
José Sarney

A minha guerra
Na infância estão depositadas as memórias mais marcantes que foram guardadas em nossa vida. Muitas delas são lembranças puras, simples, lúdicas, que alimentam nossa personalidade no julgamento das cores, das belezas da natureza, no carinho com os animais e em nossos primeiros sinais da força de possessão do amor. Recordo nas Memórias de Além-Túmulo, de Chateaubriand, a lembrança dos seus carneirinhos.
Mas o de que eu queria falar mesmo é que tenho uma forte memória da II Guerra Mundial. O Maranhão foi uma base aérea, e eu, aos 14 anos, morava em um pensionato, de dona Rosilda Penha, por quem tenho gratidão pela acolhida que me deu. Ali dia de domingo — ela era muito católica — almoçava o reitor do Seminário, Padre Sales, que falava inglês e por isso mesmo fora recrutado pelos americanos para celebrar missa na Base Aérea do Tirirical. Ele me levou como coroinha algumas vezes. Dos soldados ele recebia o presente de um pacote de cigarros Malboro (ele fumava), e eu, duas barras chocolate.
São Luís, tão pacata e muito longe da guerra que se processava na Europa, fora tomada de uma paixão patriótica depois que o Brasil entrara na guerra, em 1942, após o afundamento do navio Baependi, onde morreram centenas de brasileiros. É que o Brasil, que havia flertado com as potências do eixo, pressionado pela opinião pública e pelos aliados, oscilara de posição, e os alemães haviam resolvido afundar navios como pressão brutal.
Como os aviões não tinham autonomia para atravessar o Atlântico, o Brasil passou a ser uma peça-chave para a batalha no norte da África e para a invasão da Itália, que, com Alemanha e Japão, formava o Eixo. Assim o Brasil permitiu bases americanas em Macapá, Belém, São Luís, Fortaleza e Natal para que os aviões, do Rio Grande do Norte, atravessassem o Atlântico, com um pouso na Ilha do Sal. Aqui desembarcavam armas e munições, fazendo uma rota alternativa para a reunião de Teerã entre o Stalin, Roosevelt, Churchill, entre outras de alto nível.
São Luís, de repente, encheu-se de soldados americanos, com suas boinas, que montaram um escritório no centro da cidade, o USO – United States Office.
Foi uma revolução. Aqueles homens loiros, altos, bonitos, apaixonavam as moças de tal modo que um colega meu, Chafir, ao responder em nossa classe àquela pergunta clássica: “O que você quer ser?”, ele respondeu: “Americano.” A professora de inglês namorava o chefe militar americano.
A cidade também se habituou aos muitos voos de dirigíveis, que eram chamados de zepelins, encarregados de patrulhar o Atlântico e afundar submarinos com bombas de profundidade.
A zona do meretrício que, naquele tempo, vivia um momento áureo, era dominada pelas tropas aliadas. Como se, nos Estados Unidos, não existisse mais essa prática dos prostíbulos.
A guerra provocou, através de propaganda, uma enxurrada de retratos do general George Patton e de muitos outros generais, cujos endeusamento foi feito no mundo inteiro, principalmente nas cidades onde estavam localizadas as bases para criar o sentimento de apoio aos aliados.
Uma tragédia que chocou a cidade aconteceu com um jornaleiro italiano que tinha uma banca de jornal na Praça João Lisboa, centro fofoqueiro da cidade, assassinado pelas costas por um fanático que passara a odiar alemães, italianos e japoneses.
Tivemos blecaute para que os submarinos não detectassem a cidade e muitas passeatas exaltando o sentimento patriótico. Criou-se mesmo, nas Forças Armadas, uma pré-serviço militar obrigatório — eu guardo até hoje, entre os meus papéis velhos, este de menino alistado para lutar contra as forças do nazismo quando alcançasse a idade legal.
Outro dia, revendo papéis velhos, encontrei, entre as cartas que fiz para minha mãe, uma em que descrevia o meu medo da guerra, as atrocidades que estavam sendo cometidas na Europa e o meu medo de que essas batalhas chegassem ao Brasil.
“Minha mãe, apegue-se ao manto de Nossa Senhora, reze para o senhor São Bento e Santo Inácio para que essa guerra não chegue a São Luís, nem a Pinheiro, nem a São Bento.
Eu estou na Congregação Mariana rezando por meus colegas um terço todo dia para que acabe a guerra e chegue a paz entre os homens, como pediu Jesus.
Diga à Debun (nome da minha ama) que reze por mim, me tirando o medo dessas almas que mortas na guerra podem vir para cá.”
