Pe. Claudio Pighin
Tributai ao senhor, ó filhos de Deus
O ser humano experimenta sempre a precariedade no transcorrer da sua jornada. E quantas dúvidas e perguntas se faz constantemente! Nem sempre consegue dar respostas, sobretudo o seu relacionamento com a mãe natureza. Quantas questões! Mas, segundo o autor do salmo 28 das Sagradas Escrituras, temos que dar espaço a Deus na vida. É Ele que se manifesta sempre, até na mãe natureza e seus eventos. Saber conviver com ela, por exemplo, pode experimentar a sua presença. Portanto, até a natureza pode revelar essa presença majestosa de Deus. É necessário ler com muita atenção esse hino, e eu diria meditando-o no profundo do silêncio.
“Tributai ao Senhor, ó filhos de Deus, tributai ao Senhor glória e poder! Rendei-lhe a glória devida ao seu nome; adorai o Senhor com ornamentos sagrados. Ouve-se a voz do Senhor sobre as águas! O Deus de grandeza atroou: o Senhor trovejou sobre as águas imensas! A voz do Senhor faz-se ouvir com poder! A voz do Senhor faz-se ouvir com majestade! Fendem-se os cedros à voz do Senhor, quebra o Senhor os cedros do Líbano. Faz saltar o Líbano como um novilho, e o Sarion como um búfalo novo. A voz do Senhor despede relâmpagos, a voz do Senhor abala o deserto. O Senhor faz tremer o deserto de Cades. A voz do Senhor retorce os carvalhos, desnuda as florestas. E em seu templo todos bradam: glória! O Senhor preside ao dilúvio, o Senhor trona como rei para sempre. O Senhor há de dar fortaleza ao seu povo! O Senhor abençoará o seu povo, dando-lhe a paz!”
Depois dessa leitura bem concentrada, agora vamos fazer uma análise do texto para ter um melhor entendimento. É um salmo bem antigo que apresenta estruturas, constelações e termos do mundo indígena pré-israelítico. Este cenário é representado pela cultura Cananeia do seu deus da tempestade, Baal Hadad, que tinha a divindade suprema. Nos versículos de 3-9 do salmo, fala-se de uma tempestade que aterroriza a harmonia dos lugares tão conhecidos do mediterrâneo ao Líbano, de Jerusalém até o deserto. Essa violência da tempestade espanta os animais e a sua natureza. Porém, o fiel confia em Deus que está acima de tudo isso.
Com Deus, nada se teme, porque Ele reina no cosmo e na história. Perante o caos do mal, do aniquilamento e das tempestades da história, o crente confia cegamente na presença criadora e soberana de Yhwè. Ele é o Juiz justo e por isso derruba os adversários e soberbos que eram considerados quais ‘arvores majestosas e seculares’ que dominavam os outros. Com isso, revela-nos esse salmo como Deus está acima de tudo isso com a sua presença e julgando a história com toda a sua iniquidade. O nosso papa Francisco, nesse sentido, nos ajuda a focalizar melhor tudo isso, para os dias de hoje, dizendo que “às vezes, todos nós somos ameaçados quando devagar-devagar nos afastamos do Senhor, quase de leve, sem muitos clamores, vivendo de maneira muito mundana e bem materialista. Assim não percebemos mais a sua presença porque a trocamos com os ídolos da vida que o próprio ser humano constrói.”
Por exemplo, como se chega a isso? Diz o papa: “Quando se frequenta a Igreja, vive a tua vida cristã como se fosse ‘um hábito cultural’, assim se perde a relação filial com Deus”. Essa atitude, esse comportamento não leva a fazer uma verdadeira adoração a Deus. Assim sendo, Deus deixa sozinho esse tipo de fiel. Deus é tão onipotente que respeita até essas atitudes de vida. Porém, continua o papa Francisco: “É a derrota: um povo que se afasta de Deus acaba assim”.
Acrescenta o Pontífice: “E é uma lição válida para todos. Também hoje. Inclusive nós, aparentemente, somos devotos, temos um santuário, temos muitas coisas…” Mas, perguntou Francisco, “está o teu coração com Deus? Sabes adorar a Deus?. E se crês em Deus, mas num deus um pouco nebuloso, distante, que não entra no teu coração, e se tu não obedeces aos seus mandamentos, então significa que estás diante de uma derrota”.
