José Sarney

Pegando fogo

 

A marchinha de Francisco Mattoso lança o grito que nos últimos dias está na pele de todos: “Meu coração amanheceu / Pegando fogo, fogo, fogo!” Coração e braços e pernas estão assando com o caloraço de setembro. Nada da morena que passou perto: foram os recordes de temperatura que nos deixaram assim.

Nós aqui no Maranhão até que escapamos das temperaturas quarentenárias e não precisamos entrar em quarentena, mas no Sul Maravilha a coisa foi feia. Felizmente nós somos um povo que é antes de tudo um forte e não tivemos a mortandade que as canículas deste século têm feito no hemisfério norte, sobretudo entre os velhinhos como eu. Lá, quando a maré de caldo quente vem chegando, eles precisam começar as campanhas: “fique em casa”, “hidratação de hora em hora”, “feche bem a casa”.

Feche a casa? Pois é. Na Europa eles descobriram que as casas, bem isoladas para manter-se aquecidas no inverno, funcionam no verão para não deixar entrar o calor. Aqui nessa nossa cidade de São Luís temos felizmente os ventos alísios passando pelas casas de pé direito alto e ventilação cruzada, solução equatorial que nos deixaram os construtores portugueses.

Mas de onde vem este fogo infernal? Hoje não há dúvida de que das mudanças climáticas provocadas pelo homem. Aqui no Brasil não temos, infelizmente, dado a contribuição que devíamos. Continuamos desmatando e tocando fogo, a passos largos, na Amazônia, no Cerrado, até na Mata Atlântica — na minúscula fração da Mata Atlântica que ainda está de pé. É claro que o centro do problema está na Floresta Amazônica, que é tão generosa e acolhedora para o homem e que ele teima em destruir.

No começo do século passado ficou muito conhecido um livro — aliás o nome de um livro — de Alberto Rangel. Era um escritor empolado e difícil de ler, mas o nome colou e virou um apelido injusto. Aliás o conto que dá nome ao livro fala de um engenheiro que invectiva a floresta, que, na voz de Rangel, “poderia responder”:

“Fui um Paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam no sublime desabafo dos instintos de conservação… Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto… alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos estupradores…”

O livro foi prefaciado pelo extraordinário Euclides da Cunha. E se a visão de Rangel é a oposta do “inferno verde”, a explicação de Euclides tem o toque do livro inacabado, “O Paraíso Perdido”. “Daí as surpresas. […] as mudanças extraordinárias e visíveis ressaltam no simples jogo das forças físicas mais comuns. É a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo…” Seu plano era falar do impacto, da dificuldade de apreender, compreender a floresta. “…o que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas [,] lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênese.”

Mas a nossa visão contemporânea, para nós que podemos ver a floresta de avião ou mesmo do espaço, ainda é muitas vezes de incompreensão. Mesmo quando se vê as imagens com sensores que veem através do dossel das grandes árvores e se vê a devastação, há uma resistência em compreendermos a finitude que também a alcança. E aí se toca fogo. E nossa floresta está pegando fogo, causa e resultado das mudanças climáticas.

A coisa é difícil. Assim vamos ficar na situação de outra marchinha, essa de Haroldo Lobo e Nassara: “Allah-la-ô ô ô ô ô / Mas que calor ô ô ô ô / Atravessamos o deserto de Saara / O sol estava quente / Queimou a nossa cara / Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô / Mas que calor, ô ô ô ô ô ô…”

 

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Nomes que clamam aos céus

 

Ester de Assis   Oliveira, 9 anos; Maria Eduarda Martins, 9 anos; Lohan Samuel, 11 anos; Djalma de Azevedo Clemente, 11 anos; Eloah Passos, 5 anos; Rafaelly da Rocha Vieira, 10 anos; Juan Davi de Souza Faria, 11 anos; Heloísa dos Santos Silva, 3 anos: cada uma dessas crianças foi morta à bala no Rio de Janeiro!!!! São nomes que clamam aos céus contra o estado de barbárie em que vivemos, registros da saudade que não passa sentida por suas famílias.

 

Antigamente quando uma criança morria era — o sentido ainda está dicionarizado — chamada de anjinho. É uma boa palavra, pois marca a inocência que levou a História da arte a identificar como puttini — menininho, do latim e do italiano — as figuras rechonchudas de anjos que começaram a encher a arte durante o renascimento.

