José Sarney
As Domingas do Advento
O cristianismo se define em dois momentos: a vinda de Cristo e a Páscoa, o nascimento e a ressurreição. Em torno desses marcos gira o ano litúrgico. Tudo começa com a chegada do Menino Jesus, que se celebra em quatro semanas e quatro domingas, resumo de uma expectativa milenar, anunciada ao longo da Bíblia.
Essas domingas — os ofícios dos domingos — foram sempre tempo de grande chamamento à penitência, pois, celebrando “a palavra, que acaba de acontecer” (Lc 2, 15), nos preparamos para a palavra anunciada pelo próprio Cristo. O Padre Antonio Vieira deixou vários sermões de domingas do Advento, seguindo a antiga tradição de Santo Agostinho. Neles, ele é severo com o homem, especialmente — pregava na Capela Real ou em São Roque, a igreja dos Jesuítas em Lisboa — com a corte. Chama a atenção para a fragilidade da vida terrestre, quando o que importa é a vida eterna; e a vida eterna depende de nós: “porque não trabalharemos muito por nascer muito honradamente?” E, respondendo à doutrina do “sola gratia” (somente a graça) de Lutero, explica: “Para um homem se converter, não basta só vida, e saúde, e juízo, mas é principalmente necessária a graça de Deus. [Mas] parece-vos que é boa diligência multiplicar as ofensas a Deus para granjear a graça de Deus?”
Uma das referências do Advento é São João Batista, que, com o batismo, limpa o homem para o encontro futuro, e com uma limpeza a que se submete, enquanto homem, Deus. Esse lavar não é apenas a purificação ritual que precede o sacrifício, mas o despojamento, pelo homem, do mal. Vieira lembra que o importante não é o primeiro nascer, mas o segundo. A referência é justamente o Batista, “entre os nascidos das mulheres nenhum ressuscitou maior” (Mt 11,11): “Ser o maior dos nascidos, enquanto ressuscitado, isso é verdadeiramente ser o maior, e na nossa mão está, se o quisermos ser.”
Essa vontade de transformação interior, que se torna exterior por, ao abrirmos os olhos para nos vermos por dentro, deixarmos de ver uma coisa por outra e abandonar a cegueira, é o efeito do batismo, o que não sei se poderíamos chamar de preparação para a ressurreição.
Mas ponhamos os pés na terra. Aqui fora o mundo se contorce, enquanto nossos corações se afligem no contraste entre a expectativa, a esperança da chegada do Menino Jesus e a guerra, a fome, a violência, a injustiça. Como podemos suportar o martírio de Alepo? O que fazer? Afastar a indiferença, para nós, que estamos tão distantes que o gesto material se dissolveria no espaço, é estender e aprofundar nossa fraternidade. Se não podemos chegar a Alepo, cumprir o simples mandamento: “amai ao próximo”.
Amando ao próximo, em toda a extensão de seu significado, é que estaremos preparados para Sua vinda, para a chegada do Menino Jesus.
A democracia e os poderes
Foi um ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal quem, há mais de 10 anos, profetizou que se estava estabelecendo no Brasil um procedimento que iria dar muito trabalho às instituições. Era o fato de que, quando se criava um impasse político, em geral no Legislativo, estava se criando também uma oportunidade de o submeter à Justiça, uma espécie de terceira instância, dando ao STF a função de harmonizar conflitos que deviam ser resolvidos pela própria política. Era o tempo do procurador Luís Francisco, que passou a ser popularíssimo porque tomava a frente para ser o xerife das mazelas do País e da política.
A Constituição de 88 criou as figuras da ADIN, dos direitos difusos — estes até fui eu quem criou, em 1985, quando mandei a Lei da Ação Civil Pública, que deu ao Ministério Público o grande instrumento de força que hoje tem —, e das ações cautelares que agregaram ao Poder Judiciário um protagonismo muito grande. A esse protagonismo chamou o Ministro Jobim de judicialização da política. E realmente isto aconteceu, com a consequência inevitável de politização da Justiça, hoje envolvida na solução das questões maiores e mais complicadas do Executivo, com grande apelo a aquilo que Ulisses Guimarães chamou a voz das ruas.