Por isso, disse Francisco concluindo a homilia, “peçamos ao Senhor que a nossa prece tenha sempre aquela raiz de fé. Peçamos a graça da fé. Com efeito, a fé é um dom que não se aprende nos livros. Uma dádiva do Senhor que deve ser pedida. Concedei-me a fé!Portanto, devemos pedir ao Senhor a graça de rezar com fé, de estarmos certos de que tudo o que lhe pedirmos nos será dado, com a segurança que nos dá a fé. Esta é a nossa vitória: a fé”. Desse jeito, faremos a experiência de um Deus presente que fará justiça, abençoando o seu povo, dando-lhe a paz. A paz que tanto é desejada pelo mundo inteiro.
Os justos se rejubilam pela presença de Deus
Este salmo 67 das Sagradas Escrituras tem origem no começo da poesia hebraica, isto é, no século X antes de Cristo. Ele pode ser considerado o hino ‘A vós, ó Deus, louvamos’ qual o Senhor do universo e da história. Leia atentamente:
“Levanta-se Deus; eis que se dispersam seus inimigos, e fogem diante dele os que o odeiam. Eles se dissipam como a fumaça, como a cera que se derrete ao fogo. Assim perecem os maus diante de Deus. Os justos, porém, exultam e se rejubilam em sua presença, e transbordam de alegria. Cantai à glória de Deus, cantai um cântico ao seu nome, abri caminho para o que em seu carro avança pelo deserto. Senhor é o seu nome, exultai em sua presença. É o pai dos órfãos e o protetor das viúvas, esse Deus que habita num templo santo. Aos abandonados, Deus preparou uma casa, conduz os cativos à liberdade e ao bem-estar; só os rebeldes ficam num deserto ardente. Ó Deus, quando saíeis à frente de vosso povo, quando avançáveis pelo deserto, a terra tremia, os próprios céus rorejavam diante de vós, o monte Sinai estremecia na presença do Deus de Israel. Sobre vossa herança fizestes cair generosa chuva, e restaurastes suas forças fatigadas. Vosso rebanho fixou habitação numa terra que vossa bondade, ó Deus, lhe havia preparado. Apenas o Senhor profere uma palavra, tornam-se numerosas as mulheres que anunciam a boa nova: Fogem, fogem os reis dos exércitos; os habitantes partilham os despojos. Enquanto entre os rebanhos repousáveis, as asas da pomba refulgiam como prata, e de ouro era o brilho de suas penas. Quando o Todo-poderoso dispersava os reis, caía a neve sobre o Salmon. Os montes de Basã são elevados, alcantilados são os montes de Basã. Montes escarpados, por que invejais a montanha que Deus escolheu para morar, para nela estabelecer uma habitação eterna? São milhares e milhares os carros de Deus: do Sinai vem o Senhor ao seu santuário. Subindo nas alturas levastes os cativos; recebestes homens como tributos, aqueles que recusaram habitar com o Senhor Deus. Bendito seja o Senhor todos os dias; Deus, nossa salvação, leva nossos fardos: nosso Deus é um Deus que salva, da morte nos livra o Senhor Deus. Sim, Deus parte a cabeça de seus inimigos, o crânio hirsuto do que persiste em seus pecados. Dissera o Senhor: Ainda que seja de Basã, eu os farei voltar, eu os trarei presos das profundezas do mar, para que banhes no sangue os teus pés, e a língua de teus cães receba dos inimigos seu quinhão. Contemplam a vossa chegada, ó Deus, a entrada do meu Deus, do meu rei, no santuário; Vêm na frente os cantores, atrás os tocadores de cítara; no meio, as jovens tocando tamborins. Bendizei a Deus nas vossas assembleias, bendizei ao Senhor, filhos de Israel! Eis Benjamim, o mais jovem, que vai na frente; depois os príncipes de Judá, com seus esquadrões; os príncipes de Zabulon, os príncipes de Neftali. Mostrai, ó Deus, o vosso poder, esse poder com que atuastes em nosso favor. Pelo vosso templo em Jerusalém, ofereçam-vos presentes os reis! Reprimi a fera dos canaviais, a manada dos touros com os novilhos das nações pagãs. Que eles se prosternem com barras de prata. Dispersai as nações que se comprazem na guerra. Aproximem-se os grandes do Egito, estenda a Etiópia suas mãos para Deus. Reinos da terra, cantai à glória de Deus, cantai um cântico ao Senhor, que é levado pelos céus, pelos céus eternos; eis que ele fala, sua voz é potente: Reconhecei o poder de Deus! Sua majestade se estende sobre Israel, sua potência aparece nas nuvens. De seu santuário, temível é o Deus de Israel; é ele que dá ao seu povo a força e o poder. Bendito seja Deus!”
