estatura regular, magro, cabeleira bem grande, já velho, andando devagar, bem surdo, com um aparelho para amplificar sua voz e a do seu interlocutor, usado preso no paletó — sempre cercado do carinho e do respeito da Casa. Ele fundara o Partido Libertador e era como um símbolo dele, num tempo em que o Brasil só possuía partidos regionais. O PL (Partido Libertador) era do Rio Grande do Sul, onde os políticos gaúchos defendiam sempre uma causa num nível de fanatismo. Lembro Pinheiro Machado com seu republicanismo; Assis Brasil com o voto proporcional; Julio de Castilho, positivista; Bento Gonçalves, com os ideais de independência que levaram à Guerra dos Farrapos, e tantos outros notáveis gaúchos com quem convivi, como Paulo Brossard e Daniel Krieger.
O tal presidencialismo de coalizão tem-nos imposto algumas práticas estranhas, que levaram nossa democracia à beira do desastre. Felizmente o Brasil é maior que seus problemas e tem superado as crises paroxísticas que enfrentamos e assim conseguimos chegar ao Estado Democrático de Direito de que gozamos — atravessamos a passagem do regime autoritário para a democracia plena, cuja condução coube a mim, inclusive deixando uma Constituição que se tornou a mais longeva sem hiatos.
Os ideais de Raul Pilla estão vivos, e sua figura será sempre lembrada. Afonso Arinos, o extraordinário estadista de nossa história e notável pensador, sobre cuja obra até hoje se reflete, era presidencialista e converteu-se ao parlamentarismo como confessa no seu “O Som do outro Sino”, páginas que devem ser relidas sempre.
Entre esse anárquico presidencialismo, incapaz de produzir lideranças, e o parlamentarismo, que no Império produziu extraordinários líderes e assegurou a unidade nacional, a escolha é óbvia.
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O fundador
Comemoramos os duzentos anos da Constituição de 1824. Sua gênese são as forças contraditórias que agiam quando se inaugurava a Nação e que se expressavam no próprio Pedro I. No jovem imperador se acumulavam os conflitos: o passional e o refletido, o romântico e o herdeiro das luzes, o príncipe e o democrata, o homem de ação e o homem de concepção. Era muito jovem — lembremos que nascera dois anos antes do século —, tivera uma educação caótica, sua mãe e seu pai se odiavam, tinha sentimentos por Portugal e pelo Brasil. Era puxado por todos os lados: pela família real, pelas Cortes portuguesas, pelas várias correntes políticas brasileiras, pela amante, pela esposa — e por José Bonifácio de Andrada e Silva.
Insisto nessa figura que foi — e é — tão admirada, mas, ao mesmo tempo, é tão ignorada. Ao contrário de Pedro, o Andrada teve uma vida de espantosa coesão. Nascido em 1763, em Santos, passa dos 16 aos 20 anos se preparando para estudar em Coimbra. Ali segue os cursos jurídicos, de matemática, de filosofia. Em 1789, já vivendo em Lisboa, entra para a Real Academia das Ciências. Habilita-se para magistrado. O duqu Coluna de 18 de junho de 2024 e de Lafões, fundador da Academia, o envia para uma viagem científica pela Europa. Assiste à consagração da
Revolução Francesa antes de seu dilaceramento na guerra de facções. Enquanto estuda, relaciona-se com os sábios franceses, como Lavoisier, alemães, como Werner e Humboldt, e visita ainda instituições boêmias, húngaras, dinamarquesas, norueguesas, suecas. Torna-se membro de várias academias de ciências. Em Portugal, retoma os trabalhos científicos. Torna-se doutor em Direito e Filosofia, professor de Coimbra, intendente das Minas e Metais do Reino, desembargador no Porto, secretário-perpétuo da Real Academia de Ciências. Anseia por voltar para o Brasil.
No entanto, quando a Corte foge para o Brasil, ele fica em Portugal. Em 1808 e 1809 luta, com destaque, contra os franceses. Torna-se um herói. Acumula cargos e encargos, trabalhos e memórias científicas. Finalmente, em 1819, prepara-se para voltar. Despede-se da Academia, fala da obrigação de Portugal com o novo Reino do Brasil. “E que país este, senhores, para uma nova civilização e para novo assento das ciências! Que terra para um grande vasto Império!”