O Brasil sempre foi acostumado ao Poder Moderador, exercido no Império pelo Imperador, assessorado pelo Conselho de Estado. Como o Imperador tinha o poder de dissolver o Congresso e convocar eleições, quando surgia o impasse ele vinha e usava seu poder moderador. Graças a isso os partidos não se perpetuavam no poder, já que ele gostava da alternância. Se esse poder o auxiliou a governar com a Constituição que mais tempo durou — a de 1824 —, por outro lado criou o germe do republicanismo, a que aderiram aqueles que ficavam prejudicados com as mudanças de gabinete.
Na República, não havendo Poder Moderador e as crises continuando, como é próprio do Estado e da política, os militares, que a tinham fundado, passaram a exercê-lo, com as intervenções salvacionistas de que sofremos até 1985.
Agora surge uma grave crise institucional entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, e isso é muito mal para o País, necessitando que todos nós, brasileiros, lutemos para que ela seja superada. Ninguém mais do que eu, quando exerci a política ativa, prestigiou o Judiciário, compreendendo que, nas democracias fortes, é ele que assegura a força das instituições e sua vigilância. Assim, devemos dar condições aos nossos juízes para que ele cumpra a função moderadora necessária nas democracias fortes.
A democracia começou a tomar corpo, na instituição do Estado moderno, com a evolução da separação dos poderes de somente entre executivo e legislativo para a antiga fórmula de Aristóteles, retomada sucessivamente por teóricos como Maquiavel, Locke, Bodin, Hobbes até assumir a forma tripartite consagrada em O Espírito das Leis, do barão de Montesquieu, em que o Judiciário se torna a chave do sistema. É sobre ele que pesa a maior responsabilidade da harmonia entre os poderes.
É hora de fortificar o Poder Judiciário e acabar com esse mal-estar entre Congresso, STF e MP.
Adversário ou inimigo
A democracia é uma disputa entre pessoas que desejam influir ou exercer o poder, desde que começou a ser exercida pelos Estados criados ao longo de séculos de experiências, em busca de como evitar a violência e constituir-se o poder baseado em leis e não em homens, aquilo que hoje chama-se o Estado de Direito. Um dos métodos políticos do mundo democrático, no entanto, foi o de desclassificar o adversário.
Essa técnica ficou tão consolidada que agora mesmo, na maior potência do mundo, os Estados Unidos, a campanha presidencial foi feita com ataques pessoais, na descoberta e criação de escândalos, muitos deles tão escabrosos que parecia estarmos num país de instituições primárias. Assim, levou vantagem quem mais desmoralizou o adversário. Foi quase que um episódio vergonhoso ver o chefe da FBI anunciar, poucos dias antes da eleições, uma investigação que comprometeu a candidata do Partido Democrático, sob o pretexto de que poderia haver, num computador do marido de uma colaboradora, mensagens confidenciais de quando era Secretária de Estado. Veja-se os métodos que foram capazes de alterar decisivamente o resultado da eleição.
A luta pessoal, se por si mesma já é condenável pela baixaria que possibilita, fica mais grave quando o Estado participa nessa desclassificação do adversário. É como se a tortura fosse usada como uma política de Estado — o que aliás faz parte dos mandamentos de crueldade de Trump.
O Brasil atravessa atualmente uma fase de histeria contra os políticos, e se tenta não apenas desmoralizar as pessoas, mas demonizar a atividade política, generalizando o conceito de que todos os políticos são desonestos, sem dizer o que deve substituí-los. O maior perigo desse procedimento é ser uma proposta escatológica. Se ele já tivesse tido êxito em outro lugar do mundo, poderia ser um exemplo a seguir, mas julgar que é o Brasil que vai descobri-lo é também esquecer que, em toda parte que foi tentado, o resultado foi ou levar o poder aos militares ou destruir os países. Eles levaram a vários tipos de dissolução da sociedade e às ideologias que construíram os maiores campos de terror do mundo, como o nazismo e fascismo.
Lenine e Stalin tentaram estabelecer outro tipo de luta, pregando que a política é uma guerra, onde não há adversários, mas sim inimigos num campo de batalha, em que o objetivo da luta é destruir, matar, dissolver o outro lado.