 

Digo que os nomes clamam, pois os anjinhos já estão no céu, mas suas famílias vivem em terra o inferno, não só da perda irrecuperável como da ameaça permanente de represálias, como se elas, vítimas da mais cruel das perdas, que é a dos filhos, fossem riscos para os assassinos, que correm todos impunes, quando muito nominalmente respondendo em liberdade pelo crime de terem matado — eliminado irrevogavelmente o futuro, os sonhos, os carinhos — alguém que não podia ser, por uma obviedade que não precisa ser lembrada, mas deve ser lembrada, culpado. Claro que, se fosse culpado, também não podia ser morto: mas como a pena de morte, apesar da vedação constitucional e da falta de sentença judicial, em nosso País a todo e cada dia ela é executada em 18 pessoas, nem falemos disso. Anjinhos duplamente inocentes foram mortos, e seus assassinos andam por aí intimidando testemunhas, a começar pelas vítimas sobreviventes, que são a família e os amigos.

 

Ia Heloísa com seus pais pelo caminho em que estava uma “viatura” da Polícia Rodoviária Federal. O pai hesitou se devia parar ou não e acabou ligando o pisca-pisca para encostar o carro. Foi uma “atitude suspeita” e lhes mandaram umas balas, duas das quais atingiram Heloísa.

 

Eloah estava em casa brincando. Uma “ação policial” foi feita na vizinhança em que morava. As balas pipocaram. A avó, na casa ao lado, correu para abrigá-la, mas quando chegou sua filha a tinha nos braços — mater dolorosa —, a ferida irrevogável correndo da chaga no lado.

 

Djalma e outras crianças iam para a escola, ele ao lado da mãe. Uma “troca de tiros” começou, não houve tempo para procurar abrigo: entre os corpos feridos estava, sem vida, o do sacrificado.

 

Lohan, este, não se sabe como morreu. Ele e uma vizinha, de 19 anos, moravam no lugar errado e foram atingidos pelas balas certeiras que lhes tiraram a vida.

 

Ester voltava da escola, parou para comer um pedaço de bolo. Ela e um rapaz de 19 anos estavam no lugar em que começou uma “troca de tiros”. Caíram por balas matados.

 

Maria Eduarda, à noite, via a dispersão de um bloco de carnaval. De repente voou bala para todo lado. Ela e mais vinte pessoas foram atingidas. Não viu o esvair da alegria, levou-a a dança da morte.

 

Rafaelly brincava com outros anjos. Era noitinha. De repente passaram carros atirando. Uma bala de fuzil acabou com a brincadeira e enviou-a para brincar no Céu.

 

Juan estava na varanda de casa enquanto o mundo festejava a passagem do Ano Velho para o Ano Novo. Papocavam os fogos de artifício. Mas o barulho que o atingiu era de tiro. Nunca mais ele verá um novo ano.

 

Diz o Padre Vieira que andam misturados os bens e os males, num permanente antagonismo que faz parte da natureza, céu e nuvem, sol e sombra. Esse dualismo se estende às peças do próprio tempo, mas espaçadas: o verão e o inverno, a noite e o dia. “Mas para haver mal, e bem, basta um só momento!”

 

O bem da vida concedido a estas crianças inocentes existia ao mesmo tempo que as balas que o mal destino distribui aos milhões em nosso País. Só podemos pedir a Deus que ouça o clamor desses nomes e as lágrimas dos que ficam e permita que as crianças possam viver sempre o seu futuro.

 

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Fundação da Memória Republicana e os registros do Brasil

Documentos, livros, obras de arte, registros audiovisuais, objetos raros. Esses são alguns itens que fazem parte do acervo doado por José Sarney à Fundação da Memória Republicana, instalada no Convento das Mercês, localizado no bairro Desterro em São Luís. Os bens correspondem ao período em que ele exerceu a Presidência da República, de 1985 a 1990 e, também, peças e documentos que juntara ao longo da vida, até mesmo antes da Presidência. Esse é o único acervo presidencial que se encontra abrigado na região Nordeste do país.

