José Sarney
A Casa do diálogo
Durante a maior parte de minha vida o começo do mês de fevereiro significava a abertura da Sessão Legislativa. Como acredito na “liturgia” das instituições, pois a ação concreta depende das vontades e estas do caráter simbólico dos gestos e das palavras, sempre a essas solenidades dei grande importância. Chega-se a elas com as expectativas do que será construído nos próximos meses, com a reflexão sobre como se pode contribuir para alcançar o objetivo da política, que é o estabelecimento da justiça social.
Algumas vezes me coube o papel de protagonista, mas sempre pensei que, igual a todos os senadores e deputados, tinha um trabalho que exige a sedimentação de uma profunda consciência moral de nossas responsabilidades, a obstinada decisão de não cometer erros, de jamais aceitar qualquer arranhão nos procedimentos éticos que devem nortear nossa conduta.
O Congresso Nacional é o cerne do sistema representativo. Nele está presente a diversidade de pensamento, das vontades, da necessidade dos cidadãos de todo o País, expressos nas palavras dos parlamentares. Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal o debate amplo e leal leva à solução das controvérsias.
Este ano, durante o recesso do Legislativo, os três Poderes foram vítimas de uma brutal agressão por pessoas que diziam expressar uma opinião: a da rejeição às instituições, da rejeição ao próprio Estado de Direito. Essa é a única opinião que não pode jamais ser aceita, pois significa a autodestruição da sociedade. Sem reação, teríamos não apenas a destruição dos prédios, que podem ser recuperados, mas do próprio instrumento que garante a liberdade de expressão, que é o Estado.
Como as outras instituições democráticas, muitas vezes o Congresso Nacional foi fechado. Nunca havia sido fisicamente destruído. Mas sempre houve um grupo de homens que lutou pela sua existência, por seu funcionamento, sabendo que a sobrevivência das instituições é a sobrevivência da Nação.
“O que é o poder civil?”, perguntava Milton Campos; e respondia: “É a brigada de choque dos políticos que compõem o Congresso.” É o poder civil que garante a democracia; sem a soberania do poder civil qualquer regime é apenas um jogo de cena.
O Estado é o instrumento do bem-estar social, mas o desenvolvimento social só terá êxito com o desenvolvimento econômico. E sabemos que a economia de mercado não é boa distribuidora de renda, que é necessário que o Estado seja forte para assegurar uma sociedade justa.
O Brasil foi feito pelo diálogo, pela compreensão dos homens, pelo gênio dos seus políticos. A troca de ideias é o principal instrumento de que dispomos para enfrentar as emergências nos trágicos problemas da fome, do desemprego real, do acesso à saúde, à educação, à segurança, à cultura, da desigualdade de renda, da destruição do meio ambiente, da falta de infraestrutura.
A democracia não é apenas o melhor dos regimes: é o único caminho.
Cultura, minha causa
Por duas vezes me despedi — coisa de que não gosto — do Senado Federal: como Senador pelo Maranhão, em 14 de março de 1985; como Senador pelo Amapá, em 18 de dezembro de 2014. Da primeira vez eu me preparava para assumir a Vice-Presidência da República, acompanhando o Presidente Tancredo Neves; da segunda vez eu deixava, depois de sessenta anos, de participar da política representativa.
Aconteceu, em 1985, a tragédia que levou a vida de Tancredo. Colocou-se para mim a responsabilidade de conduzir a transição democrática, e ela foi feita, com a Assembleia Constituinte que convoquei promulgando a nova Constituição do Brasil. Para assegurar sua elaboração com total independência, estabeleci um regime de liberdades — de representação política, legalizando os partidos de esquerda, até então proibidos; de representação sindical, legalizando os sindicatos e as confederações sindicais; de imprensa, de expressão etc. Dei espaço no Estado para algumas áreas fundamentais, criando os ministérios da cultura, da reforma agrária, da ciência e tecnologia e o IBAMA.
A cultura foi a minha causa parlamentar, aquela que definimos como principal na nossa atuação, que marca o papel que temos ao passar pela vida pública. Para lembrar dois exemplos de Parlamentares que tiveram uma causa marcante para si e relevante para o País, cito Joaquim Nabuco, com a abolição, e Nelson Carneiro, com o divórcio. A minha foi a cultura, por ela lutei e a ela dei instrumentos.
Pouco depois que cheguei ao Senado, em 1972, apresentei um projeto de incentivos para a cultura. Ele não avançava. Então, como último gesto antes de renunciar para ocupar a Vice-Presidência da República, o apresentei pela quinta vez. E tive a felicidade de sancioná-lo em 1986. No Congresso deram-lhe o nome de Lei Sarney. O governo que sucedeu ao meu fechou o Ministério da Cultura e revogou a Lei de Incentivos à Cultura para, pouco depois, propor nova lei, nomeada Rouanet desde o projeto. No fundo o que se queria era esconder meu nome e meu pioneirismo.