Em seu livro Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, George Orwell criou o domínio do Big Brother, que controlava a vida de todos, numa antecipação da vigilância eletrônica das câmeras e gravadores, com seus ministérios promovendo o contrário de seus nomes: o da Verdade, a mentira; o do Amor, a tortura; o da Paz, a guerra; e o da Fartura, a fome.
Quantas violências e injustiças estão sendo feitas em nome da corrupção, que existe desde que surgiu o homem na face da terra e só desaparecerá quando a humanidade desaparecer.
No Maranhão estamos vendo uma forma trivial desse procedimento: espalhar o medo, ameaçar as pessoas, perseguir e jogar a polícia e a justiça para chegar ao objetivo de desconstruir os adversários ou inimigos.
Graças a Deus isto tem sido tentado por vários ditadorezinhos de papel e o fim de todos eles é a derrota e o esquecimento.
O medo como intimidação
Já citei muitas vezes o aforismo greco-romano de que “primeiro no mundo o medo criou Deus”. O medo é um sentimento que nos une aos animais e está relacionado com o conhecido e o desconhecido. Sabemos o que podemos sofrer e imaginamos o que podemos sofrer.
Com a vida social, o homem foi se libertando do medo. O Leviatã nos explica que o medo da morte leva o homem a buscar a paz que só a sociedade pode garantir. Mas à paz se opõe o desejo de poder. A busca de poder desequilibra a harmonia social e reintroduz o medo.
Se no começo o medo era simples — de animais, de fenômenos naturais ou do vizinho —, hoje, sem abandonar essas sensações atávicas, inclusive a visão do lobisomem e do bicho papão, ele tornou-se muito complexo. Sabemos que existe um arsenal nuclear que pode destruir, várias vezes, a vida sobre a terra; ou podemos ter o mesmo resultado se não formos capazes de reverter a marcha do aquecimento global — que Deus dê ao Trump o bom senso que ele não parece ter! E conhecemos as guerras, as mais midiáticas, como as da Síria e do Iraque, ou as mais escondidas, como a do Sudão do Sul, que tomam a forma do genocídio. E a fome, que tanta gente passa, e é outra maneira de morrer.
Quem não tem medo da violência, seja a das armas, que mantém o Brasil numa triste liderança mundial, e que chegou aos estados com a sua brutalidade, seja a dos acidentes de trânsito, com a legião de vítimas aumentando agora pelo uso do smartphone? Ou de perder o emprego, de não poder ganhar o pão nosso de cada dia? Ou de ficar doente, e não ter socorro, tal é o estado de calamidade em que está a rede de saúde? E a ideia de aprender, da educação melhorar a vida das gentes, que vai por água abaixo?
Michel de Montaigne, que viveu em época de guerra de religiões, quando bastava uma suspeita para um massacre, escreveu um dos capítulos de seus Ensaios sobre o medo. Ele lembra que “aqueles que têm um medo forte de perder seus bens, de ser exilados, de ser subjugados, vivem em completa agonia, sem conseguir beber, comer e repousar, enquanto os pobres, os banidos, os criados vivem frequentemente em completa alegria. E tantas pessoas que, na impaciência causada pelo medo, se enforcaram, afogaram e precipitaram, nos ensinando que o medo é ainda mais insuportável que a morte.” E tem uma frase definitiva: “O de que tenho mais medo é do medo.”
É que o medo é escorregadio, ele se insinua nos espíritos e coloca as pessoas fora de si, capazes de fazer o que não fariam — contra o próximo e contra si mesmo. Voltando ao que Hobbes colocou no Leviatã, pior que o medo é o uso do medo como instrumento do poder.
No Maranhão, por exemplo, hoje o medo é esse instrumento, utilizado politicamente. Todos têm medo: os comerciantes têm medo das fiscalizações dirigidas; os políticos têm medo das comissões de inquérito, semelhantes às da Inquisição, que levavam às fogueiras; os funcionários têm medo das ameaças e das demissões; cada cidadão tem medo de uma forma de perseguição. Uma denúncia aqui, uma demissão acolá, uma ameaça mais além, chantagens, pressões, insinuações, calúnias, difamações, falsidades… Tudo isso rasga a coesão social, rompe a vida das famílias, mina o futuro.