Tive vontade de rasgar essa carta, mas era tão bonita, tão cheia de fé e religiosidade que a guardei entre os papéis que guardo da minha querida e protetora Irmã Dulce.
Nossa guerra era uma guerra pura, sem bala e sem internet, sem televisão e apenas com a Rádio Nacional dando o boletim noturno de como iam as coisas no front ocidental.
Hoje a gente assiste à guerra em tempo real: a brutalidade com que ela se manifesta, a quantidade de vidas que ceifa, de lares que destrói, de aleijados que cria, de mortos que tiveram o sonho de viver interrompido.
Agora não tolero mais nem olhar jornais televisivos, revoltado com a brutalidade nos conflitos que envolvem países divididos por ódio cada vez mais profundo.
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O Pré-sal da Amazônia é feminino
A Amazônia nasceu sob o signo da controvérsia: era espanhola ou portuguesa? A dificuldade de se localizar a linha do Tratado de Tordesilhas se esgarçou com a união das duas coroas sob Filipe I. No século XVIII o Marquês de Pombal herdou a solução do Tratado de Madrid, a tese do uti possidetis. Ao designar para governar o Estado de Maranhão e Grão-Pará o seu meio-irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o instruiu, em cartas secretas, que seu objetivo maior era assegurar que aquelas terras fossem portuguesas e que sua missão principal era ocupá-las. Ele chegou ao ponto de mandar que as tropas portuguesas que fossem enfrentar as revoltas indígenas se “juntassem” com as índias para que o sangue português ficasse naqueles povos.
A segunda controvérsia era sobre a água: Pinzón, navegando pelas costas brasileiras em janeiro de 1500, encontrou, na foz desmesurada, que fazia doce a água muitas léguas mar adentro. Imediatamente, no costume de invocar nome de santos para os lugares que descobriam, deu logo ao rio o nome de Santa Maria de la Mar Dulce. Nova controvérsia surgiu quando Orellana desceu de Quito rio abaixo, até o Atlântico. O frei Carvajal, que o acompanhava, registrou a presença da tribo das Amazonas, “muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça”, “fazendo tanta guerra como dez índios”. Na imaginação dos que chegavam àquelas novas terras de grandes rios e infinitas e frondosas árvores elas se tornaram as guerreiras das mitologias persa e grega. Teoria nunca contestada, mas também nunca confirmada, porque as amazonas só existiam na imaginação dos viajantes.
Agora, outra controvérsia surgiu século passado, esta envolvendo uma perspectiva de riqueza com que o Brasil há muito sonhara e nunca encontrara: petróleo, que aí não quis ficar em terra, nem em mar raso, mas em profundidades nunca pesquisadas, que os geólogos atuais já estão chamando de pré-sal equatorial, em disputa com o pré-sal do sul do país, que abriu uma nova perspectiva para o Brasil, colocando-o como o sexto país em reserva de hidrocarbonetos.
E ainda agora se abriu mais uma polêmica sobre o Amazonas: se para explorar esse petróleo se precisa de estudo para verificar se essa extração prejudica o meio ambiente e a Amazônia, já superada a disputa de ser pulmão do mundo.
Agora, a Ministra Marina diz que sim, que há prejuízo, que não pode ser prospectado. Já o Ministro de Minas e Energia entende que se pode estudá-lo sem prejudicar o meio ambiente. Enquanto isso o vaticano do Governo nessa área, a AGU – Advocacia-Geral da União, em parecer que acaba de proferir, afirma que não é exigível o processo de licenciamento determinado pelo Ibama para que essas riquezas sejam exploradas pelo Governo.
O Presidente Lula, que, como eu, é sonhador de um Brasil como um dos mais ricos países do mundo futuro, ao ser indagado se era a favor ou contra, respondeu: “Eu também estou sonhando.”
Essas discussões, como todas as controvérsias sobre a Amazônia, vão continuar e, graças a Deus para nós, elas se resolvem com palavras, e não com revoltas do Hezbollah e do Hamas e bombas de Israel, e sem medo da bomba atômica, porque, graças a Deus também, Alfonsín e eu firmamos o Acordo Brasil-Argentina proibindo que esses brinquedos do Diabo, que podem acabar com a Terra, por aqui transitem. E assim fizemos com que a América do Sul se tornasse o único continente do mundo que não possui armas nucleares.
Enquanto isso as amazonas continuam em nossa imaginação: “nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas”, andando pela Amazônia com petróleo a dez mil metros de profundidade, esperando por nós, pelas nossas plataformas marítimas, e o Marquês de Pombal, na Eternidade, brindando com vinho do Porto, festejando que aquela região seja brasileira com DNA português.