Localizada no prédio construído em 1654 e tombado como Patrimônio Histórico Nacional, a Fundação da Memória Republicana abriga um rico material museológico que leva o visitante a um passeio por um contexto social e político importante da nossa história recente.

Constituição de 1988, um dos documentos mais importantes da nossa Democracia (Foto: Divulgação)

Dos bens doados por José Sarney, os números impressionam: o acervo é composto por cerca de 1 mil documentos que testemunham o dia a dia do então presidente, agendas, viagens, cartas, acordos diplomáticos, mensagens ao congresso, cartas de populares, planos econômicos, projetos e todo o processo de formulação, convocação e execução da Assembleia Nacional Constituinte que resultou na promulgação da carta política de 1988, nossa constituição cidadã, um dos documentos mais importantes da nossa democracia.

Documentos contam parte importante da trajetória do país (Foto Divulgação)

Entre os documentos, há também 50 mil fotografias, 329 fitas de vídeo e 478 fitas VHS que testemunham esse período.

São aproximadamente 5 mil itens: medalhas, condecorações, diplomas, telas, esculturas e obras de arte em geral, oferecidas por chefes de estado de todo o mundo ao então presidente José Sarney em deferência à legitimidade democrática por ele restabelecida no país e ao povo brasileiro.

A Fundação conta ainda com uma biblioteca com 24.624 livros, dentre os quais 3.092 são obras raras. Todos estes doados ao Estado do Maranhão por José Sarney. Essa vasta documentação compõe o acervo que está sendo digitalizado para proporcionar melhor acesso ao público em geral por meio das plataformas digitais. A meta é que esse projeto seja concluído até o final de 2024.

Presentes presidenciais integram a exposição permanente (Foto: Divulgação)

Vontade

Para José Sarney “o acervo textual é o pulmão de todo acervo”, pois, expressam a dinâmica histórica da construção da democracia brasileira, com seus desafios, idas e vindas e obstinada motivação para restabelecer os valores da democracia, direitos e liberdades individuais e coletivas no Brasil.

O desejo de José Sarney ao guardar e, posteriormente, doar ao Maranhão o acervo presidencial foi de constituir um verdadeiro centro de pesquisa sobre a redemocratização do País oferecendo fontes históricas primárias que possibilitem ao pesquisador mergulhar mais profundamente no contexto social, político e econômico no qual se deu a redemocratização.

Para ele, o conhecimento da História liberta, abre perspectivas e projeta para o futuro, pois não seria possível compreender o Brasil de hoje sem considerar a transição democrática, engenhosamente conduzida pelas mãos do maranhense José Sarney, que, exercendo o cargo de Presidente da República conduziu o país, alicerçando o caminho da democracia que usufruímos hoje.

Obras raras integram a lista de doações (Foto: Divulgação)

Pesquisa

A consulta ao acervo pode ser realizada de forma física na sede da Fundação após agendamento e solicitação via e-mail: fmrb_agpesquisa@fmrb.ma.gov.br.

Em relação ao acervo museográfico, as peças estão expostas no Museu da Fundação da Memória Republicana Brasileira localizado no Convento das Mercês (Desterro). A exposição permanente conta com 30% dos itens, os demais estão acondicionados em reserva técnica, podendo ser vistos mediante agendamento prévio. O acervo documental, bibliográfico e audiovisual pode ser consultado através de agendamento via e-mail: fmrb_agpesquisa@fmrb.ma.gov.br.

Saiba mais

A visitação acontece de terça a sexta das 08h às 17h, aos sábados das 09h às 17h e aos domingos das 09 h às 13h. A entrada é gratuita.

O Museu foi destaque recentemente em reportagem especial no Portal ImiranteLeia aqui!

Obras de arte presenteadas ao então Presidente da República, José Sarney estão disponíveis para visitação no Maranhão (Foto: Divulgação)

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José Sarney prepara novo livro

O contexto da política nacional sob o olhar de quem participou de um momento histórico do Brasil: José Sarney, o presidente que conduziu a retomada do país para a Democracia, após 20 anos do Governo Militar.

Essa é a tônica de O Brasil no seu labirinto, próxima obra de autoria de José Sarney que será lançada no primeiro semestre de 2024. A produção não é um romance, sim uma análise minuciosa sobre os caminhos e movimentações da política recente do país, a partir do olhar atento de Sarney. “O livro já está na metade. São as minhas impressões sobre a política atual, um pouco do que eu acho da História recente do país”, disse.