A ideologia semeia os dogmas — e ai daqueles que não acreditem. Hoje ela desapareceu, tornou-se retórica antiquada; só fez mal à humanidade. Nada fez mais medo, nem a guerra nuclear, que o regime encarnado em Stalin, que matou mais de 30 milhões de pessoas. Será que alguém pensa que o comunismo pode renascer no Maranhão?
Que saudade do medo simples de minha infância, quando — é minha primeira memória — eu e meus irmãos espiávamos, de detrás da porta, os índios que entravam na cidade em fila!
O que o medo não pode nos tirar é a esperança.
Divagações sobre o passado
Muitas vezes me disseram que era necessário dar um murro na mesa. A expressão, bem simplista, é daqueles que acreditam que se podem resolver impasses com gesto de força. Respondia que podia quebrar a mesa ou quebrar a mão, sem excluir quebrar as duas.
Cada vez mais consolido minha visão de que governar é harmonizar conflitos, exercer até o extremo a arte da paciência e da prudência. Isso não exclui o dever de ser firme quanto à defesa do interesse público. Não há maior coragem do que resistir ao emprego da coragem. Num regime democrático é preciso ter democratas. E a democracia começa dentro de cada um, é a consciência do óbvio, de que o nosso direito termina onde começa o dos outros.
A força é sempre a inconformação com os limites que nos são impostos pelo direito, pela lei, pela ética, pela moral. É o poder ilegítimo de impor vontades. Os custos dos impasses são maiores que os da negociação e do diálogo. Infelizmente, as instituições no Brasil são frágeis, por elas mesmas e pelos outros para as quais são feitas.
Tenho guardado silêncio sobre as circunstâncias do meu governo. Já fui julgado pelo povo brasileiro, no respeito com que me trata, nas lembranças com que me recorda. Agora mesmo, em recente pesquisa sobre os ex-presidentes, após Getúlio (e pour cause) estou empatado com Juscelino. Lembro esse fato porque a toda hora surgem julgamentos carregados de velhos preconceitos e distorções, como se nada houvesse acontecido depois que fui presidente, há 14 anos.
O grande problema brasileiro continua sendo político. O subdesenvolvimento político cria solidariedade com o econômico e o social.
Quero apenas lembrar que, em 1989, último ano do meu governo, a taxa de desemprego foi de 2,85%, residual, o PIB cresceu 25%, uma Argentina, tivemos as maiores safras agrícolas da nossa história, a geração de energia aumentou 31% e as linhas de distribuição, 57%, também recorde. Passamos a Inglaterra e a Itália. O Brasil saiu do 8º lugar para ser a 7ª potência industrial do mundo. A siderurgia expandiu-se 25% e a dívida externa diminuiu de 37,5% do PIB para 24,8%. Petróleo, as reservas aumentaram três vezes. Construímos os gasodutos de Mossoró, no Rio Grande do Norte, a Camaçari, na Bahia. De Campos, no Rio de Janeiro, a São Paulo, SP. A balança comercial superavitária era a terceira do mundo, ultrapassada apenas pelo Japão e Alemanha. Os programas sociais alcançaram índices jamais superados. O analfabetismo caiu 15% e a mortalidade infantil, 30%. Na área fiscal, encontrei um déficit de 2,58% e deixei, em 1989, um superávit primário de 0,08%, isto é, mais baixo 34%, um esforço fiscal extraordinário.
Mas a grande tarefa foi a transição sem traumas, conduzida com serenidade e tolerância. A inflação? A correção monetária distorcia os números e a economia convivia com várias moedas, o dólar, ORTN, moeda escritural e, por definição, moeda circulante, esta vulnerável ao pânico que surgiu com as expectativas do novo governo.
A correção mensal, dentro das circunstâncias daquele tempo, era a melhor vacina contra a recessão e a grande proteção dos salários.
Enfim, criamos uma sociedade democrática e o Brasil atravessou o gargalo institucional. E ficou o econômico, que é o cotidiano das nações.