Encontra um país pouco mudado. Explorando São Paulo numa viagem científica, comenta: “a sorte [dos] índios merece toda a nossa atenção, para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos da África o ainda mais horrível dos infelizes índios de quem usurpamos a terra, e que são livres não só conforme a razão, mas também pelas leis”. Anota: “No Brasil há um luxo grosseiro a par de infinitas privações de coisas
necessárias.” “As ciências e as letras estão por terra, tudo o que interessa é saber comprar e vender açúcar, café, algodão, arroz e tabaco.” Quer vacinar os índios, lamenta que não tenham sido integrados na sociedade desde o descobrimento. Quer estudar portos e vias navegáveis. Revolta-se com as queimadas. “Destruir matas virgens, […] a natureza nos ofertou com mão pródiga […], extravagância é insofrível, crime horrendo, e grande insulto feito à mesma natureza.” Quer ensino superior. Quer o negro livre e com terra para trabalhar.
Sua chegada coincide com a Revolução Constitucionalista do Porto e com as exigências que se põe para o Brasil. Com as dificuldades do rei e do príncipe. Logo se envolve na política. Antes mesmo de encontrar-se com Pedro e Leopoldina — que nele encontra alguém para confiar —, torna-se a voz dominante. Forma o governo que sucede ao Fico. Em junho de 1822 convoca a Assembleia Constituinte. A 6 de agosto fala às “potências amigas”: “[O] Brasil proclama à face do universo a sua independência política.”
Em setembro é por conselho conjunto seu e de Leopoldina que Pedro dá o grito do Ipiranga. Segue-se a consolidação da independência. A 3 de maio de 1823 inaugura-se a Constituinte. A voz dominante é a de José Bonifácio e de seus irmãos. Ele insiste em suas ideias: ensino, integração de índios e negros, reforma agrária. A 23 de novembro a amizade do imperador acaba: fecha-se a Constituinte, prendem-se e exilam-se os Andradas.
Ainda escreve de Bordeaux pedindo o fim da escravidão: “[… sem ele nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal Constituição.”
Joaquim Nabuco indagará se a desgraça política de José Bonifácio não veio de suas ideias sobre a escravidão e a reforma agrária. Lutas que ele — e o Brasil — perderam.
Mas a ele devemos, paradoxalmente, a Constituição de 1824 — que Pedro I prometera, sem cumprir, fazer duplamente mais liberal —, a unidade nacional, o predomínio do Poder civil, a independência.
Ainda é preciso lembrar suas outras ideias: a integração das raças, o fim da desigualdade, o respeito à ciência e à cultura, o amor desenfreado pelo Brasil.
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O milagre da língua
Na década de 1990, a França deu o grito de alerta: se não reagirmos, dentro de quatro gerações o inglês será a língua universal. Nossos idiomas morrerão e serão apenas referências históricas.
Na realidade, a língua é um instrumento de identidade e cultura. Hoje, mais do que nunca, tornou-se, também, uma fundamental ferramenta da identidade nacional.
Quando em 1989 visitei Angola, o Presidente José Eduardo dos Santos falou-me da dificuldade dos projetos de educação e das relações tribais, pela barreira das línguas. Disse-lhe que o colonizador português, que tantos erros cometeu, deixou um instrumento político que podia ser a chave da unidade nacional: a língua. Dei-lhe o exemplo do Brasil, onde a língua portuguesa foi o veículo do país continente, valendo-se dela, idioma de cultura, para forjar a unidade e a identidade nacional.
Veja-se, agora, o que ocorre no mundo. A Catalunha reeduca o seu povo no catalão, língua oficial, para ter identidade. Na Argélia, com o radicalismo que vive o país, proíbe-se falar francês, e o árabe é declarado única língua a ser falada. A China tem como um dos seus grandes problemas os quarenta idiomas e dialetos que lá existem. A URSS fracionou-se muito pelo artificialismo da unidade, dividida em nações que falavam a sua própria língua.
O português foi para nós, brasileiros, com o nosso gênio, aquilo que hoje se descobre: a importância da língua na construção política.
A aventura do português é, sem dúvida, impressionante.
Ao iniciar, no século XV, sua expansão para fora da faixa mais ocidental da Península Ibérica, ganhou primeiro o Atlântico e depois o Índico, fixando-se nas ilhas e em pequenos e numerosos portos ao longo das praias que bordejam o que os gregos chamavam de Rio Oceano. Língua de marinheiros, tornou-se o idioma de ligação dentro dos breves espaços das feitorias e o falar do comércio com os povos que lhes eram vizinhos. Impôs-se como língua de beira-mar e de viagem, insulana, quer a cercasse o mar ou a isolassem a estranheza e a hostilidade das terras que a envolviam. Isso não impediu que se tornasse a língua franca do mercadejo nos litorais da África e do sul da Ásia; que se fizesse a língua de corte, a exemplo do que sucedera com o francês na Europa do século XVIII, em reinos africanos como os do Benim, do Congo e do Warri; que entregasse palavras e modos de dizer a numerosas outras línguas, do iorubano ao japonês; que marcasse profundamente não só o vocabulário, mas também a sintaxe de idiomas como o paplamento e o urrobo; que criasse novas línguas, como os crioulos de Cabo Verde, de Casamansa, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom, e os papiás de Málaca, do Ceilão, de Macau, do Timor e da Índia.