Sem rancores, ajudei, com Fernando Henrique Cardoso, a viabilizar este projeto. Depois disso, muitas vezes, defendi a política de incentivos fiscais à cultura dos seguidos ataques de setores que a consideram um peso no Estado. Já mostrei muitas vezes que as grandes potências a incentivam e dela têm imenso retorno, sendo parte importantíssima de seus PIBs. Aqui mesmo a participação da cultura nas rendas do País é muito expressiva.
As consequências do investimento na atividade cultural são individuais, pois cada obra de arte é uma criação única que, materializada, assume vida própria e exprime a essência dos sentimentos do povo. E são coletivas, pois o caminho para um país manter sua identidade, tornar-se forte, é a cultura. Não há grande nação que não tenha uma grande cultura. Uma grande potência não pode ser uma potência militar, uma potência econômica, não pode ser uma potência política, se não for uma potência cultural.
Também me preocupei muito com a política do livro e da leitura. Propus e consegui a aprovação da Política Nacional do Livro, mas o Fundo Nacional Pró-Leitura, que também propus e foi aprovado no Senado Federal em 2011, infelizmente até hoje não virou realidade. A leitura é uma das peças-chaves, importantes, da formação dos jovens, do conhecimento dos adultos. É lendo que se abrem as portas, os horizontes da imaginação, a capacidade de compreender e a esperança de transformar o mundo.
Acredito que passei um quinto da minha vida lendo. Não tenho outro hobby, não tenho outra dedicação para encher o meu ócio, senão o prazer de ler.
É com grande satisfação que acompanho, agora, o renascimento do Ministério da Cultura. Espero que, com ele, renove-se o apoio do Estado à cultura, aos criadores de arte, nas suas diversas expressões, tanto eruditas quanto populares. É a cultura quem forja a identidade de um povo e quem o apresenta ao mundo. O Brasil valoriza, assim, a sua voz natural, o que é essencial para que exerça plenamente seu papel entre as nações.
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Desigualdade e Justiça Social
Toda a minha vida pública teve como objetivo maior a busca da justiça social. Presidente da República, com o lema “Tudo pelo social”, com o pleno emprego — as taxas de desemprego chegaram à casa dos 2% —, programas de alimentação, criação do SUDS e do SUS, entre muitos outros, muitos milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza. Quando apoiei o Presidente Lula em seus primeiros governos tive a satisfação de ver a prioridade à área social e ao combate à fome. Agora, mais uma vez, concordo inteiramente com Lula quando diz que seu principal objetivo é o fim da desigualdade.
A igualdade entre os homens está nos grandes documentos políticos da História e também na interpretação da Igreja de sua função social. A Rerum Novarum já fazia Bernanos colocar, na boca de seu “pároco de aldeia”, a avaliação de que “a simples ideia de que o trabalho não é uma mercadoria […] perturba as consciências”. A constatação de que a renda dos 10% mais ricos equivale a mais de 50% da renda de todos os brasileiros é insuportável. Sem mudar essa relação não se acabará com a fome. É com esta visão que sempre considerei os postulados neoliberais que aplaudem as despesas financeiras e rejeitam os investimentos sociais uma pérfida inversão de valores. Falta-lhes visão do futuro e projeto de sociedade.
Há quase 25 anos apresentei o primeiro projeto instituindo cotas raciais no Brasil. Quero destacar que ali eu propunha 20% como cota mínima, pois, sendo negros e pardos a maioria da população, esse número pode e deve ser aumentado conforme as circunstâncias. As cotas eram necessárias para superar a opressão contra os afrodescendentes, que eu mostrava com dados fortes como o de que, entre os 1% mais pobres dos brasileiros 80% eram negros. A razão estava com José Bonifácio que, em 1825, falava já em “expiação de nossos crimes e pecados velhos”.
Tive uma grande satisfação em ver as posses das duas ministras que assumiam os dois novos ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial. A ministra Anielle Franco tem uma história de vida extraordinária, de grandes esforços e enormes sofrimentos, e mostra firmeza e determinação, que serão necessárias para vencer esse desafio multicentenário de tratar como iguais todos os brasileiros.
Sônia Guajajara é maranhense e de um povo numeroso em nosso Estado, apesar de ter sofrido grandes violências ao longo da História, inclusive o trágico episódio do Alto Alegre. Os povos que habitavam o nosso subcontinente antes do Brasil já não são dizimados como nos tempos de Vieira, que dizia já terem sido mortos, em meados do século XVII, mais de 2 milhões, mas continuam sendo assassinados e espoliados todos os dias, numa situação também intolerável.