Divagações sobre a paciência
Meu avô Assuero, quando eu entrei para a Academia Maranhense de Letras, ficou muito feliz. Ele era um lavrador do interior, nordestino que tinha emigrado do Ingá do Bacamarte, na Paraíba, cidade que só perdia, na fama de matar gente, para o Catolé do Rocha; o velho era uma força da natureza. Falava por provérbios. Fiz-lhe uma carta dizendo da minha glória provinciana. Ele a recebeu, soltou foguetes e ficou só alegria. Dona Tudinha, sua vizinha, vendo-o dessa maneira, perguntou-lhe por que tanta festa. Ele respondeu:
– Meu neto José entrou para a Academia.
– E o que é Academia, seu Assuero?
O velho respondeu:
– Não sei, dona Tudinha, mas sei que é coisa grande.
Nunca soube ao longo da vida de definição melhor. Lembrei-me dele ao indagar-me sobre a paciência.
O que é a paciência? A gente sabe o que é, ou mesmo não sabe, mas sabe que é coisa difícil.
É uma virtude que nos “permite suportar com resignação as infelicidades da vida, as injúrias, as ações dos outros”. Sem dúvida é uma virtude cristã perto do perdoar, longe da lei mosaica. De Gaulle dizia que ela era a virtude do estadista, e muitas vezes ele não a teve. Pompidou, este sim, teve demais e louvou a paciência como ninguém. Dela eu sempre fui devoto. Não faz mal a ninguém. Na paciência está a calma, a prudência, “a doçura que prepara os espíritos”, a “pureza de intenção e a piedade”, a “força que resiste aos obstáculos”, expressões de Talleyrand, citadas por Orieux.
Plutarco, em sua “Vidas paralelas”, ao falar de Péricles, chama-o de “admirável homem, não só pela brandura e suavidade, senão por sua grande prudência, e entre suas boas ações, a melhor, não ter dado poder à inveja e à ira nem olhado nenhum dos seus inimigos como irreconciliáveis”. E gloriosamente consagra-o como “digno da natureza dos deuses”.
Todos que tiveram responsabilidade de decisão, de uma maneira ou de outra, falaram da paciência. Não a arte de saber esperar, a calma de revide. Mas a virtude da prudência que, como diz um provérbio africano, “não é um remédio que se possa engolir”. É uma qualidade, uma conduta de vida.
Na minha última mensagem ao Congresso dediquei um título à “Paciência e Liberdade”, afirmando que “semeei o exemplo da paciência e da compreensão; preferi ser injustiçado a cometer injustiças, silenciar, a fazer calar, para que o país reencontrasse, na paz, o caminho da reconciliação de uma sociedade dividida pelo ódio, pelo ressentimento, pela amargura, pela prepotência”. Da paciência ninguém se arrepende; da impaciência, muitas vezes. Magalhães Pinto, um dia, disse-me um brocardo que não esqueci: “Nunca me arrependi das coisas que não fiz. A gente só se arrepende do que faz”. Da impaciência não me arrependerei, porque Jamais foi santa do meu altar.
Paciência, também, é o nome de uma planta europeia. Uma erva comestível, de cor verde, gostosa. Segundo os botânicos, é a única que contém “enxofre livre”. Não sei avaliar o que isso significa. Já o enxofre solto pelo vulcão Pinatubo nós sabemos que espalhou a morte e a devastação. Neste caso, por impaciência das forças da natureza. Também não sei a relação do enxofre com a impaciência, a não ser que é de enxofre a fumaça do Inferno.
E quem mora nos infernos? A paciência ou a impaciência? Mistérios do Céu.
Laboratório de sonhos
Eu sempre confesso que sou amarrado em bulas e remédios. Tenho problemas de insônia desde a juventude. O mal de Medéia: “Não dormirás jamais”. Mas não desisto de curar-me. Sempre estou atrás de médicos e sempre opino. Certa vez, em Nova York, no Centro de Pesquisas sobre Distúrbios do Sono, o doutor Torphy me atendeu com grande atenção. Perguntei-lhe:
“Doctor Torphy, seria possível fazer um laboratório de sono?”
Doctor Torphy, gentilmente, destruindo minha ilusão e minha vocação para prescrever condutas médicas: “No scientific!”
Não aguentei. Como não-científico o que havia lido em tantas revistas, tantas fantasias construídas nas seções médicas dos grandes jornais do mundo inteiro?