Depois ela, que não tinha terra para ser falada, achou o Brasil e, aqui, foi a língua dos bandeirantes, dos faiscadores, dos descobridores, parando apenas na imensidão da floresta ou nas encostas das grandes montanhas.
Por isso a globalização é uma ameaça às línguas nacionais. Devemos defendê-las. Cada país, ao seu modo, contra a invasão da cultura enlatada, resistindo contra a unificação dos valores espirituais, na razão em que estes se tornam objetos de comércio, apenas um item na pauta de exportação.
A questão nacional passa por aquela do idioma. Não só a esfera religiosa, mas também a língua constitui uma trincheira importante contra a desagregação cultural, a invasão de outros valores, a mutilação da identidade de um povo. A resistência de muitas nações constitui exatamente nisso: a falar o seu próprio idioma, apesar da repressão dos dominadores. A esse respeito, temos inúmeros exemplos.
A língua é signo, mas é também afirmação de identidade; é código, mas também forma de resistência; instrumento de comunicação, mas também repositório de valores espirituais caros a uma determinada cultura.
No Brasil, a língua portuguesa cumpre essa função política, que é conservar nossa identidade e assegurar a unidade nacional.
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Começo do fim
Em 1972 as Nações Unidas realizavam em Estocolmo a primeira conferência mundial do meio ambiente. O assunto começava a ser objeto de preocupação do mundo inteiro, com a constatação de que a agressão ao meio ambiente começava a mudar a face da Terra. Eu era Senador da República e me mantinha atualizado lendo algumas revistas francesas já preocupadas com o tema. Nelas encontrei a afirmação de Claude Lévi-Strauss de que o primeiro e grande poluidor do planeta era o próprio homem. Dele partiam as ações que impactavam negativamente a natureza.
Naquela época tinha havido uma mortandade de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas que surpreendera a todos, pois nunca tinha acontecido com tal dimensão. Com a minha preocupação a respeito deste assunto, parti para fazer um discurso no Senado Federal, que foi o primeiro sobre o tema colocado no debate político nacional, e a partir desse momento começaram a pipocar muitos artigos e análises sobre meio ambiente. Mas o assunto só veio verdadeiramente a tomar corpo e assunção quando se tornou um movimento global, surgindo partidos políticos no mundo inteiro e organizações internacionais para a preservação do meio ambiente.
Essa preocupação dominou todas as consciências, pois é uma ideia generosa abraçada por todas as pessoas, uma vez que a natureza faz parte das nossas vidas. Por outro lado, os cientistas chegaram à conclusão de que, embora a Terra vá durar uns cinco bilhões de anos antes de ser destruída pelo Sol, o atual estágio da natureza, que possibilitou o surgimento do homem e de toda a vida em nosso planeta, desaparecerá num prazo imensamente menor.
Em 1985, quando assumi a Presidência da República, o assunto do meio ambiente explodiu com sua politização e, em seguida, após a queda do muro de Berlim, com o vazio de ideologias, o tema ocupou o lugar central do debate político mundial. O Brasil ocupou o banco dos réus naquele momento, sob a invocação de que a Amazônia era o pulmão do mundo e nós, com os desmatamentos e os incêndios, estávamos destruindo uma parte essencial da ecologia.
Coube a mim defender nosso País dessa acusação, em parte verdadeira. Então criei o programa “Nossa Natureza” e o Ibama, instituto que cumpriu e cumpre um grande trabalho, e mandei nosso Ministro das Relações Exteriores defender que a primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, depois da de Estocolmo, fosse realizada no Brasil. Mostrávamos assim que nada tínhamos a esconder e estávamos fazendo a nossa parte com grandes programas de defesa do meio ambiente, exercendo um papel de liderança em vários organismos internacionais com total empenho no combate à destruição da natureza e seus problemas.
Agora, na própria carne, estamos sentindo o quanto se aproxima o caminho de destruição da vida na Terra e a desarrumação do clima com o sofrimento provocado por El Niño e La Niña numa tragédia nunca registrada no Brasil — desastre como os que hoje estão disseminados no mundo inteiro com tornados, tufões, tsunamis, inundações e vulcões, que surgem cada vez com mais violência, a destruir tudo e ceifar milhares de vidas.
Minha solidariedade, tristeza e revolta com o que ocorre no Rio Grande do Sul. Com tudo isso só temos uma coisa positiva: a solidariedade, a bondade e a fé do povo brasileiro expressas em doações, trabalho e orações pedindo a Deus pelo Rio Grande do Sul e pelos gaúchos.