Os caminhos para diminuir a desigualdade passam todos por um ponto fundamental — também esse assinalado há 200 anos por José Bonifácio: a educação. O ensino básico público e obrigatório foi criado pela Revolução Francesa, mas demorou um século para ser implantado na França. A Lei de 15 de outubro de 1827, em que D. Pedro I determinou que cada “cidade, vila ou lugares mais populosos” tivesse uma escola, também demorou a ser implantada no Brasil. Hoje, infelizmente, a desigualdade na oferta da educação é uma realidade; felizmente, alguns estados, como Ceará e Piauí, têm resultados que demonstram que o sonho da educação de qualidade para toda a infância brasileira é possível e está ao alcance da vontade política. E a decisão de fazer do antigo sonho realidade foi tomada pelo Presidente Lula.
Vivi muitas crises, todas centradas em interesses pessoais e corporativos. No caminho da Transição Democrática enfrentei muitas delas. Aprendi que, com determinação e prudência, elas passam, mais cedo ou mais tarde. O que fica é o que se constrói para todos, como o Estado de Direito, a Democracia e os avanços na Justiça Social.
O ataque à democracia
Estarrecido, o Brasil assistiu, no domingo, ao primeiro ataque simultâneo aos Três Poderes. Nossa História tem alguns episódios de ataques a um ou outro Poder, em geral durante os golpes — ou tentativas de golpe — de Estado que marcam nosso caminho para a estabilidade democrática. Nunca, no entanto, houve qualquer movimento que se parecesse com a selvageria do bando de arruaceiros que atingiu agora o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal.
A Assembleia Constituinte e Legislativa de 1823 foi fechada por militares a mando do Imperador na “Noite da Agonia”, no dia 12 de novembro. No 7 de abril de 1831 Dom Pedro abdicou em meio a grande agitação pelas ruas do Rio de Janeiro, mas embarca para o exílio sem qualquer palácio invadido. O Paço Imperial foi ocupado durante a Proclamação da República — aliás, sem a participação do Marechal Deodoro. O que o Presidente Deodoro fez foi mandar invadir, em 1891, a Câmara e o Senado. Na revolução de 1930 Getúlio recebeu pacificamente o Palácio do Catete, e, já ditador, resistiu ao ataque dos Integralistas contra o Palácio da Guanabara. A reação de Vargas foi dura, e vários dos oitenta homens que participaram do ataque foram depois fuzilados. A saída do ditador, em 1945, foi concertada com os militares e um avião da FAB o levou a São Borja. Durante o regime militar de 1964 uma tropa entrou no Congresso Nacional para retirar o Presidente da Câmara dos Deputados, Adauto Lúcio Cardoso, e os deputados que, com ele, resistiam à decretação de recesso em outubro de 1966.
Há alguns anos vândalos tentaram invadir, sem sucesso, o Congresso Nacional, mas os danos foram de vidraças quebradas durante sua contenção.
Nenhum desses episódios se compara com o que aconteceu neste triste 8 de janeiro. Para começar, as ameaças à democracia e aos Três Poderes vieram se adensando ao longo de meses, até culminar, depois das eleições, em inúmeros acampamentos de pretensos patriotas junto a quartéis por todo o País. Já por mais de uma vez esses grupos haviam tentado invadir o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Sabia-se, assim, da gravidade da situação.
Espantosamente, o maior grupo se formou diante do Forte Apache — Forte Caxias —, Quartel-General do Exército Brasileiro. Dali saíam em excursões pela cidade, sempre criando mal-estar, até culminar, no dia da diplomação do novo Presidente da República, em grandes depredações no centro de Brasília, concentrando-se o ataque na sede da Polícia Federal. A impunidade dessas violências foi preocupante.
Com a posse do Presidente Lula os episódios pareciam superados. Com o aproximar-se do fim da primeira semana do novo governo, no entanto, começaram novamente as convocações cifradas na internet. Apesar dos avisos, as forças policiais do Governo do Distrito Federal e da União foram surpreendidas com a movimentação agigantada e violenta.
Infelizmente o que se viu foi a polícia escoltar os grupos numerosíssimos que se dirigiam à Praça dos Três Poderes. Em tese a praça estava vedada a manifestações, mas houve apenas uma ridícula linha de policiais no meio das vias asfaltadas, deixando a massa inundar o gramado até assaltar o Congresso Nacional e, depois, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto. Começou então a destruição: plenários, salões nobres, gabinetes, todos os símbolos do Estado.
Qual era o objetivo dos terroristas? A destruição pela destruição? Não faz sentido. A ideia era evidente e muitas vezes verbalizada: provocar a intervenção das Forças Armadas, em total contradição com suas funções constitucionais. Felizmente prevaleceu o compromisso assumido pelos militares com seu juramento de defender o País.
A reação do Estado tem que ser de absoluta serenidade, mas também de severidade. O Estado tem o monopólio da força, e deve exercê-lo. Os arruaceiros têm que ser levados à Justiça e sofrer as penas previstas na Lei. Os responsáveis, estimuladores e financiadores, têm que ser identificados e, da mesma forma, punidos.