Reedição

Além do livro inédito preparado para 2024, outra obra importante da carreira literária de José Sarney deve ganhar uma nova edição. Trata-se de Norte das Águas, cuja primeira edição foi publicada em 1970, e traz o Maranhão profundo como inspiração, com suas regionalidades, contextos sociais.

A obra, que chegará em sua 17ª edição, foi considerada um marco literário e recebeu críticas positivas de nomes como Léo Gilson Ribeiro, Antônio Carlos Villaça, Josué Montello, Lago Burnett, Lucy Teixeira e João Mohana. Esses textos estão disponíveis aqui.

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Ainda uma vez São Luís

 

Perdi a conta do número de vezes em que falei da cidade que formou a minha vida: esta velha e jovem São Luís, que fez aniversário na sexta-feira passada.

 

Minha paixão por São Luís começou quando aqui desembarquei vindo de São Bento no barco de mestre Braulino, o “Filha de São Bento”. Eu tinha doze anos. De longe, ao anoitecer, vi as luzes da cidade. Era clara e bela. Desembarquei na impressão da multiplicidade das coisas: carroças, malas, sacos, cofos, gentes. E do bonde elétrico. Nunca tinha visto um sobrado, ruas estreitas, ladeiras levando o casario para cima e para baixo, o brilho dos azulejos, as nuvens carregadas de anjos que deslizam no céu e são levados pelos ventos alísios. Saudade dos invernos de minha infância, a água desabando nos beirais e correndo nas sarjetas, entrando pelas janelas com o vento, a cidade molhada.

 

Mesmo estando aqui em São Luís a saudade não passa. Aqui morei na rua da Cruz, na rua da Madre Deus, acolhido pelas mãos generosas de Dona Sérgia e Dona Lídia. Sempre me vejo andando pelas ruas da cidade velha, da Estrela, dos Afogados, da Alegria, do Alecrim, numa peregrinação de amor.

 

Esta cidade foi também para o moço Antônio Gonçalves Dias o local em que viveu seus únicos dias de intensa e real felicidade: os dias de fevereiro a junho de 1846 em que viveu na casa de Teófilo — e encontrou “seus olhos tão negros, tão belos, tão puros” —, e os dias de abril a julho e de outubro a novembro de 1851 em que teve “o coração em riso e festa” ao lado de Ana Amélia. O resto de sua vida, antes e depois, foi uma longa saudade. Quando, em maio de 1855, sofrem o choque do reencontro, antevê: “Negou-me o fado inimigo / Passar a vida contigo, / Ter sepultura entre os meus…”

 

Eu pertenço à geração que mais amou São Luís. Todos lhe fizemos versos de uma paixão de adolescente, forte e extasiante. Ferreira Gullar no exílio de suas infâncias. Tribuzzi deixou versos que hoje são o seu hino, ouvindo os “tambores negros do Congo” e “o sol da liberdade”. José Chagas, este se derreteu todo e com ela criou uma cumplicidade de belos poemas. Lago Burnett fez sonetos admiráveis. Carlos Madeira, Belo Parga, Ivan e Evandro Sarney, Lilia Reis, Stella Leonardos, Martins de Alvarez, Nauro Machado e Correia da Silva, João do Vale, na picardia de suas cantigas, todos fomos seus amantes.

 

São Luís é poesia e cravo. Poesia do nosso chão, cravo perfumado do nosso amor. Um lençol de telhas cobertas de musgo e do tempo cobre o casario que se derrama numa ondulação suave, em ladeiras e cocurutos. Corre um vento azul que vem da África com cheiro de maresia e sal. Passam fantasmas, fontes, sacadas de ferro, calçadas de cantaria. Ouço o silêncio da noite nas lendas de assombração e das mulheres que saem do mar, junto com d. Sebastião, que se encantou nas praias do Maranhão e, nas noites de sexta-feira, transforma areia em esmeraldas e vira touro solitário correndo no mar em busca das terras de Portugal.

 

Minha São Luís, minha terra, minha paixão!