Os governos federal, estadual e municipais estão aplicando todos os esforços para ajudar o povo gaúcho. O Presidente Lula já foi ao Rio Grande do Sul três vezes após o início dessa catástrofe.
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A fome vem de longe
A história do alimento é a história do próprio homem. A primeira demanda que o homem tem para viver é justamente a de comer. A segunda é a de manter-se em segurança. Sem ela, ele não come, como também não tem direito à habitação, à vestimenta, que são os dados fundamentais do princípio da vida.
Agora vejo na mídia que o problema da fome voltou a ser alvo de preocupações muito grandes. O Presidente Lula, desde que assumiu a Presidência pela primeira vez, se preocupou com esse problema e já falava na obrigatoriedade de que as pessoas tivessem asseguradas três refeições por dia, café, almoço e jantar. Para isso criou vários mecanismos para ajudar a diminuir e eliminar a mais terrível das ameaças à vida, que é justamente a fome.
Eu também sempre me preocupei com o problema. Nas Nações Unidas, em 1985, logo que assumi a Presidência da República, ocupei aquela tribuna, em que o Brasil abre a Assembleia Geral, para dizer o seguinte:
“— Para que haja paz, tem de haver democracia e liberdade. Liberdade contra a fome. O mundo não pode ter paz enquanto existir uma boca faminta em qualquer lugar da terra, uma criança morrendo sem leite, um ser humano agonizando pela falta de pão. Os alimentos não podem continuar sendo apenas mercadorias especulativas das Bolsas. A ciência e a técnica estão aí, através da engenharia genética, anunciando uma nova era de abundância. A humanidade, que foi capaz de romper as barreiras da Terra e partir para as estrelas longínquas, não pode ser incapaz de extirpar a fome. O que se necessita é de uma vontade mundial, é de uma decisão sem vetos. É urgente um plano de paz pela extinção da fome.
O Brasil, que vive o paradoxo de ser grande produtor de alimentos, enquanto luta para eliminar do seu território os bolsões de fome, está disposto a participar com entusiasmo de um grande esforço de mobilização da comunidade internacional para eliminar esse flagelo antes do fim do século.” (Eu falava em 1985, quando estávamos perto da mudança para o século 21.)
“Este desafio poderá ser a oportunidade para que a ONU e suas agências superem o descrédito do multilaterismo, demonstrando sua eficácia e validade.”
Os que trataram do assunto depois de mim, naquele cenário, não me creditaram essas palavras.
Na Presidência da República, criei o Programa do Leite: oito milhões de crianças recebiam um litro por dia. E a UNESCO concedeu um prêmio ao nosso País dizendo que se tratava do maior programa de fome e crianças no mundo inteiro.
Agora o IBGE publica uma pesquisa PNAD, dia 26/04, mostrando queda nos níveis de insegurança alimentar no Brasil. Segundo essa pesquisa, 4,1% dos domicílios brasileiros têm insegurança grave, e esse percentual representa 8.671 milhões de brasileiros. É ainda um número assustador, mas, sem dúvida, é o maior trunfo do Governo Lula até agora, quando esse grupo de pessoas caiu cerca de 76%, passando de 15,5% para 4% da população brasileira, o que representa um dado muito positivo. Em número de pessoas, 24,4 milhões de brasileiros. É um feito extraordinário, que, não sei por quê, não tem sido explorado.
O que temos a lamentar é que, segundo o IBGE, 4,1% dos brasileiros vivem em insegurança alimentar grave. No Norte, 7,7% dos domicílios; no Nordeste, 6,2%; no Sudeste, 2,9%; e 2%, no Sul do País. Assim a desigualdade interna é gigantesca.
O Governo Lula tem o grande trunfo de ter, no seu primeiro Governo, tirado o Brasil do Mapa da Fome. Agora o desafio do Governo deve ser o de enfrentar essa desigualdade, que, aliás, vem de longo tempo, contrariando o art. 3º, inciso III, da Constituição, que preconiza entre os objetivos fundamentais da República: “reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
O Passado no Presente
Ontem, nos 64 anos de Brasília, dei uma entrevista muito pessoal sobre a minha história com a cidade em que estou mais da metade da minha vida, desde a sua fundação. Hoje talvez seja, entre os poucos que vieram para esta capital, o mais velho dos deputados da transferência do Rio para Brasília que ainda sobrevivem. Nunca consegui libertar-me das lembranças do que foi vir morar aqui naquele ano de 1960, senão que era aventura e sonho. Aventura da mudança com o caos das construções e o sentimento de que éramos estudantes sonhando com o futuro. T. S. Eliot dizia que no presente e no futuro estão o passado e o futuro, que para mim foi chegando ao ver esta metrópole, a cidade crescendo cada vez mais com fábricas e projetos agrícolas em toda a região, a qual passou a ser de sua total influência.