Temos, também, que melhorar nossa legislação em relação aos discursos antidemocráticos. A liberdade de expressão deve ser plena, mas o Estado de Direito não pode permitir a apologia de sua destruição. Com a legislação correta, os terroristas não teriam chegado até as cenas tristemente inesquecíveis da destruição das sedes dos Três Poderes.
Ano que vai, ano que vem
O tempo é algo em que vivemos, com que não nos conformamos e que festejamos. Os versos de T. S. Eliot, que sempre cito, dizem tudo: “O tempo presente e o passado / estão ambos talvez no tempo futuro, / e o tempo futuro está contido no tempo passado.” Já o Padre Vieira explicava que “se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro”.
O homem, para conviver com essa complicação, resolveu recriar o tempo, imaginando que poderia controlá-lo. Inventou maneiras de marcar as horas e os dias pela passagem do Sol; e a sucessão de dias pela passagem da Lua. Depois começou a contar os anos pelas estações, bem marcadas estas pelos solstícios de inverno e de verão. Apesar de grande parte da Humanidade estar vivendo no ano do Tigre 4720 — só daqui a três semanas entrarão no ano do Coelho —, e ser mais difícil saber que calendário seguir nas áreas sob influência hindu que entender os dito cujos, a maior parte do mundo segue o calendário definido pelo Papa Gregório XIII na bula Inter gravíssimas.
Nós passamos nesta noite de sábado para domingo pela virada — não sei bem o que virou — do ano velho para o ano novo. E, embora o novo ano seja cheio de expectativas e esperanças, o ano velho, neste final, foi de muita tristeza, pois marcado pela morte.
Sábado cedo morreu, em Roma, o Papa Ratzinger, Bento XVI. Participando ainda jovem do Concílio Vaticano II, ele se dedicou ao estudo da liturgia e defendeu a renovação do Santo Ofício. Poucos anos depois João Paulo II o retirou da responsabilidade de ser Arcebispo de Munique justamente para presidir a Congregação para a Doutrina da Fé, que São Paulo VI criara para substituir a velha Inquisição Romana e sua versão mais recente, a Sacra Congregação do Santo Ofício. No cargo se tornou o principal auxiliar do Papa Wojtyla.
Durante anos Ratzinger defendeu com firmeza a ortodoxia na Igreja como auxiliar do Papa, mas em 2005, com a morte de São João Paulo II, foi eleito para substituí-lo e adotou o nome de Bento. Um grande intelectual e brilhante escritor, pareceu viver os anos seguintes com sofrimento, tendo dificuldade em enfrentar as tempestades que se abatiam sobre Roma. Como solução, surpreendeu o mundo em 2013 ao renunciar ao cargo. A profunda integridade de sua fé permanece como uma lição extraordinária.
Dia 29 Pelé deixou o esporte, do Brasil e do mundo, com enorme saudade do seu gênio. Nenhum jogador se compara a ele, que foi decisivo para tornar o futebol no mais amado dos jogos atléticos, numa era em que estes expandiram-se de pequenos clubes de elite para serem jogados em cada várzea e cada quadra de vizinhança, informalmente ou em clubes que apaixonam multidões e movimentam quantias fabulosas. Ele foi único na capacidade física e na inteligência do que fazer com a bola para superar os adversários que tentassem evitar os gols inevitáveis.
Quando fui Governador, Marly organizou um jogo beneficente entre a seleção maranhense e o time do Santos. Conheci então sua generosidade e sua simpatia.
Convidado para uma visita oficial aos Estados Unidos pelo Presidente Reagan, levei Pelé na comitiva. Nunca mais um Presidente terá a oportunidade de contar com o prestígio de alguém conhecido por toda a Humanidade, como ele era. Naquela viagem ninguém dava bola para os Presidentes, ninguém queria saber dos Presidentes, das outras personalidades, todos queriam era ver o Pelé.
E a literatura brasileira perdeu Nélida Piñón, sua figura mais importante neste século em que vamos entrando, quando o Brasil começa a expandir o caminho traçado por Jorge Amado de ter seus autores conhecidos em todo o mundo. Nélida criou uma obra colossal, reconhecida por um sem-número de prêmios, entre eles alguns com nomes que simbolizam sua grandeza: Juan Rulfo, Rosalía de Castro, Cervantes. É o universo hispano-americano, decerto, de que ela se tornara um dos maiores nomes.
Ela era para mim sobretudo uma amiga de muitos anos, por quem tínhamos, Marly e eu, uma enorme afeição, sempre reforçada por seus gestos de estima. Orgulho-me de ter sido um dos que apoiou sua entrada na Academia Brasileira de Letras, onde presidiu o centenário da Casa, e onde foi uma líder que orientou nosso caminho no século XXI. Saudade imensa!
Mas o novo ano abre largas as portas da esperança, nesta convenção do tempo que assimilamos para definir que será melhor o amanhã e, já vendo isso acontecer, podemos, mais uma vez, desejar bons anos para todos!