 

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Laurentino Gomes visita José Sarney

 

De passagem por São Luís, o aclamado escritor Laurentino Gomes fez uma visita de cortesia ao ex-presidente e escritor José Sarney.

 

No encontro regado a temas literários, Gomes lembrou que citou um episódio envolvendo José Sarney no seu livro 1822, ao contar a história de Lorde Cochrane.

 

Gomes teria ficado sabendo por meio de Elio Gaspari que José Sarney, em visita oficial à Abadia de Westminster, em Londres, teria disfarçadamente pisado em sua lápide, a quem o chamou de “corsário”. Esse causo foi mencionado no livro e, anos mais tarde, confirmado por José Sarney.

 

Laurentino Gomes (1956) é um escritor e jornalista brasileiro. É o autor do livro “1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. No livro, o escritor faz uma síntese histórica da chegada da corte portuguesa ao Brasil. É também autor da trilogia “Escravidão”.

 

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Samba doido

 

Quando cheguei ao Rio, há muitos e muitos anos, brilhava um escritor um pouco mais velho que eu, Sérgio Porto, extraordinário cronista, seja como ele mesmo, seja como seu heterônimo Stanislaw Ponte Preta. O Stanislaw tinha uma coluna em que debochava dos costumes, bons e maus, numa fonte incessante de risos e gargalhadas. Infelizmente o Sérgio morreu muito moço, aos 45 anos.

 

Quando começou a temporada militar, o Stanislaw criou uma seção na coluna com o nome de Febeapá: era o “festival de besteiras que assola o país”. Lá colecionava barbarismos de todo tipo, como a história de um prefeito de Petrópolis que proibira o banho de mar na cidade.

 

Talvez inspirado neste prefeito, talvez no próprio delírio de Jânio Quadros — que, Presidente da República, mandou que os funcionários públicos usassem slack, proibiu rinha de galo, corrida de cavalo em dia de semana e mesmo traje de banho nos concursos de beleza, permitindo o “uso de saiote” —, agora a história ensinada pelo Estado de São Paulo afirma que Jânio proibiu o uso de biquíni nas praias da cidade de São Paulo. Esclareço desde já, como janista que fui, que essa história de que os proibiu nas praias do Brasil é injúria e difamação. Eis o decreto presidencial: “Art. 1º Nos concursos de beleza, seleções de representantes femininas e semelhantes, as competidoras e participantes não poderão apresentar-se ou desfilar em trajes de banho sendo tolerado o uso de saiote. Art. 2º As autoridades locais, encarregadas da Polícia de Costumes, tomarão as providências para o fiel cumprimento do estabelecido no artigo anterior.”

 

Pois é, nesse festival de besteiras, parece que se decidiu também que a Lei Áurea foi sancionada por D. Pedro II, não pela Princesa Redentora Dona Isabel. Talvez tenham lido mal o que escrevia Odylo Costa, filho, nas vésperas daquele tragicômico 25 de agosto de 1961: que Jânio era um personagem da dinastia dos Bragança, “didático, ginasiano, professor secundário detestável como foi Pedro II”, com o “mau-gosto literário com que Pedro II escrevia a Camilo: ‘Aí lhe mando o soneto hodierno… Sigo hoje para a Lusa Atenas…”. Odylo perguntava se era Jânio ou Pedro II quem escrevia “Meu dia é todo ocupado no serviço público…”; e previa: Jânio “tem a mania renunciatória dos Bragança, e meu receio é que um dia o lado Pedro II, que ameaça, mas não efetiva, a troca do dever de reinar pelo prazer de ensinar, seja subjugado pelo côté Pedro I, que sai mesmo barra a fora e danem-se!”

 

Pois o Stanislaw, ou o Sérgio Porto, não sei bem, escreveu um fabuloso samba, o Samba do Crioulo Doido: “Foi em Diamantina onde nasceu J.K. / Que a princesa Leopoldina a resolveu se casar / Mas Chica da Silva tinha outros pretendentes / E obrigou a princesa a se casar com Tiradentes. / Joaquim José, que também é da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo / E se elegeu Pedro Segundo / Das estradas de minas, seguiu pra São Paulo / E falou com Anchieta / O vigário dos índio aliou-se a Dom Pedro / Acabou com a falceta / Da união deles dois ficou resolvida a questão / E foi proclamada a escravidão.” (A grafia corresponde à exatidão histórica.)