Mas estão me cobrando as consequências políticas da mudança da capital. E me ocorre dizer que a maior de todas foi que o regime militar passou a tratar de forma equivocada o problema partidário, acabando com os partidos políticos e criando dois partidos, MDB e Arena, por decreto. Isso só desapareceu no governo do Presidente Geisel, por iniciativa do ministro Golbery, possibilitando a criação de outros partidos. Eu, no Congresso, comandei a aprovação dessa lei e fui relator da Emenda Constitucional que acabou com os atos institucionais, inclusive o AI-5.
O Brasil nunca teve partidos políticos nacionais, como ocorreu com seus vizinhos, o Paraguai, a Argentina e o Uruguai, que têm partidos centenários. Aqui tínhamos partidos regionais e só chegamos à existência do partido nacional pela Lei Agamenon Magalhães, de 1945.
O Getúlio, vitorioso em 30, entregou a Assis Brasil a elaboração da lei eleitoral, que nos deu o voto proporcional uninominal, uma ideia do século 19, que achava que todos que adotavam uma ideologia deviam ser representados no Parlamento. O exercício desse voto proporcional criou até hoje o caos do nosso sistema partidário e incentivou a multiplicação dos partidos. Todas as vezes em que se tentou barrar essa dinâmica foi encontrada resistência. Esta teve até a participação do Supremo Tribunal Federal, quando derrubou a Lei de Barreira, estabelecendo condições para o funcionamento de um novo partido ou dos partidos já existentes, que tinham mínima expressão eleitoral.
Para a mudança da capital, um dos argumentos mais fortes que adotavam os que eram contrários era a vulnerabilidade do Rio de Janeiro a essas pressões, que recaíam sobre o Poder Executivo e os demais Poderes, o que justificava o número de investidas de golpes e a expressão “A vila vai descer?”, que era o apelo à Vila Militar, que tinha o maior poder de fogo em nosso Exército.
Outro argumento era o de que o Rio de Janeiro, pela pressão da sociedade, era um caldo de cultura que apoiava o surgimento de bons políticos e o desaparecimento de maus políticos. E Brasília não teria essa condição, a começar pela diáspora de parte dos líderes, como o próprio Carlos Lacerda, que batia nessas teclas e não veio para Brasília.
Eu acho que a crise dos nossos partidos é o fato de eles não praticarem a democracia interna, e, dominando a estrutura partidária, também não praticarem o exercício da política do interesse público. Fica o terreno da corrupção e da anarquia. Isto, aliado ao voto proporcional, é um casamento perfeito para alimentar a crise dos partidos.
A verdade é que agora, depois que o Legislativo encheu de dinheiro os partidos, estes passaram a ser mais disputados e aumentou a vontade de criá-los. Temos 29 partidos e cerca de 50 em criação.
Hoje, a judicialização da Política e a politização da Justiça, na expressão de Jobim, podem levar o País à ingovernabilidade.
Sem partidos fortes não teremos democracia forte.
Ataque inútil
O mundo está assistindo — perplexo e, ao mesmo tempo, temeroso das consequências que podem ser geradas — a guerras localizadas no Oriente Médio. A maior e a raiz de todas elas: a luta de Israel contra os países árabes. Vimos, ontem à noite, o que foi proporcionado pela televisão: nos céus de Israel, mísseis iranianos e o escudo de ferro israelense em enfrentamento.
Sem dúvida, é uma irresponsabilidade essa atitude do Irã de atacar o território israelense, porque isso não se enquadra em represália nem com a cobertura dos instrumentos legais que regulam as relações entre os países aprovadas pela ONU.
O ataque à Embaixada iraniana por Israel não se configura em um ataque ao território do Irã. Portanto, esta atitude da teocracia iraniana, comandada pelo aiatolá Khamenei, não tem cobertura legal, uma vez que as embaixadas não constituem território dos seus países, mas o reconhecimento de que estes espaços têm independência e autonomia, sob a jurisdição do país representado, diferentemente do ataque iraniano, que se dirigiu ao território de outro país, no caso Israel, o que todo o mundo e as instituições multilaterais condenam, pois a soberania e a integridade territorial do país foi claramente violada.