Três Américas
Diante das revelações que saem agora nos Estados Unidos, de que Trump queria acabar com a Constituição americana, com mais de duzentos anos de existência, e dar um golpe de Estado, vemos que a velha realidade do sonho de Monroe — da “América para os americanos” e de um continente integrado — desapareceu.
Na verdade, sempre existiram três Américas. Uma, a América do Norte, rica, saxônica, de onde saiu o grande país que dominava o mundo, liderando política e economicamente os países dos cinco continentes e disseminando as ideias de liberdade, dignidade das pessoas e direitos humanos. O México dela participava pela fronteira comum e pelos chicanos, os emigrantes mexicanos. A segunda seria América Central e Caribe, pobre, onde os Estados estavam sujeitos a instabilidade constante. Exemplo terrível da permanência desse passado vem do Haiti, com o assassinato do Presidente Jovenel Moise. A terceira, América do Sul, região mais pacífica da face da Terra, unida, com grandes riquezas naturais, mas sem estabilidade econômica, dominada de vez em quando por grupos militares e permanentemente em busca da democracia.
Sofrem uma crítica permanente os países onde existe uma desigualdade muito grande, com pobreza endêmica e, sobretudo, um anarcopopulismo, que mantém constantemente instabilidade institucional.
O Brasil e os demais países da América Latina muito sofreram com isso, sendo chamados de país de cucarachas ou repúblicas de bananas.
Com o desenvolvimento do mundo isso mudara para melhor. Por isso é estarrecido que hoje abro o jornal e vejo a manchete de que cúpula militar americana, no fim do governo Trump, evitou que o país assumisse a má fama do passado das três Américas. Os detalhes foram revelados agora por uma fonte insuspeita, o Chefe do Estado Maior Conjunto, General Mark Milley, num livro que foi editado agora — I Alone Can Fix It: Donald J. Trump Catastrophic Final Year [Só eu posso consertar isso: o catastrófico ano final de Donald J. Trump]
Quando houve a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro deste ano, a 14 dias da transmissão de cargo do presidente americano, todos pensamos que fosse mais uma patuscada de Trump, dentre as muitas outras que fez. Foi um mal exemplo para o mundo inteiro que a maior democracia do mundo apresentasse cena daquela natureza, que marcava a história das Américas Central e do Sul, na constante busca de uma democracia sólida, capaz de assegurar um governo forte, fora da turbulência das antigas repúblicas das cucarachas e de bananas. Mas não era só isso e tinha uma profundidade maior: revela-se que Trump tentava realmente dar um golpe de Estado.
A internet trouxe uma mudança fantástica à humanidade. Primeiro, matou a verdade, não se sabe onde ela está. São tantas versões que não se sabe mais qual é a verdadeira. Deus quis que a resistência ao golpe não se tenha tornado uma fake news, porque, se os Estados Unidos estivessem vulneráveis, como queria o Trump, ninguém poderia dormir tranquilo.
Neste momento em que o mundo vive tantas crises, não podemos aceitar mais uma, tão danosa quanto a da Covid-19, a Covid da democracia. A primeira ameaça a vida, e a segunda, a liberdade.
Valha-nos Deus.
O Tribunal das Contas
É sempre difícil ter uma medida exata do brasileiro a que o País ficou devendo mais do que a qualquer outro, pois por dez vezes lhe recusou a Presidência, cargo a que ele dera a primazia e a grandeza. Filho de político prestigiado, mas pobre, fez-se advogado, político, escritor. Partilhou com Nabuco as causas da abolição e do federalismo; mas vindo o golpe republicano, ocupou sozinho o largo vazio do Estado de Direito, que reinstituiu com seu projeto de constituição, e os negócios públicos, no Ministério da Fazenda. O Senado tornou-se sua Casa; da opinião pública ocupou o lugar maior que só desapareceria com sua morte; dominou a diplomacia em Haia; manteve sozinho vivo o espírito civil diante da tutela militar da República Velha. Olho as prateleiras com suas obras: o trabalhador das letras se mede em metros, tantos que levou décadas o trabalho da Casa de Rui Barbosa para publicar sua edição definitiva. Presidente de honra do Instituto dos Advogados do Brasil, é o símbolo da advocacia e o modelo da Justiça.
Desculpem essa imensa cabeça de artigo, mas esse homem pequenino deixou ainda uma obra cuja importância continua a crescer por seus mais de 130 anos: o Tribunal de Contas da União. Há muitos antecedentes no caminho desta Instituição, algumas que tomaram caminhos curiosos, como o Échiquier de Normandie — isto é, o Exchequer of England, depois que Guillaume atravessou a Mancha para recriar a velha herança institucional romana —, mas certamente a Cour de Comptes de Bonaparte é uma ideia mais moderna da necessidade do Estado, já agora separado das contas reais, controlar sua receita e, sobretudo, o modo como faz suas despesas para desempenhar suas obrigações. Rui a inclui na Constituição e dá existência concreta. Em sua exposição de motivos, ele dá o exato retrato da importância que tem o controle dos recursos públicos:
“O primeiro dos requisitos para a estabilidade de qualquer forma de governo constitucional consiste em que o orçamento deixe de ser uma simples combinação formal, como mais ou menos tem sido sempre, entre nós, e revista o caráter de uma realidade segura, solene, inacessível a transgressões impunes. [Um tribunal] que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias — contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional.”