E continua a controvérsia do nome: o rio que o Padre Vieira chamava das Almazonas é o Amazonas ou o das Amazonas? Com tacape ou sem roupa?
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Os Olhos de Gaza
Meu primeiro contato com Gaza data do meu tempo da Faculdade de Direito no Maranhão, onde me diplomei. Estava naqueles anos em que queria conhecer os grandes livros e caiu-me na mão um best seller de então, Sem Olhos em Gaza, de Aldous Huxley. O título vem da epígrafe, um verso de Milton que diz ter Sansão, capturado e cego pelos Filisteus, ido trabalhar em Gaza, em condições de tortura. Huxley escrevera um romance em que um sibarita se desiludia com a sociedade dissoluta.
Gaza teve um destino cruel como cidade: com dezessete mil anos de existência, sofreu ocupações, destruições e alternou períodos de paz e de guerra. Cresceu e encolheu e cresceu e encolheu. Seu nome se perde no tempo, em variações do cananeu Gazza, do hebraico Azza, em egípcio Ghazzat, forte ou preciosa. Foi egípcia, cananeia, filistina — origem do nome Palestina —, israelita, assíria, persa, grega, romana, árabe, cruzada, mameluca, otomana, inglesa.
Seu povo vive a memória sedimentada de muitas atrocidades e agora a História lhe guardou mais uma. Assim, nós, hoje, que assistimos em tempo real às crueldades que ali se praticam, podemos avaliar o que aconteceu quando sofreram, a cada conquista, o horror de ficar em ruínas.
Agora estamos no mundo inteiro esperando a merecida reação de Israel, covardemente agredida e sofrendo grande perda de vidas. É preciso deter o terrorismo monstruoso do Hamas, mas não é justa a matemática de que os civis mortos de Israel devam ser multiplicados numa progressão geométrica por civis mortos palestinos.
Responsabilidade maior cabe agora às potências e aos países que foram solidários com os israelenses de evitar que esta guerra siga os maus exemplos das intervenções coletivas. O do Iraque, onde o conflito teve o efeito bumerangue de entregar o poder à intolerância dos xiitas, que combatiam Sadam Hussain e agora comemoram sua desgraça. O do Afeganistão, onde as ondas de invasão, nos últimos duzentos anos, de ingleses, russos, buscando uma saída para o Mediterrâneo, americanos, destruir o Taliban, sofreram todas derrotas vergonhosas. Os Estados Unidos tiveram ali um novo Vietnam, lembrança que até hoje nos choca da multidão tentando pegar os helicópteros de fuga e das meninas queimando nas estradas — hoje escrevem livros sobre os seus sofrimentos.
O Papa Francisco, que não tem tido receio de condenar essa incompreensível violência, pede com a sua autoridade moral e religiosa que as nações se unam em todo o Mundo, que arregimentem apoios para exigir que a paz seja encontrada e que o ódio desapareça, encerrando os terríveis confrontos que nos enchem o coração de dor.
Juntemos nossas vontades e nossas orações às orações do Santo Padre para que a consciência mundial desperte e nós possamos, atendendo ao grito de revolta do Papa, gritar: — paz na terra aos homens de boa vontade!

Parem! Parem! Parem!
O homo sapiens tem o DNA da violência. A teoria da evolução pode substituir, com sua história, a expressão “sobrevivência do mais forte”, por “sobrevivência do mais violento”. Assim sua luta pela sobrevivência nada mais foi do que uma luta de destruição dentro da própria espécie.
Esse processo está muito ligado à religião, na disputa pela hegemonia do seu Deus. O mundo evoluiu e julgávamos que esta fase pertencia ao passado. A atual guerra de Israel em Gaza mostra que o homem continua o mesmo. A incursão de um inimigo sobre o outro volta a mostrar os métodos mais cruéis e as motivações religiosas ainda presentes, embora com outro componente atual e forte, que ainda move a economia mundial: o petróleo. Essa mistura profunda que envolve passado, presente, visões do futuro levam a um caldo de cultura que nos faz presenciar uma gama de atrocidades, justificadas por essa barbaridade dos terroristas palestinos de levar um ataque a Israel, cujas reações e consequências eram certas e previstas.