 

A outra música do Sérgio, a Marcha da Bicha Louca, não cito aqui por não saber se é politicamente correta (o corretor do Word já me avisou: não use linguagem preconceituosa).

 

A correição na Secretaria de Educação paulista já demitiu os autores, antes mesmo de averiguar se tinham ou não razão. Afinal quem vai discutir com um modelo escolar mais avançado que o do Ministério da Educação e tão rico que dispensa o auxílio do FNDE? Leva a culpa a professora humilde que foi colocada para reescrever a História do Brasil e errou o trecho da “narrativa” a inventar e embelezar!!! O Brasil está “crioulo doido”.

 

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Trágica Rússia

 

Faleceu há poucos dias uma grande escritora, Hélène Carrère d’Encausse, Secretário-Perpétuo da Academia Francesa (utilizo o título de sua função no masculino porque era assim que ela queria) desde a renúncia de Maurice Druon, em 1999. De origem georgiana — nascida em Paris, foi apátrida por muitos anos —, era especialista em Rússia e no universo eslavo. Foi uma amiga que recebeu a Academia Brasileira de Letras naquela Casa com a grande elegância que a caracterizava.

 

Madame Encausse era conservadora e simpatizava com Vladimir Putin. O começo da guerra da Ucrânia mudou sua posição. Curiosamente, um de seus livros mais importantes foi Le Malheur russe: essai sur le meurtre politique (A Tragédia Russa: ensaio sobre o assassinato político), em que sua descrição do papel do sangue na história da Rússia cai como uma luva sobre o novo “Czar de todos os povos”. Em 1988, data do livro, ele era comandante da KGB em Dresden, na Alemanha [ainda] Oriental.

 

Conheci Vladimir Putin pessoalmente. Eu o recebi como Presidente do Congresso Nacional em novembro de 2004. Escrevi então que “[embora] nas fotografias sempre apresente uma cara amarrada, é um jovem simpático, sabe rir, [é] lutador de judô e tem ares de saber zangar-se. É egresso dos quadros do Estado e tem tido mão forte contra os que querem a independência da Chechênia. Tem um gosto grande pelo futebol e sugeriu uma partida entre os parlamentares da Rússia e do Brasil. Achei boa a ideia — por delicadeza, é claro —, mas logo adverti que eu não figuraria na delegação, pois nem para árbitro tenho disposição.” Ele fora o último primeiro-ministro de Boris Iéltsin e estava no primeiro mandato como presidente, mas já era acusado de crimes de guerra, tendo ordenado a total destruição da capital chechena, Grozny.

 

Em sua análise do assassinato político na Rússia, Madame Encausse começa explicando ter encontrado “um laço entre a conquista ou a conservação do poder [na Rússia] e o uso do assassinato político, individual ou em massa, real ou simbólico”. Os horrores se sucedem séculos afora, com destaques curiosos como o fato de os dois mais conhecidos czares, Ivan, o Terrível, e Pedro, o Grande, terem matado com as próprias mãos seus filhos e herdeiros.

 

Depois de ter feito a farsa da renúncia e ser chamado pelo povo — cenas tão marcantes do filme de Eisenstein —, Ivan estava no final de seu reino de terror. Fizera uma purga na Igreja; matara amantes e esposas; matara os boiardos, a aristocracia feudal; com os oprichniks, um esquadrão de assassinos vestidos de preto aos quais às vezes ele mesmo se incorporava, destruíra cidades inteiras, começando por Novgorod, onde assistiu em praça pública, dias a fio, à tortura e execução de cada habitante; decimara os próprios oprichniks e depois os eliminara. Então, discutindo com o príncipe Ivan sobre o destino de uma cidade, Ivan IV abate-o com sua lança para javali.

 

Um século e meio depois, Pedro, que queria transformar a Rússia em um país do Ocidente, não aceita que seu filho Alexis — sua antítese, beato, arcaico, pouco inteligente — se refugie no exterior. Torturado, o príncipe confessa conspirar contra o pai e é aprisionado até a execução pelo próprio Pedro. Mas, enquanto Ivan IV se desesperou, encomendou orações pelos 3470 assassínios, muitos deles múltiplos (“teus servidores de Novgorod, ao todo 1505 pessoas”), e morreu demente pouco depois, Pedro, o Grande, viu no sangue derramado o símbolo do passado que afastava, pensando agir como rei e não como pai.