Não foi um caminho fácil a implantação do controle das contas. Ainda hoje, como mostra o exame no Supremo Tribunal Federal do “orçamento secreto”, há resistência a que o dinheiro público seja usado com critério não apenas formal, mas eficiente, cumprindo os requisitos constitucionais.
Nomes ilustres passaram pelo Tribunal de Contas da União e deram contribuição importante a sua efetividade. Quero hoje registrar o papel do atual Presidente do Tribunal, o jovem doutor Bruno Dantas. Já funcionário concursado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, aos 25 anos foi aprovado com destaque para consultor do Senado Federal, onde o conheci. Revelou-se de imediato seu brilho intelectual, tanto na sólida formação, assegurando-lhe grande precisão na análise das questões, como pelo domínio articulado dos temas legislativos que fazia de seus pareceres verdadeiras teses. Quatro anos depois seus colegas o indicaram para dirigir a Consultoria Legislativa, cargo onde mais uma vez deu a dimensão de suas qualidades, agora como administrador de uma equipe de excelência, como é a deste órgão do Senado.
Escolhido pela Casa para ser membro do Conselho Nacional do Ministério Público, depois do Conselho Nacional de Justiça, seu desempenho o fez a escolha natural — e que se provou acertadíssima — para a vaga do Tribunal de Contas da União cuja indicação cabia aos Senadores. Assim, em 2014 tornou-se um dos mais jovens membros deste órgão fundamental para o controle das contas e tarefas públicas da União. Agora, aos 44 anos, torna-se seu Presidente. Cumpre assim, para usar uma expressão da antiga Roma, um verdadeiro cursus honorum, o caminho da excelência em todos os seus encargos.
O Tribunal das Contas criado por Rui Barbosa está em boas mãos. Ele terá um papel fundamental nesse momento em que se inicia uma nova etapa do Estado brasileiro.
Crise na democracia americana
A última sucessão presidencial americana mostrou fatos que ninguém jamais imaginou pudessem acontecer nos Estados Unidos: negação da lisura das eleições, invasão do congresso para evitar a diplomação do eleito e a troca de afirmações contrárias ao sistema democrático constituíram uma surpresa a nós que pensávamos que a democracia americana era sólida.
A chave da construção dos founding fathers é de que o embate das forças, quando é grande o tamanho da amostra, gera o equilíbrio. Foi o que descreveu Tocqueville, no seu tratado clássico sobre a democracia nos Estados Unidos. Ele via os riscos que corria o sistema baseado na igualdade — o individualismo e o despotismo, a “tirania da maioria”, com a busca das vantagens pessoais — e explicava: “o amor do bem e do útil, a virtude, são movidos pelo ganho”.
Mas só numa observação distante o sistema parecia correr às mil maravilhas. Os inúmeros problemas surgidos desde os primeiros dias, que levaram rapidamente à transformação do modo de eleição do vice-presidente, à criação dos partidos, aos privilégios dos especuladores, ao genocídio dos indígenas, à monstruosidade da escravidão, à guerra civil, aos sucessivos assassinatos de presidentes etc. deveriam soar os alarmes de que nem tudo ia bem.
O cerne do sistema era o “check and balance”. Um controlava o excesso de poder do outro. Agora, no séc. 21, os republicanos lançaram mão do que os dois partidos já haviam praticado nos Estados: a obstrução do Executivo.
O problema estava nos pressupostos que pareciam claramente definidos por Tocqueville. Para acontecer o equilíbrio dos interesses particulares é preciso que eles se exprimam em interesses gerais. Mas eles se exprimem, na realidade, pela ideia de interesses individuais. O perigo não está só nos interesses corporativos, mas na manipulação das ideias por esses.
A esta altura a degradação de democracias não era, é claro, novidade. A República de Weimar fora facilmente destruída por Hitler, que, não conseguindo fazê-lo de fora, a roeu por dentro.
Na penúltima eleição presidencial americana se viu a larga construção de uma série de mentiras primárias em que a outrora maioria silenciosa queria acreditar; a conveniência das máquinas eleitorais estaduais; a cumplicidade do “mercado”.