Felizmente a América Latina é o continente mais pacífico da face da Terra. A última guerra que tivemos foi a do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, por volta de 1932. Temos um equilíbrio estratégico na América do Sul que desestimula qualquer solução de força, pois nossos orçamentos militares são pequenos e nossas Constituições pregam o pacifismo. Assim, com o exemplo do Oriente Médio, devemos ser sempre vigilantes para que não se instale qualquer conflito no território da América Latina. É bom lembrar que Churchill, quando denunciou o rearmamento da Alemanha, foi acusado de ver fantasmas ao meio-dia. Assim devemos imediatamente evitar essas bravatas venezuelanas de outro chefe de Estado adepto da força, destruindo as instituições democráticas, que agora ensaiou invadir o território de Essequibo, fato que não pode parecer para nós da mesma maneira como o que ocorreu com Churchill.
É bom lembrar que essa questão já tem mais de um século. Eu, em 2007, em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo, denunciei a atitude de Chávez ao tentar tornar a Venezuela uma potência militar, adquirindo caças russos, estações de radares chineses ultrassofisticadas, navios, submarinos, milhares de rifles poderosos, distribuídos a milícias populares, com o direito de produzi-los.
Afirmei no Senado, naquele tempo: já que habitamos um continente pacífico, armar-se desta maneira, ensejava as perguntas: Contra quem? Para quem? Com que objetivo? Denunciei que o objetivo era tomar o território de Essequibo da Guiana. O que agora acontece foi previsto por mim, como a questão de limite da qual o Brasil participou e perdeu, no laudo do rei da Itália, parte do nosso território que nos levava à fronteira com a bacia do rio Essequibo. Logo, um ato dessa natureza, que, agora, Maduro confessa ser um dos seus objetivos, nos oferece uma visão do perigo que representam para nós uma ditadura na Venezuela e atos como esse do Presidente Maduro. Chávez dizia: “A revolução na Venezuela é pacífica, mas não desprovida de armas.” Lembrava e se inspirava na frase de Lenin, “Camaradas, agora não necessitamos de oposição, é melhor discutir com rifles”.
O ministro Nilson Gibson, em suas memórias, fala de uma proposta venezuelana ao Brasil para reabrirmos essa questão, que nos daria uma parte do território conquistado. O Brasil seria seduzido pela Venezuela para juntos reabrirmos o caso das fronteiras com a Guiana; ao aceitar essa ocupação, teríamos uma parte daquele território.
Assim, devemos tomar esse assunto do Oriente Médio como um alerta para não permitirmos que se instalem em qualquer país da nossa região armamentos que ameacem o equilíbrio estratégico da América Latina.
Roseana e Ziraldo
Estes últimos dias foram de muita emoção para mim. Primeiro tive o choque da notícia do ataque que sofreu a grande poeta Roseana Murray — felizmente seguida pela informação de que ela está fora de perigo e atravessou a emergência. Depois veio a morte do Ziraldo, velho amigo, extraordinário artista.
Não sei se souberam o que aconteceu com a Roseana Murray. Nós nos tornamos muito amigos por intermédio de meu querido Juan Arias, grande jornalista e escritor espanhol, a quem devo minha primeira apresentação aos leitores espanhóis. Correspondente de El País no Brasil na última fase de sua carreira, tendo sempre as melhores fontes mundo afora, Juan e Roseana formam um casal admirável.
Ela é uma grande poeta, consagrada, no auge do seu reconhecimento nacional, com enorme sensibilidade e o dom de comunicação especial com o público infantil. Sua bibliografia é muito extensa, tendo parcerias com os principais ilustradores do livro infantil no Brasil, inclusive o Jardins, com o Roger Mello, um dos melhores artistas do livro brasileiros, que ganhou o Prêmio do Livro Infantil da Academia Brasileira de Letras. Ela tem maravilhosa facilidade de comunicação com as crianças.
Roseana e Juan vivem em Saquarema, e foi lá que, saindo para uma caminhada, ela foi atacada inesperadamente por três cães da casa vizinha. Maltratados, criados dentro dessa obsessão pela violência que atravessa os séculos e parece ter um surto neste milênio que devia ser o da Paz, os animais saltaram um alto muro e a derrubaram, ferindo-a barbaramente. O comportamento dos donos dos animais — mais que irresponsável, criminoso — precisa ser punido com severidade que sirva de exemplo.
Transportada para um hospital da região, Roseana teve o atendimento necessário e a vida salva. A notícia que tenho é que seu quadro de saúde é estável, tendo perdido um braço e uma orelha, entre os muitos ferimentos. É claro que depois terá uma longa travessia para se recuperar física e emocionalmente, mas os amigos ficamos esperando sua volta para casa e para a poesia, que nunca a abandonará.