Os atos terroristas cometidos pelo Hamas, hediondos e sem nenhuma justificativa militar, e todas as justificativas de vinganças, jamais podem ser admitidas. Israel tem todo o direito de se defender, mas não deve ser seduzido pela estúpida máxima do Velho Testamento de “olho por olho e dente por dente”, resistindo à barbárie do Hamas de dizimar populações civis, já sabendo que esse seria o instrumento único, já muitas vezes utilizado por Israel. A novidade para avançar no terreno da violência é o fato de que nesta guerra não se está respeitando nem as leis da guerra – pois as guerras têm leis – e estão praticando, os dois lados, aquilo que na linguagem popular se resume como o “vale tudo”.
Isso destrói os conceitos morais, as condutas ditadas pelos direitos humanos resumidos por Jefferson na Declaração de Independência americana, de 1776, que consagra sermos todos detentores destes direitos: “que os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de Direitos inalienáveis, entre os quais à Vida, à Liberdade e à busca da Felicidade.”
Acredito que noventa e nove por cento da Humanidade assiste revoltada às violações brutais que estão sendo cometidas no Oriente Médio. Não basta atender ao pedido do Papa Francisco: “Irmãos, parem! Parem!” Não basta a paz que todos desejamos, mas que o homem respeite as leis de Deus, os direitos humanos e pare de nos submeter diariamente à violência das imagens, pelos meios de comunicação, da crueldade que se pratica nesta guerra suicida e cruel. Que Deus tenha misericórdia da Humanidade e nos devolva os princípios morais e de convivência pacífica.
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“A amizade é um bem precioso”
A amizade é um bem precioso. Não é necessário que atinja o grau, como a de Michel de Montaigne e Étienne de La Boétie, em que nossas almas “se misturam e se confundem uma na outra”. Basta que estejam ligadas pelas circunstâncias da vida de uma maneira que “nossas almas conversem”.
Conheci Antônio Carlos quando eu era jovem e ele quase um menino. E logo nos entendemos pela semelhança de sentimentos em relação a valores caros a um e a outro: à palavra escrita, ao Maranhão e a sua gente, aos grandes valores da Humanidade…
Esse acordo entre nosso universo intelectual foi se reforçando ao longo dos anos. Os tempos antes de nos conhecermos desapareceram para podermos dizer que éramos amigos da vida inteira. E se os seus foram muito curtos para o desfrute dos que ficamos, foram longos o bastante para podermos aproveitar sua inteligência viva e perspicaz, sua excelente memória, seu fino ouvido para a linha poética, seu excelente gosto literário, sua aguda sensibilidade social, sua generosidade permanente.
Como o outro Antônio, Antônio Gonçalves Dias, que amávamos em comum, era de baixa estatura. A um e outro isso permitiu mostrar que estavam muito acima dos preconceitos fáceis e que o que importa é a vida que se constrói. E a de ambos foi bem e solidamente construída.
A brusquidão de sua morte a torna talvez mais áspera e difícil de enfrentar. Mas no meu caso tenho uma lição da juventude, quando o golpe do arcanjo levou meu irmão: esperada ou inesperada, a dor da perda, se difere no raio que cai em dia claro, é chuva que nos irriga para sempre.
Com os anjos que me guardam, Antônio Carlos continuará a acompanhar meus dias e minha vida.

35 Anos de Constituição
O processo de reforma constitucional de 1988 iniciou-se com a longa discussão sobre as Constituições de 1967 e 1969, isto é, as duas Constituições outorgadas pelo regime militar. Independentemente de suas qualidades ou defeitos, estavam marcadas como ilegítimas. Era necessário, para a redemocratização do país, um novo marco institucional. Este postulado tomou forma como um dos pontos do “Compromisso com a Nação” assumido pela Aliança Democrática, que permitiu a vitória da oposição em 1985. Levado, por força da fatalidade, à Presidência da República, coube a mim convocar a Assembleia Nacional Constituinte. Em 28 de junho enviei ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional dando aos parlamentares a serem eleitos em novembro de 1986 “poderes para elaborar e promulgar a nova lei fundamental e suprema do País”.
Criei, também, respeitando a vontade de Tancredo Neves, uma Comissão de Estudos Constitucionais para preparar um anteprojeto a ser encaminhado à Assembleia Constituinte. Para presidi-la Tancredo convidara Afonso Arinos de Melo Franco, o maior constitucionalista de sua geração, uma unanimidade nacional. Confirmá-lo foi para mim mais que uma obrigação política, um dever pessoal de quem nele tinha um amigo e um modelo.