 

Escrito quando terminava o regime soviético, Madame Encausse fazia votos de que finalmente o desaparecimento, o “assassinato simbólico” de Lênin livrasse a Rússia dos assassinatos reais. Mas a prolongada tirania de Putin mostra que nada mudou.

 

Se o Legacy que levava o mercenário Yevgeniy Prigozhin foi explodido para punir a ousadia da dissidência ou como exemplo para evitar qualquer pensamento discordante, a amplitude dos crimes de Putin se estende desde os “de guerra” até os envenenamentos, radioativos ou exóticos, dos adversários. A divisão das forças armadas em relação à Ucrânia é abafada. O império do ditador sobre todas as Rússias é revigorado.

 

A tragédia russa, toda assinalada pela violência e pelo assassinato, está longe do fim. Qualquer que tenha sido a origem da explosão do avião de Prigozhin, a origem real ninguém retirará de Vladimir Putin.

 

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Agosto Desgosto

 

Tenho a fama de ser supersticioso, e sou, mas não sei se mais do que a maioria das pessoas. Não tenho simpatia pelo mês de agosto. Agosto rima com desgosto. O nome vem do jovem Caio Otávio, já Gaius Julius Caesar Octavianus ao ser adotado pelo tio, depois Imperator Caesar, ao derrotar os assassinos, e Imperador César Augusto, ao aceitar modestamente a condição de fundador do Império e de filho do deus Julius. Dado ao oitavo mês do calendário romano, Sextilis, que já fora o sexto, acabou sendo um mês diferente.

 

É o mês em que se celebra a Assunção de Nossa Senhora, que vai ao encontro de seu Filho no Céu, e da morte também de Santa Clara, São Domingos, São Bernardo e Santo Agostinho, santos grandes. Mas para Portugal foi um mês fatídico desde o desaparecimento, em Alcácer Quibir, do rei menino D. Sebastião I, mal saído dos seus 21 anos, no desejo de se igualar aos avós D. João III e Carlos V, um seu sucessor como rei de Portugal, outro rei de Espanha e imperador do Sacro-Império: ele se tornou sonho, o Encoberto, o Desejado. Outro desastre de agosto foi o assassinato de Henrique III por Jacques Clément pouco tempo depois que, para reunificar a França dividida pelas guerras de religião, fizera assassinar os poderosos Guise. Sem ser política, mas quase real, foi a morte de Lady Di, em estranho desastre do Rolls-Royce do namorado milionário.

 

Para a política brasileira o mês também não é bom. Tivemos as mortes de Getúlio Vargas, com o tiro no peito que matou a UDN, de Juscelino Kubitschek, também ele num desastre de automóvel, esse estranho e suspeito, e de Eduardo Campos, na queda do jatinho em que fazia campanha para Presidente. O Jânio Quadros, que tinha a mania da renúncia, renunciou num 25 de agosto, deixando o Brasil na urucubaca que nos levou aos anos de chumbo e a tantas dificuldades.

 

Pessoalmente é um mês marcado pela perda de grandes e queridos amigos. O primeiro e maior Odylo Costa, filho, o extraordinário poeta, que me abriu tantos caminhos e cuja presença me acompanha vida afora, imagem de bondade e de coragem. Pouco tempo depois foi Glauber Rocha, ainda mais moço, passando como um furacão que construía, em vez de destruir. Alceu Amoroso Lima, Doutor Alceu no título respeitoso que todos na Academia Brasileira de Letras dávamos à figura veneranda que ainda mantinha a mocidade com que levara nos ombros Graça Aranha, que desancara com a nossa Casa, fez uma enorme falta. Bem depois foi a vez de Jorge Amado, outro cuja vida foi uma lição de inteligência e sabedoria.

 

Nada foi tão horrível quanto os crimes da destruição das cidades de Hiroshima e Nagasaki, monstruosidade que nenhuma racionalização me fará aceitar.

 

Desgosto de agosto, portanto. Mas confesso que marrom, pinguim de geladeira, bicho empalhado, tecido de quadradinho, jangada de osso, dente de elefante, folhinha de mulher nua e escada sem corrimão não têm minha simpatia.