É que sempre tive a convicção de que os laboratórios de sono diziam quando a gente deixava de dormir e começava a sonhar. Nesse estágio, afirmava a literatura médica, os olhos reviravam, entrava-se em sono profundo e vinha o estágio necessário e preciso para que os médicos pudessem fazer o diagnóstico exato. Tudo desapareceu.
E agora? Como iria saber o que acontecia comigo? Não tive outra alternativa. Sonhar acordado, uma reação de compensar a frustração do sonho de um laboratório de sono.
Terminado o exame imaginário, perguntaria: “Qual o resultado?” A resposta: “O senhor não dorme porque foi presidente do PDS”. “Como? Eu fui presidente do PDS em 1979 e não durmo desde 1946, quando era da Esquerda Democrática”. “Por isso mesmo. O senhor mergulhou na insônia da política”. “E a cura?” “Entre para o Partido Verde. Tome chá de alface toda noite!”
É trágica a insônia, porque dormir é ter a possibilidade de sonhar. Leio em Gonzalo Montaner G. que o Chile, com todos os seus problemas, deve esquecer seus sonhos como nação. Coisa terrível! Condenar uma nação a esquecer os seus sonhos.
E depois, em vez de me preocupar com a falta de dormir, andava preocupado com a desgraça que seria para o Brasil esquecer seus sonhos de grande nação.
Haviam alguns indicadores graves de que o país poderia estar entrando numa fase de abandonar a possibilidade de sonhar e caminhar no pesadelo de uma abertura selvagem. Estava abrindo tudo sem negociar nada. Como quando queria abrir sua navegação de cabotagem sem pedir reciprocidade.
É alto demais o preço que estamos pagando pela nossa inserção na modernidade e na globalização. Pequenos países podem deixar de sonhar. O Brasil não pode. Deus nos fez grandes para os sonhos, para influirmos no destino do mundo, para não sermos pequenos. Para ajudarmos os menores e falarmos forte junto aos grandes.
Estávamos perdendo essa noção de grandeza. E senti a profundidade da afirmação: “La grandeur!”, como dizia De Gaulle. O Brasil não pode ser satélite. Tem de ser grande, não pode ajoelhar-se, como diz o povo.
Vamos tomar chá de alface para voltar a dormir e sonhar. Se necessário, com catuaba, barbatimão e pimenta-malagueta.
América, uma paixão.
Colombo era um herói fanático. Possuído pelo demônio da alucinação, via um mundo desconhecido e mágico, onde cresciam terras no oceano, fazia cálculos e fórmulas de distâncias irracionais e tinha pesadelos de venturas. Não era navegador. Sua profissão era delirar. Os sonhos de suas viagens tropeçavam sempre em imensuráveis pretensões. No meio das dificuldades, mais uma: a Guerra de Málaga. Mas ele não desistiu. Acompanha a caravana real, para onde se desloca, Córdoba ou Sevilha, pedindo, pregando, incendiando as imaginações da corte. Isto era por volta de 1487. E o dinheiro começou a aparecer. Um recibo do tesoureiro González: “Dí a Cristóbal Colomo (!) cuatro mil maravedís que Sus Altezas le mandara, por cédula del obispo.”
Sua nacionalidade é contestada. Ora genovês, ora sem precisão de origem. Um documento, até agora inédito, recibo, também do caixa da rainha Isabel, a Católica, chamado Pedro de Toledo, o identifica como “português” e tem o testemunho do contador Alonso de Quintanilha, do conselheiro Maldonado e do confessor Frei Hernando de Talavera.
A América foi descoberta sob o signo das mulheres. Foi a rainha quem acreditou em Colombo. Foi ela quem lhe abriu os cofres e as portas. Diz-se que o grande feito do almirante não foi ter vindo, mas ter voltado. E o meu amigo Augusto Marzagão deu a Colombo mais um título: foi o primeiro economista do mundo. Quando chegou, não sabia onde estava; quando saiu, não sabia onde esteve. E tudo por conta do governo.