Com a eleição do Trump, o mundo assistiu à decomposição de todos os princípios políticos. Os Estados Unidos deixaram de ser um exemplo para o mundo. Romperam o Acordo de Paris, fundamental para a sobrevivência da humanidade, não renovaram o controle de armas nucleares etc. Trump se preparou para seguir o caminho dos autocratas do mundo inteiro, que começa pela prolongação do mandato. Tomou a vacina de dizer que, se perdesse, as eleições estariam fraudadas.
Mas parecia que Trump seria a liderança absoluta do Partido Republicano pelas próximas décadas. Nas eleições intermediárias que renovam a Câmara dos Deputados e parte do Senado, resolveu mostrar a força e escolheu candidatos a seu molde. Investiu pesado neles. E levou uma surra. Os republicanos conseguiram ainda o controle da Câmara, mas seu resultado foi o pior para este tipo de eleição.
Finalmente apareceu o que se julgava impossível, mas que na realidade era a síntese do que Trump queria: ele prega agora a extinção da Constituição Americana, esta que é um exemplo para o mundo inteiro que segue e acredita no autogoverno. Ela é venerada pelo povo americano, que tem sob sua proteção os seus direitos e serve de apanágio dos direitos humanos para o mundo inteiro.
Precisamos pensar em novos instrumentos com que a democracia possa defender-se desses iconoclastas que buscam regimes da força numa regressão que seria o fim da liberdade.
Os Corações da Democracia
A democracia tem dois corações: o sistema representativo e a liberdade de imprensa.
Afonso Arinos, certa vez, quando conversávamos sobre a Constituição americana e a formação do Senado, lembrou que a questão se colocara desde a abertura dos debates da Convenção de Filadélfia, no dia 29 de maio de 1787, inserida pelo Projeto de Virgínia. Todos concordaram com a ideia de duas casas, à maneira inglesa. A grande dúvida era como conciliar o poder dos grandes e dos pequenos Estados. Na sua primeira Constituição cada Estado tinha poder igual, uma das razões de seu fracasso.
A dúvida de como fazer o equilíbrio se estendia ao modo de eleger deputados e senadores e a seu número. Prevaleceu o voto direto para a Câmara e os senadores escolhidos pelos legislativos estaduais — Madison, o grande cérebro por trás da Convenção, achava que ambas as casas deviam ser eleitas pelo povo e escreveu em código a Jefferson, que estava em Paris, prenunciando um desastre; a 17a Emenda, em 1913, consertaria o erro. Ficou a dúvida quanto à composição.
Então, eles — contava Afonso —, que eram homens profundamente religiosos, disseram: “Vamos rezar para que, de manhã, tenhamos uma solução.”
A saída foi o que se chamou de Grande Compromisso, por atender a Estados grandes e pequenos, com o Senado tendo o mesmo número para cada Estado e a Câmara um número proporcional às respectivas populações.
O outro coração demorou um pouco mais a encontrar sua expressão. Durante a Convenção, Madison foi contra uma declaração de direitos, e sua posição prevaleceu. Mas, durante o grande esforço pela ratificação em que ele, Hamilton e Jay escreveram The Federalist Papers, ele assumiu o compromisso de inscrevê-la. E cumpriu. Diz Joseph J. Ellis, o grande historiador, que, mais que o pai da Constituição, Madison foi o “Father of the Bill of Rights”. Ele tratava Jefferson como seu mentor e a correspondência entre os dois examina profundamente a questão. Assim surgiu, em 1791, a Primeira Emenda, que, em poucas linhas garante as liberdades de religião, opinião, imprensa, reunião e petição.
Ela deu à imprensa a posição de ‘quarto poder’, representando o povo na fiscalização dos outros três – o Executivo, o Legislativo e o judiciário. A sociedade democrática é uma sociedade de conflitos, de grupos de pressão que pretendem influenciar o poder. Jefferson chegou a dizer que se “tivesse de optar entre ter governo ou imprensa”, preferia a imprensa.
A Primeira Emenda cristalizou a inserção do direito de impressão em todo o arcabouço do sistema político do Ocidente. Já os ingleses o haviam afirmado no Freedom of Press Act de 1685. A França o colocara no artigo 11 da Déclaration des Droits de l’homme et du citoyen dois anos antes, em 1789.
Os fundadores do sistema de valores que compõem a democracia representativa incorporaram a inviolabilidade de palavra, de opiniões e votos como prerrogativas inalienáveis dos representantes do povo. São princípios que hoje estão associados ao dia a dia de qualquer democracia que mereça esse nome e que tiveram origem na garantia da velha Magna Carta ao parlamento inglês de tomar suas decisões a salvo de qualquer pressão exercida pelo Rei.
A ideia de Jefferson é que a imprensa assegurava meios capazes de contrabalançar as prerrogativas dos parlamentares, garantindo-lhes uma tribuna livre, sem nenhuma restrição ou censura, para questionar pessoas e governos.
Porém, a imprensa dos tempos de Thomas Jefferson era uma imprensa rudimentar, que imprimia panfletos de uma folha e em tiragens quase simbólicas de duzentos exemplares, se tanto. Hoje, imprensa, rádio, televisão e redes sociais são instrumentos de comunicação indispensáveis e um dos maiores negócios do mundo.