 

Tenho que me precaver, pois, quando tinha seis anos, ouvi minha avó gritar: “Botaram mau-olhado no José!” Senti logo o queixo caído, moleza e dentro dos olhos aquele frio dos olhos excomungados. Uma coisa terrível. Minha mãe mandou buscar a tia Tomásia, benzedeira de fama, que não vacilou: “É carga grande.” E pegou um olho verde de pião roxo, planta que espanta qualquer desgraça. Nunca mais deixei de ter uma no quintal.

 

A Tomásia molhou o galinho num pires de água e começou a benzer meu corpo: “Sai, malefício, do corpo desse menino, que Deus me deu poderes de expulsar maus-olhados e olhos excomungados. Vai para as profundezas do Inferno que essa criança pertence a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.” Foi tiro e queda. Mas recomendou: “Dona Kiola, tenha cuidado com seu filho, pois ele é fraco para inveja e coisa feita.” Conselho para o resto da vida.

 

 

A invasão dos bárbaros

 

Nos países desenvolvidos, há uma neurose nova: a invasão dos bárbaros. Não é mais aquele temor que no passado acometia as cidades-Estado, a confrontação dos impérios com as hordas desconhecidas que avançavam para o saque e a destruição. Não são os hunos nem os turcos nem os mongóis: são os emigrantes, fugitivos da miséria, desejosos de melhor futuro, que se esgueiram pelos aeroportos, se escondem nas estradas, atravessam, sorrateiros, rios e cercas de arame farpado, enfrentam polícias, leis de restrição à imigração e, obtendo sucesso em sua aventura, começam a outra, a da sobrevivência, enchendo as ruas como pedintes, vendendo quinquilharias e ilusões, correndo do cassetete dos vigilantes, segregados e vilipendiados pelos nacionais.

A Europa está ferida por essa nova face das migrações humanas. Vem gente de todos os lados, dos antigos países da Cortina de Ferro, da África sofrida e enferma, das antigas colônias da Ásia e da América. O que fazer? O mundo ficou pequeno, e aspirar a uma ascensão social está apenas numa passagem e na coragem de abandonar as próprias raízes. Deixam famílias, amigos, pátrias e vêm sofrer as humilhações das minorias.

Na Inglaterra, os jornais noticiam nesta semana que nem os súditos da rainha, ingleses, já na terceira geração de egressos da Índia, escapam da rejeição.
Nos Estados Unidos, a sociedade fracionada, de tantos grupos e etnias, recusa-se a aceitá-los, repelindo suas culturas e suas crenças.

Nessa paisagem humana, o exemplo da América Latina é diferente. Nossas raízes ibéricas trouxeram a capacidade de promover a miscigenação cultural. Os espanhóis e os portugueses aprenderam, séculos e séculos, com a península ocupada por judeus e árabes, a conviver com a divergência, a aceitar a convergência.

Quando ocorreu o encontro entre as civilizações pré-colombianas e pré-cabralinas, os colonizadores foram capazes de superar a tragédia do enfrentamento e de começar um processo de assimilação e mestiçagem que construiu a sociedade racial que temos, com valores próprios, expressão da nossa identidade. Com eles, resistimos à uniformização da globalização.

A reação dos países ricos ao que chamam de “o perigo da emigração” está no terreno da fobia, cuja matriz é a discriminação racial, numa era em que se decifra o genoma humano e se pode conhecer, através das descobertas biológicas, os troncos dos diversos grupos que formam a humanidade e que, no desejo de sobrevivência, também migraram em correntes que se dispersaram em busca de comida e de segurança e fugindo dos desastres climáticos.
A globalização econômica é incompatível com a globalização das raças. Aquela quer um mundo de ricos e faz com que os outros se afastem e fiquem presos à miséria, ao desemprego e à fome.

O Brasil, particularmente, já venceu o gargalo da segregação racial. Temos uma sociedade democrática, fora das superioridades (?) étnicas.
Nossas discriminações são outras: a maior de todas é a da concentração de renda, que gera problemas sociais. Esses, sim, nos separam, o que é uma coisa bárbara, mas sem a fobia de bárbaros.