As mulheres da América foram, ao longo da conquista, um deslumbramento. Ricardo Werren, que publicou um livro de muito sucesso, “A Conquista Erótica das Índias”, nos fala dessa paixão. Os descobridores ficaram, de logo, transtornados com as índias nuas. “Aquelas mulheres eram muito formosas, com os seios livres e as partes do mesmo modo, sem véu”, diz um cronista da época. É que na Europa as mulheres, com todas as visões do pecado, cultivavam os vestidos. O acosso sexual, como está na moda dizer-se, foi o primeiro crime. Diz Werren que foi uma maratona, uma carga de cavalaria. Este contato, mais do que as guerras, com a disseminação de doenças, matou mais da metade da população indígena. As mulheres serviam como fêmeas concubinas dos intendentes das tropas, serviçais. Esta página de maldição, agora, é estudada. Há exemplos fantásticos. Aguirre, governador de Tucumán, conquistador do Chile, foi o mais procriador: teve 500 filhos e um número indeterminado de amantes!
Cortez, sobre quem pesará para a eternidade o massacre do povo asteca, feroz, inteligente e hipócrita, um homem “típico do Renascimento”, tinha uma fascinação para com as índias e foi um grande promíscuo. Continuava o velho costume dos conquistadores. Horácio já recomendava possuir as “escravas”. Lembro-me de uma carta do Marquês de Pombal a Melo e Póvoas, então governador da recém-criada província do Rio Negro (Amazonas), na qual recomendava aos soldados: “Juntem-se às índias para preservar o sangue português.” Desse relacionamento surgiu uma fusão de raças e culturas, que hoje tem uma característica própria no fenômeno da mestiçagem, marca do continente americano.
A América recebeu doenças, importou sementes e exportou as suas plantas originais, como a batata, o tabaco, o milho e o tomate, mas, como revanche, exportou também a sífilis, daqui originária, cuja primeira vítima foi o arcebispo de Creta!
As orelhas
Por mim, o boxe não teria sucesso nem assistente. Não acho graça em um sujeito cair de murro no outro. Coisa de temperamento. Toda violência me agride. Não vi a tal luta de Mike Tyson nem a mordida de orelha que escandalizou o mundo. Mas ouvi muita conversa de gente indignada e de gente perplexa. “Foi coisa de animal”, disse o meu chofer. “O senhor não viu?” “Não, não vi”, respondi. “Pois veja” Eu disse, como diziam os franceses da Resistência: “Jamais” – e encerrei o diálogo.
“Coisa de animal” é como definiram esse tipo de esporte. Não sei se Freud o estudou para analisar o que leva as pessoas a gostar de ver indivíduos trocando sopapos, quebrando caras, maxilares, brutamontes enraivecidos, sangrando e todos pedindo mais.
Com certa perplexidade vi senhores sisudos, com ares de sábios, a Junta do Boxe de Nevada, num tribunal com todo o ritual da Justiça, proibindo Tyson de lutar, com o veredicto de que morder orelha desmoraliza o boxe. Ora, a orelha é um pedaço do corpo humano que tem raízes mitológicas. Ela era consagrada a Mnemósine, que, tendo como companheiro Zeus, foi mãe das nove Musas, cada uma tendo a seu encargo presidir uma ciência ou arte específica. Clio, a história; Talia, comédia e poesia; Euterpe, a música; Terpsicore, a dança; Melpômone, a tragédia; Erato, a lírica; Caliope, a épica; Polímnia, a retórica; e Urânia, a astronomia.
Pois é a orelha, com todos esses mantos de proteção, que Tyson violou. O padre Vieira, não propriamente da orelha, mas dos ouvidos que fazem parte do conjunto, dizia que os que governam tinham que ter dois ouvidos, um para ouvir o ausente e outro, o presente, acrescentando que o Espírito Santo tinha espinhos nas orelhas para que as coisas não entrassem de uma vez, dessem tempo à reflexão.
Popularmente, diz-se que fulano torceu a orelha, isto é, pagou pelo que fez, e muitas vezes para advertência o gesto que se faz é de “vou puxar tua orelha”. As velhas professoras do passado ensinavam com a mão agarrada na orelha, para que não se esquecesse do que se aprendia. Não sei se os lutadores do passado tinham as regras de Nevada ou se podiam morder as orelhas e dar golpes baixos.