Conheci Ziraldo no final dos anos cinquenta, quando chegamos ao Rio de Janeiro, ele vindo de Minas Gerais e eu, do Maranhão. Era um artista que superava a facilidade do traço com uma grande percepção do universo humano, que fazia com que suas ilustrações e seus personagens alcançassem rapidamente seu público. Mas ele não se limitava ao caricaturista ou ao ilustrador. Lembro-me como, recebendo de Odylo Costa, filho a tarefa de transformar graficamente o velho O Cruzeiro, logo criou uma revista clara e agradável de ler. Verdade que a seção de humor ganhou um destaque especial, inclusive com as impactantes “fotofofocas” (depois tornadas em “fotopotocas”), em que o balãozinho do diálogo nos revelava o verdadeiro pensamento ou a conversa dos fotografados.
Seu enorme sucesso logo se tornou internacional e se estendeu do cartaz — que cobriu do cinema novo às boas causas com a mesma inteligência e o mesmo impacto — à literatura infantil. Nesta, também, mostrou que em qualquer maneira que resolvesse se expressar era bem-sucedido, indo dos quadrinhos da Turma do Pererê — em que, creio, introduziu a primeira personagem indígena da nossa literatura infantil — à sofisticação do Flicts, a cor que busca sua identidade, e mostrando que também era um escritor de enorme qualidade.
Quando lançou O Pasquim, que desafogou, enfrentando as barreiras da censura, a oposição ao regímen militar, Ziraldo mostrou também sua capacidade de jornalista, levando o tabloide ao enorme sucesso de público. Seu combate político o conduziu à prisão e às enormes pressões da censura sobre os comunicadores.
Sua morte, mesmo chegando com a naturalidade com que chega aos velhos, me entristece. É um destes pedaços de vida que vão ficando pelo caminho.
Dias de muita emoção.
Odylo e o Jornal do Brasil
Quando iniciava minha vida política, sentando-me como suplente nas cadeiras do Palácio Tiradentes, tive a oportunidade de acompanhar de muito perto a maior transformação por que passou a imprensa brasileira: a que Odylo Costa, filho fez no Jornal do Brasil. Agora Luiz Gutemberg publica JB: A invenção do maior jornal do Brasil, em que conta a reforma com os olhos de quem era então um jovem repórter.
Conheci bem as circunstâncias que levaram Odylo ao JB. O jornal era propriedade do Conde Ernesto Pereira Carneiro, empresário pernambucano que o tinha como principal ativo. Este era casado com a filha de um grande escritor e jornalista maranhense, Dunshee de Abranches, Maurina, que todos tratavam de Condessa Pereira Carneiro. Em 1954 o conde morrera e deixara para ela o jornal. Amiga de Odylo — que fora amigo de seu pai —, a Condessa o chamara para reconstruir o jornal. (Tornei-me, pouco depois, muito seu amigo.)
O Jornal do Brasil fora fundado por Rodolfo Dantas no começo da República como um jornal monarquista. O novo regime o depredou e ameaçou. Ruy Barbosa teve a coragem de comprá-lo, mas o viu ser novamente destruído. Ao acabar o violento governo Floriano, os irmãos Mendes de Almeida tornaram-se os terceiros proprietários e fizeram dele um jornal popular. Ambiciosos, tomaram iniciativas caras e precisaram de capital — foi quando entrou Pereira Carneiro, que logo depois da Primeira Guerra se tornaria o único proprietário. Aos poucos o jornal virou uma empresa comercial lucrativa — o único jornal brasileiro que realmente gerava lucro, pois vivia dos pequenos anúncios, abandonando completamente a informação e a opinião. Os “classificados” geravam receita direta e indireta, com o pagamento dos anúncios e a compra do jornal para procurá-los .
Eu já lhes falei de Odylo, um dos melhores seres humanos que conheci. Sou até um pouco suspeito para falar dele, pois foi um dos maiores amigos que tive, amigo de todas as horas. Nos conhecêramos quando voltara ao Maranhão para participar do resgate do Estado da velha política. Era um extraordinário poeta, tinha uma generosidade, uma bondade exemplares, uma cultura que abrangia todos os horizontes, uma capacidade de trabalho insuperável. Compadre de Virgílio de Melo Franco, por sua mão conheci Afonso Arinos e outros líderes da UDN. Amigo de Manuel Bandeira, Drummond e dos maiores escritores brasileiros e portugueses, me aproximou deles.
Gutemberg publica os testemunhos de muitos dos grandes jornalistas — ou artistas gráficos, como Amílcar de Castro — que participaram da aventura de transformar o Jornal do Brasil no JB que foi durante muitos anos o padrão do bom jornalismo no País. Os testemunhos e a narrativa contam o que aconteceu — num período muito curto — e explicam que suas ideias tenham se expandido nos anos seguintes, quando ele já deixara o jornal.