Entregue em 1986, o trabalho da Comissão Afonso Arinos foi muito bom. É claro que não era, nem pretendia ser, perfeito. Ela optara pelo regime parlamentarista, e muitos veem nisso o motivo de minha decisão de não enviar seu anteprojeto à Assembleia Constituinte. Na realidade acredito que este é o melhor sistema de governo. Não remeti o trabalho à Constituinte porque seu presidente, Ulysses Guimarães, me pediu que não o fizesse. Ele me disse que o devolveria, um impasse que a frágil transição democrática não se podia permitir. Tive que atender a sua vontade.
Tendo convocado a Assembleia Constituinte de 1987, dei-lhe plenas condições de trabalhar em paz e liberdade. Foi a Constituinte mais livre do Brasil, sem peias e sem interferências, com medidas que tornavam o regime o mais democrático já vivido pelo país.
O trabalho da Constituinte, infelizmente, não caminhou bem. Para começar, o Congresso emendou o projeto de convocação, retirando a determinação de que a Constituição fosse promulgada no curso da primeira sessão legislativa, isto é, em 1987 — e acabou sendo a mais demorada de nossas Constituintes, estendendo-se por 20 meses. Criou-se um pretexto para lutas políticas com a discussão sobre a duração de meu mandato — que era, conforme o diploma expedido pelo TSE, de seis anos —, que tentei atalhar abrindo mão de um ano de mandato em maio de 87; mas essa discussão foi protelada até junho de 88. Pouco depois, na votação do 1º turno do projeto de Constituição, fiz um apelo para o seu reexame profundo. O projeto aprovado em primeiro turno colocava em xeque a governabilidade, ameaçava tornar o Brasil “o país do que poderia ter sido e não foi”. A Constituinte olhava o que devia ser “um instrumento de mobilização e de unidade do País” com a cabeça voltada para trás, olhos para o passado. Os interesses corporativos se instrumentalizavam em todo o texto constitucional.
Os riscos que eu via, não via sozinho. Afonso Arinos, que presidira a Comissão de Sistematização, disse, ao discursar na cerimônia de promulgação, que sua aplicação seria “extremamente duvidosa” e que “afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão ou falta de sinceridade”. E mais: “Tudo decorre do desajustamento entre a generosidade da aspiração política e a dificuldade da sua implementação jurídica.”
Aprovada a Constituição, fui o primeiro a jurá-la. Lutei pelo seu êxito, não só durante o meu governo, mas ao longo destes 35 anos. No que se refere aos direitos sociais e civis, sempre a aplaudi, louvei e apoiei. Mas ela criou, na área da organização do Estado, um espaço de ingovernabilidade, por ser híbrida, ao oscilar entre o parlamentarismo e o presidencialismo, sem unidade.
Infelizmente, muito do que eu previ em junho de 1988 aconteceu. A carga tributária disparou. Os conflitos entre os Poderes são o pão cotidiano. As ações de inconstitucionalidade se acumulam no Supremo Tribunal Federal. O Poder Legislativo é sufocado pela competência legislativa do Poder Executivo, que carece de meios para governar, cerceado pelo Poder Judiciário. Este precisa se tornar também o Poder Moderador.
Dos problemas do texto constitucional é um sinal também o número de emendas que a ele se fizeram e a ele estão propostas. O Congresso Nacional já promulgou 131 emendas. Foram apresentados muitos milhares de projetos de emenda constitucional. Para termos uma referência, nossa Constituição mais duradoura, a de 1824, teve uma única emenda, o Ato Adicional.
Ao mesmo tempo a Constituição vem sofrendo — tendo como ápice a intentona de 8 de janeiro — o ataque sistemático a sua essência democrática. A pretexto de agendas morais — já Afonso Celso denunciara os falsos moralistas e seu efeito deletério —, cantou-se um canto de sereias às Forças Armadas e destruiu-se a credibilidade da política e dos políticos, formando um caldo de contínua chantagem sobre o Poder Executivo e o Poder Judiciário para submetê-los a pautas corporativas, gerando ingovernabilidade para justificar as Fake News dos assaltantes.
Os 35 anos da Constituição de 1988 devem ser motivo de reflexão e de ação. A Carta constitucional foi um passo imprescindível ao restabelecimento da democracia. Ao mesmo tempo é um desafio à governabilidade que se acentua com as transformações de nosso tempo. Ao transformá-la, precisamos evitar o risco de mais uma vez nos voltarmos para o passado: sem esquecer suas lições, devemos pensar no próximo século, nos próximos séculos, construindo instituições que sejam ao mesmo tempo estáveis e dinâmicas, que conciliem a inserção do Brasil no mundo com a realização plena do Estado de bem-estar social.