O Negro Cosme
Comemorou-se anteontem o dia da raça negra, e todas as homenagens foram para Zumbi. Eu sempre defendi que elas deviam ser divididas com Negro Cosme, do Maranhão, que fez um dos maiores quilombos do Brasil e, segundo João Francisco Lisboa, fundou a única escola num quilombo. Negro Cosme, como era chamado, tinha um ideário de educação e liberdade, lutou na guerra da Balaiada e contra a escravidão e terminou mártir e enforcado sem direito à anistia, chamado de “infame”.
Na busca da necessária, atrasada e cada vez mais urgente reparação dos crimes e das agressões que os negros sofreram e sofrem no Brasil, sempre destaquei o papel importantíssimo que teve um herói maranhense, Cosme Bento.
Assinava-se Dom Cosme Bento Pedro das Chagas, Tutor e Imperador das Liberdades Bentevis. Era escravo fugido e organizador de quilombo — no da Lagoa Amarela, no Brejo, viviam três mil negros —, pioneiro da ideia de que a educação é instrumento de liberdade. A revolta dos negros — estávamos na década de 1830 — se alastrava já por grande parte do Maranhão. Caxias, Codó, Itapicuru eram atacadas. O governo reagia com violência, destruindo os quilombos, premiando quem prendia ou expulsava os fugitivos.
Em 1838 forma-se a Balaiada, a mais autêntica e popular das revoluções do povo brasileiro, porque não tinha chefe, não tinha organização, não tinha ideário. Era a revolta pela revolta, a revolta espontânea contra a injustiça e a pobreza. Dela se destacaram apenas três nomes: Raimundo Gomes, o Cara Preta, Manuel dos Anjos, o Balaio, e Cosme Bento — todos vítimas de abusos e violências.
Cosme surge já como um grande líder, à frente de milhares de homens. Diz Ribeiro do Amaral: “Evadido das cadeias da capital, tido e havido por feiticeiro, e gozando por isso de grande ascendente entre os de sua raça […] tornando-se o terror das fazendas por onde passava.”
E Domingos Gonçalves de Magalhães: “O negro Cosme […] dava títulos, postos, estabeleceu uma escola de ler e escrever, e aquilombado nas cabeceiras do Rio Preto, comarca do Brejo, na fazenda Lagoa-Amarela, tinha piquetes avançados e mandava partidas roubar e insurrecionar as fazendas circunvizinhas.” Mas Cosme só aparece como parte da Balaiada no combate às tropas do governo em 1840.
O ponto de união da Balaiada era uma mistura de nacionalismo com inconformismo com o governo local, expresso num pequeno jornal O Bentevi, provavelmente de Estevão Rafael de Carvalho. Os rebeldes usavam, em seus manifestos, o nome de Partido Bentevi — que era uma abstração —, sempre se dizendo fiéis ao Imperador.
O último Regente, Pedro de Araújo Lima, enfrentou com dureza a Revolução Farroupilha, a Cabanagem, a Sabinada, a revolta de Manuel Congo — líder negro de Vassouras — e a Balaiada. Para esta promoveu a coronel e enviou Luís Alves de Lima e Silva, chefe de polícia do Rio de Janeiro: seria Presidente da Província e Comandante de Armas do Maranhão. Foi brilhante e violento. Anistiou e enforcou, venceu. Tornou-se Barão de Caxias.
Anota Ribeiro do Amaral: “Por emissários foi informado [o Presidente] que Francisco Ferreira Pedrosa ou Poderosa, chefe de cerca de mil e seiscentos facciosos acoitados na Bela-Água, desejava entregar-se […]. Sabedor disso mandou […] certificar-lhe que o aceitaria com a condição de […] que fosse bater os negros e depois se apresentasse. Assim ele obrou. Os negros em debandada e fugitivos, depois do ataque da Lagoa-Amarela, correram para a Bela-Água, cuidando ali achar apoio, e encontraram a morte e a sujeição. Foi sempre política do Presidente impedir a junção dos rebeldes com os escravos, indispondo-os contra os segundos.”
Era a hora da política da pacificação e da ordem. Desde novembro eram distribuídas cópias dos decretos de anistia. Em Miritiba entregava-se Raimundo Gomes. Declarava-se encerrada a Balaiada, com anistia a milhares de revoltosos.
Mas não a “o infame negro Cosme” (sic). Todas as forças se lançaram contra ele. Em fevereiro de 1841, em Calabouço, no Mearim, rendia-se Cosme Bento das Chagas, “esta fera que só de humano tem a figura” (sic). Entre 19 e 25 de setembro de 1842 foi enforcado em Itapecuru. Seu crime foi não aceitar a escravidão, foi querer a liberdade, foi querer educar uma comunidade negra.