Pequenos papéis amarelados, reproduzidos nas ilustrações, exprimem as ideias de Odylo e são mandamentos que toda imprensa devia seguir: “Objetivos: a) prestígio nas classes dirigentes; b) leitores nas classes populares. Para atingir o 1º objetivo […] é preciso: 1) melhorar a colaboração; 2) fazer com que o leitor do Jornal do Brasil encontre: a) todas as notícias de seu interesse, b) apresentadas com inteligência e senso jornalístico, i. é, c) revestidas de objetividade e independência.” E adiante, sobre um tema, mas valia para todos: “Melhor não ter do que não ter o melhor.”
Odylo entrou em conflito com Nascimento Brito, genro da Condessa, e deixou o JB em dezembro de 1958. Mas, ao contrário do lugar-comum “o mal já estava feito”, o bem já estava feito, a reforma continuou, inevitável.
Ler a história desses dias é conhecer como é possível, de um par de “objetivos”, construir um conceito que influenciou profundamente o Brasil. Para quem, como eu, viu a entrega diária de Odylo à tarefa que se dera, o viu em aparente desordem erguer do chão “o maior jornal do Brasil”, faz aflorar a imensa saudade, que não passa, do homem exemplar, do amigo querido.
A Democracia e as leis da guerra
Nos conceitos de progresso do ser humano que eram correntes quando iniciei minha vida, um dos que pareciam mais sólidos era o de que o homem deixara de ser um animal naturalmente violento para, adquirindo inteligência, organizar-se em paz. A ideia do progresso biológico foi desmentida pela simples aplicação da teoria da evolução, e a sociedade pacífica nunca prevaleceu. Continuávamos, no entanto, pensando que a Humanidade progredia em relação ao sistema de governo, encaminhando-se inexoravelmente para a democracia. Se não é verdade, pelo menos acreditamos que ela é a única forma razoável de Estado. É um problema o sujeito dessa frase. Acreditamos, eu e você e, espero também, a maioria das pessoas.
Assim também pensou Fukuyama que, num livro famoso, disse que no século 20 se chegara ao fim da história, com o domínio da democracia. Hoje a sua sobrevivência é controversa. Ela está sob ataque em todo o mundo. O pior é que o combate é feito usando a liberdade e as garantias que só ela estabelece.
Entre as sínteses de ideias que não podemos esquecer, duas delas se contrapõem e já citei aqui: a de Hobbes, de que o medo da morte violenta forma o Estado; e a de Lênin, invertendo Clauzewitz, que se deve aplicar à política as leis da guerra. Exterminar o adversário.
Em todo o Mundo se vê a aplicação da tese de Lênin e a derrota da fórmula de Hobbes. Por toda parte vemos a violência ser adotada como instrumento da política e os Estados serem usados para incutir o medo da morte violenta.
Esta semana que passou um discurso de Donald Trump mostra como se usa a violência política para a destruição da democracia. Ele subiu o tom de suas ameaças, certamente por estar convencido de que elas agradam a sua base. Prometeu um banho de sangue e o fim das eleições se não for vitorioso na tentativa de voltar à Casa Branca; e, agitando a bandeira do combate à imigração, afirmou que os imigrantes não são humanos, são animais, e devem ser exterminados. Esse tipo de discurso é tudo menos original.
A possibilidade real de os Estados Unidos, com todo o seu poder, se tornarem uma ditadura de extrema-direita é uma perspectiva que contraria toda a esperança que deposito na democracia. Mas antes mesmo da democracia ser completamente destruída o seu controle pode provocar muitas lágrimas. É o caso do último visitante de Trump, Viktor Orbán, que faz as maiores barbaridades contra seus adversários e contra os imigrantes.
É nesse contexto que acontece a tragédia inaceitável na faixa de Gaza. O Ministro Mauro Vieira falou em atos ilegais e criminosos. Os crimes de guerra foram há muito codificados. Em nenhum caso se pode atacar a população civil. O que aconteceu em Dresden, Hiroshima e Nagasaki está tão barrado quanto os inúmeros e sistemáticos atos dos nazistas contra os civis nos países invadidos, nos países ocupados e na própria Alemanha, quanto a crueldade exacerbada dos japoneses na China, no Sudeste Asiático, nas ilhas do Pacífico.
É inaceitável, por isso, que em Gaza dezenas de milhares de civis — crianças, mulheres — tenham sido mortos, que cidades inteiras tenham sido destruídas, que hospitais sejam atacados, que milhões de palestinos sejam obrigados a peregrinar aterrorizados de um lado para outro do pequeno território, que se impeça essa população de receber alimentos e remédios. Não há barbárie que justifique esta barbárie.
Desapareceram as utopias e estamos num momento de desencanto quanto à marcha da civilização. Mas não morreram os nossos ideais de um mundo mais justo e da vitória final do homem liberto de todas as seduções da violência.