Dica cultural: Dom Quixote
Todos os domingos, a partir deste mês, o site A Página do Sarney vai trazer uma indicação cultural. A proposta é contribuir e incentivar o gosto pelas artes das novas gerações.
A iniciativa está em consonância com a vontade de José Sarney, escritor premiado e um entusiasta na divulgação da leitura e cultura em geral para ser aproveitada pelas próximas gerações.
Leia aqui como foi o encontro de José Sarney com estudantes em palestra na Academia Maranhense Letras
A primeira indicação é um clássico da literatura mundial, considerado um dos livros preferidos de José Sarney: Dom Quixote de La Mancha (EL Ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha), do escritor espanhol Miguel de Cervantes (foto acima).
“Uma obra genial. A maior obra da literatura já escrita”, diz José Sarney, autor de obras premiadas e elogiadas mundial como Saraminda e O Dono do Mar, entre outras.
O clássico da literatura foi publicado em duas partes: a primeira em 1605 e a segunda somente dez anos depois, em 1615. Pelos estudiosos em literatura é apontado como o primeiro romance moderno, influenciando várias gerações de autores, inspirando poemas, pinturas e servindo como base para adaptação para diversos filmes.
Dividida em 126 capítulos, a obra traz Dom Quixote, um homem que, após se sentir inspirado por muitos romances de cavalaria, decide tornar-se um cavaleiro andante, lutar por justiça e proteger os oprimidos, além de provar seu amor por Dulcineia de Toboso, presença feminina perfeita que só existe na sua imaginação.
Com seu fiel escudeiro, Sancho Pança, o herói sai em sua jornada que mistura fantasia e realidade, transformando pequenos obstáculos em gigantes e exércitos de inimigos como sua luta contra os moinhos de vento.
Dom Quixote é um homem comum, com suas mazelas, insucessos e inseguranças. Essas características o diferem dos heróis clássicos, por isso é considerado, pelos estudiosos da literatura, um herói moderno.
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Pegando fogo
A marchinha de Francisco Mattoso lança o grito que nos últimos dias está na pele de todos: “Meu coração amanheceu / Pegando fogo, fogo, fogo!” Coração e braços e pernas estão assando com o caloraço de setembro. Nada da morena que passou perto: foram os recordes de temperatura que nos deixaram assim.
Nós aqui no Maranhão até que escapamos das temperaturas quarentenárias e não precisamos entrar em quarentena, mas no Sul Maravilha a coisa foi feia. Felizmente nós somos um povo que é antes de tudo um forte e não tivemos a mortandade que as canículas deste século têm feito no hemisfério norte, sobretudo entre os velhinhos como eu. Lá, quando a maré de caldo quente vem chegando, eles precisam começar as campanhas: “fique em casa”, “hidratação de hora em hora”, “feche bem a casa”.
Feche a casa? Pois é. Na Europa eles descobriram que as casas, bem isoladas para manter-se aquecidas no inverno, funcionam no verão para não deixar entrar o calor. Aqui nessa nossa cidade de São Luís temos felizmente os ventos alísios passando pelas casas de pé direito alto e ventilação cruzada, solução equatorial que nos deixaram os construtores portugueses.
Mas de onde vem este fogo infernal? Hoje não há dúvida de que das mudanças climáticas provocadas pelo homem. Aqui no Brasil não temos, infelizmente, dado a contribuição que devíamos. Continuamos desmatando e tocando fogo, a passos largos, na Amazônia, no Cerrado, até na Mata Atlântica — na minúscula fração da Mata Atlântica que ainda está de pé. É claro que o centro do problema está na Floresta Amazônica, que é tão generosa e acolhedora para o homem e que ele teima em destruir.
No começo do século passado ficou muito conhecido um livro — aliás o nome de um livro — de Alberto Rangel. Era um escritor empolado e difícil de ler, mas o nome colou e virou um apelido injusto. Aliás o conto que dá nome ao livro fala de um engenheiro que invectiva a floresta, que, na voz de Rangel, “poderia responder”:
“Fui um Paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam no sublime desabafo dos instintos de conservação… Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto… alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos estupradores…”
O livro foi prefaciado pelo extraordinário Euclides da Cunha. E se a visão de Rangel é a oposta do “inferno verde”, a explicação de Euclides tem o toque do livro inacabado, “O Paraíso Perdido”. “Daí as surpresas. […] as mudanças extraordinárias e visíveis ressaltam no simples jogo das forças físicas mais comuns. É a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo…” Seu plano era falar do impacto, da dificuldade de apreender, compreender a floresta. “…o que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas [,] lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênese.”