Mas o certo é que Lucrécio, no seu “De Natura Rerum”, afirma que as armas antigas eram “manus, ungues, dentesque fuerunt”, isto é, mãos, unhas e dentes. No caso, Tyson entrou com os dentes e o Holyfield com a orelha. Costuma-se dizer que a briga de mulheres, não afeitas às armas, é com unhas e dentes. Depois, viu-se que no boxe isso também existe.
E na política, como é a luta? Acredito que com unhas, dentes, paus e pedras, facas no escuro e tiroteios. É uma luta, também, primitiva. É um vale-tudo. Comem-se orelhas de todo mundo, a toda hora, e ninguém é expulso, punido ou multado.
Na campanha presidencial que virá, na linguagem antiga, dir-se-ia ser hora de colocar as barbas de molho. Nos tempos modernos a coisa é diferente. Com reeleição e tudo é hora de proteger as orelhas das dentadas. Eu, de minha parte, usando a prudência, já estou procurando esconder as minhas.
Cruzado, o início da estabilidade econômica
O Brasil fez 30 anos do início da estabilidade econômica com o Plano Cruzado. Nenhum plano despertou tanta paixão: os especuladores de 1986 ainda o odeiam e o povo consumidor também não o esquece, pois foi a primeira grande distribuição de renda do Brasil: 30 milhões saíram da pobreza.
Os problemas que a Nova República herdara ameaçavam a estabilidade do País. Embora tivéssemos conseguido crescer em 1985, a economia estava desorganizada. A receita que queriam nos impor era a ortodoxia do FMI e da banca internacional. Enfrentei-os. Eu sabia dos riscos e perigos de fazê-lo, mas tive a coragem de congelar os preços e a taxa de câmbio, entre outras medidas. Derrotei-os, pois o Brasil a partir dali nunca mais seria o mesmo.
A Europa vive até hoje o que é o combate ortodoxo da crise de 2008. Desemprego alto, a agonia do estado social, isto é, o direito do povo à saúde, à educação, à aposentadoria e à seguridade social. O Plano Cruzado buscou a saída do mercado interno, barrou a especulação de preços e moeda. O capital internacional nos cercou e o interno seguiu o seu exemplo. Cortaram todas as linhas de crédito. Foi uma guerra. Quando perdemos na economia, ainda fiz a correção mensal dos salários como um colchão para defender o povo.
Hoje vemos o perigo da solução da recessão, com o nosso PIB caindo numa taxa histórica de -4% — que só havíamos visto em 1990 —, e o desemprego subindo a olhos vistos.
O Cruzado não foi somente um plano econômico. Foi um plano de consequências políticas que mudaram o país. Ele legitimou-me como Presidente da República, e sem ele eu seria deposto, com retrocesso democrático à vista. Ele possibilitou funcionar a Constituinte, que deu ao povo direitos sociais, garantias individuais, direitos do consumidor. Com ele fiz o seguro-desemprego, o vale-transporte, o programa do leite, a farmácia básica; dobrei o salário-mínimo. Houve a criação de uma sociedade democrática. Os “fiscais do Sarney” foram o acesso à cidadania.
Paguei — e até hoje pago — um custo de feridas não cicatrizadas. Mas foi nossa decisão que, desdobrada nos planos Bresser e Verão, veio até o Real. Este já estava idealizado pelo Ministro Sayad. Mas eu não tinha condições políticas de fazê-lo. O Presidente Fernando Henrique contou que, quando reuniu os economistas para construir um novo plano, eles lhe disseram: “Já está pronto, é só implantá-lo.”
Assim, o Cruzado foi vitorioso. Baixou o desemprego a uma média de 3,59% — a menor até hoje do Brasil —, chegando a 2,16% durante 1986. Nos meus 5 anos o crescimento do PIB per capita foi de 11,78% e o do PIB total de 23,74%. Graças ao Plano Cruzado a década de 1980 não foi década perdida para o Brasil.
O pleno emprego criado pelo Cruzado deu força aos trabalhadores, e não é sem motivo que já em 1989 quase fizeram o presidente.
No futuro, quando se escrever a história desses anos, o Cruzado receberá justiça como uma heroica decisão que mudou o modo de enfrentar crises e o Brasil.