Mas a nossa visão contemporânea, para nós que podemos ver a floresta de avião ou mesmo do espaço, ainda é muitas vezes de incompreensão. Mesmo quando se vê as imagens com sensores que veem através do dossel das grandes árvores e se vê a devastação, há uma resistência em compreendermos a finitude que também a alcança. E aí se toca fogo. E nossa floresta está pegando fogo, causa e resultado das mudanças climáticas.
A coisa é difícil. Assim vamos ficar na situação de outra marchinha, essa de Haroldo Lobo e Nassara: “Allah-la-ô ô ô ô ô / Mas que calor ô ô ô ô / Atravessamos o deserto de Saara / O sol estava quente / Queimou a nossa cara / Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô / Mas que calor, ô ô ô ô ô ô…”
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Nomes que clamam aos céus
Ester de Assis Oliveira, 9 anos; Maria Eduarda Martins, 9 anos; Lohan Samuel, 11 anos; Djalma de Azevedo Clemente, 11 anos; Eloah Passos, 5 anos; Rafaelly da Rocha Vieira, 10 anos; Juan Davi de Souza Faria, 11 anos; Heloísa dos Santos Silva, 3 anos: cada uma dessas crianças foi morta à bala no Rio de Janeiro!!!! São nomes que clamam aos céus contra o estado de barbárie em que vivemos, registros da saudade que não passa sentida por suas famílias.
Antigamente quando uma criança morria era — o sentido ainda está dicionarizado — chamada de anjinho. É uma boa palavra, pois marca a inocência que levou a História da arte a identificar como puttini — menininho, do latim e do italiano — as figuras rechonchudas de anjos que começaram a encher a arte durante o renascimento.
Digo que os nomes clamam, pois os anjinhos já estão no céu, mas suas famílias vivem em terra o inferno, não só da perda irrecuperável como da ameaça permanente de represálias, como se elas, vítimas da mais cruel das perdas, que é a dos filhos, fossem riscos para os assassinos, que correm todos impunes, quando muito nominalmente respondendo em liberdade pelo crime de terem matado — eliminado irrevogavelmente o futuro, os sonhos, os carinhos — alguém que não podia ser, por uma obviedade que não precisa ser lembrada, mas deve ser lembrada, culpado. Claro que, se fosse culpado, também não podia ser morto: mas como a pena de morte, apesar da vedação constitucional e da falta de sentença judicial, em nosso País a todo e cada dia ela é executada em 18 pessoas, nem falemos disso. Anjinhos duplamente inocentes foram mortos, e seus assassinos andam por aí intimidando testemunhas, a começar pelas vítimas sobreviventes, que são a família e os amigos.
Ia Heloísa com seus pais pelo caminho em que estava uma “viatura” da Polícia Rodoviária Federal. O pai hesitou se devia parar ou não e acabou ligando o pisca-pisca para encostar o carro. Foi uma “atitude suspeita” e lhes mandaram umas balas, duas das quais atingiram Heloísa.
Eloah estava em casa brincando. Uma “ação policial” foi feita na vizinhança em que morava. As balas pipocaram. A avó, na casa ao lado, correu para abrigá-la, mas quando chegou sua filha a tinha nos braços — mater dolorosa —, a ferida irrevogável correndo da chaga no lado.
Djalma e outras crianças iam para a escola, ele ao lado da mãe. Uma “troca de tiros” começou, não houve tempo para procurar abrigo: entre os corpos feridos estava, sem vida, o do sacrificado.
Lohan, este, não se sabe como morreu. Ele e uma vizinha, de 19 anos, moravam no lugar errado e foram atingidos pelas balas certeiras que lhes tiraram a vida.
Ester voltava da escola, parou para comer um pedaço de bolo. Ela e um rapaz de 19 anos estavam no lugar em que começou uma “troca de tiros”. Caíram por balas matados.
Maria Eduarda, à noite, via a dispersão de um bloco de carnaval. De repente voou bala para todo lado. Ela e mais vinte pessoas foram atingidas. Não viu o esvair da alegria, levou-a a dança da morte.
Rafaelly brincava com outros anjos. Era noitinha. De repente passaram carros atirando. Uma bala de fuzil acabou com a brincadeira e enviou-a para brincar no Céu.
Juan estava na varanda de casa enquanto o mundo festejava a passagem do Ano Velho para o Ano Novo. Papocavam os fogos de artifício. Mas o barulho que o atingiu era de tiro. Nunca mais ele verá um novo ano.
Diz o Padre Vieira que andam misturados os bens e os males, num permanente antagonismo que faz parte da natureza, céu e nuvem, sol e sombra. Esse dualismo se estende às peças do próprio tempo, mas espaçadas: o verão e o inverno, a noite e o dia. “Mas para haver mal, e bem, basta um só momento!”
O bem da vida concedido a estas crianças inocentes existia ao mesmo tempo que as balas que o mal destino distribui aos milhões em nosso País. Só podemos pedir a Deus que ouça o clamor desses nomes e as lágrimas dos que ficam e permita que as crianças possam viver sempre o seu futuro.
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Fundação da Memória Republicana e os registros do Brasil
Documentos, livros, obras de arte, registros audiovisuais, objetos raros. Esses são alguns itens que fazem parte do acervo doado por José Sarney à Fundação da Memória Republicana, instalada no Convento das Mercês, localizado no bairro Desterro em São Luís. Os bens correspondem ao período em que ele exerceu a Presidência da República, de 1985 a 1990 e, também, peças e documentos que juntara ao longo da vida, até mesmo antes da Presidência. Esse é o único acervo presidencial que se encontra abrigado na região Nordeste do país.
Localizada no prédio construído em 1654 e tombado como Patrimônio Histórico Nacional, a Fundação da Memória Republicana abriga um rico material museológico que leva o visitante a um passeio por um contexto social e político importante da nossa história recente.

Dos bens doados por José Sarney, os números impressionam: o acervo é composto por cerca de 1 mil documentos que testemunham o dia a dia do então presidente, agendas, viagens, cartas, acordos diplomáticos, mensagens ao congresso, cartas de populares, planos econômicos, projetos e todo o processo de formulação, convocação e execução da Assembleia Nacional Constituinte que resultou na promulgação da carta política de 1988, nossa constituição cidadã, um dos documentos mais importantes da nossa democracia.

Entre os documentos, há também 50 mil fotografias, 329 fitas de vídeo e 478 fitas VHS que testemunham esse período.
São aproximadamente 5 mil itens: medalhas, condecorações, diplomas, telas, esculturas e obras de arte em geral, oferecidas por chefes de estado de todo o mundo ao então presidente José Sarney em deferência à legitimidade democrática por ele restabelecida no país e ao povo brasileiro.
A Fundação conta ainda com uma biblioteca com 24.624 livros, dentre os quais 3.092 são obras raras. Todos estes doados ao Estado do Maranhão por José Sarney. Essa vasta documentação compõe o acervo que está sendo digitalizado para proporcionar melhor acesso ao público em geral por meio das plataformas digitais. A meta é que esse projeto seja concluído até o final de 2024.

Vontade
Para José Sarney “o acervo textual é o pulmão de todo acervo”, pois, expressam a dinâmica histórica da construção da democracia brasileira, com seus desafios, idas e vindas e obstinada motivação para restabelecer os valores da democracia, direitos e liberdades individuais e coletivas no Brasil.
O desejo de José Sarney ao guardar e, posteriormente, doar ao Maranhão o acervo presidencial foi de constituir um verdadeiro centro de pesquisa sobre a redemocratização do País oferecendo fontes históricas primárias que possibilitem ao pesquisador mergulhar mais profundamente no contexto social, político e econômico no qual se deu a redemocratização.
Para ele, o conhecimento da História liberta, abre perspectivas e projeta para o futuro, pois não seria possível compreender o Brasil de hoje sem considerar a transição democrática, engenhosamente conduzida pelas mãos do maranhense José Sarney, que, exercendo o cargo de Presidente da República conduziu o país, alicerçando o caminho da democracia que usufruímos hoje.

Pesquisa
A consulta ao acervo pode ser realizada de forma física na sede da Fundação após agendamento e solicitação via e-mail: fmrb_agpesquisa@fmrb.ma.gov.br.
Em relação ao acervo museográfico, as peças estão expostas no Museu da Fundação da Memória Republicana Brasileira localizado no Convento das Mercês (Desterro). A exposição permanente conta com 30% dos itens, os demais estão acondicionados em reserva técnica, podendo ser vistos mediante agendamento prévio. O acervo documental, bibliográfico e audiovisual pode ser consultado através de agendamento via e-mail: fmrb_agpesquisa@fmrb.ma.gov.br.
Saiba mais
A visitação acontece de terça a sexta das 08h às 17h, aos sábados das 09h às 17h e aos domingos das 09 h às 13h. A entrada é gratuita.
O Museu foi destaque recentemente em reportagem especial no Portal Imirante. Leia aqui!

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