No começo do hino, há a invocação litúrgica que usa o canto oficial para a marcha da arca (onde se guardava os dez mandamentos e outros objetos sagrados). Ao som das trombetas, os inimigos se dissipam como a fumaça e se derretem como a cera ao fogo. Na primeira parte, exalta-se o êxodo do Egito e a entrada na terra prometida de Canãa, tendo Deus o guia de Israel. É Ele o pai e defensor dos órfãos e das viúvas. A segunda parte tem o domínio da figura Guerreiro Divino que guia os exércitos nas batalhas e garante as vitórias de Israel. E esse guerreiro é descrito com o seu brasão nacional que representa as asas da pomba que ‘refulgiam como prata, e de ouro era o brilho de suas penas’. No entanto, Deus estabelece a sua morada sobre os montes de Sião e do Sinai garantindo, assim, a sua presença constante. A terceira parte descreve a procissão de Israel até o Templo, Sião, para celebrar Deus. Depois da resposta vitoriosa de Deus, ordena-se a procissão com os cantos e aclamações para comemorar o triunfo contra os poderosos inimigos. As potências do mal são derrotadas pelo Senhor Deus. E por isso é dedicada uma aclamação gloriosa ao Deus: Ele é o verdadeiro vitorioso e poderoso. Creio que também nós precisamos ensaiar essa verdade: não apostar na vida daquilo que passa, por quanto atraente possa ser, mas naquilo que não passa: Deus!
Deus nos abençoa
Entro em um pequeno comércio de manhã cedo e a dona logo me interpelou, dizendo-me: “Reverendo, o senhor se lembra quando abençoou o meu comércio no ano passado?” Eu respondi que foi antes do Natal. E ela retrucou: “Muito bem, a partir daí tudo melhorou nos meus negócios; pela primeira vez, depois de vários anos, não estou no ‘vermelho’. Agradeço a Deus pelo meu sucesso! Ah, mais uma coisa padre, eu estou dizendo pra todo mundo. Fui abençoada!” Perante os sucessos da vida, como dessa senhora, se reconhece a presença divina. Como Deus faz parte da nossa vida. E o salmo 66 das Sagradas Escrituras nos ajuda a compreender a manifestação divina no cotidiano do nosso trabalho.
“Tenha Deus piedade de nós e nos abençoe, faça resplandecer sobre nós a luz da sua face, para que se conheçam na terra os seus caminhos e em todas as nações a sua salvação. Que os povos vos louvem, ó Deus, que todos os povos vos glorifiquem. Alegrem-se e exultem as nações, porquanto com equidade regeis os povos e dirigis as nações sobre a terra. Que os povos vos louvem, ó Deus, que todos os povos vos glorifiquem. A terra deu o seu fruto, abençoou-nos o Senhor, nosso Deus. Sim, que Deus nos abençoe, e que o reverenciem até os confins da terra.”
Este salmo é um agradecimento pelo bom êxito da colheita agrícola, expressa no versículo 7: “A terra deu o seu fruto, abençoou-nos o Senhor, nosso Deus.” Perante essa aclamação, o autor quer que isto fique bem conhecido para todos. Todos devem saber como Deus abençoa o percurso histórico do ser humano, favorecendo-o com o alimento para o seu sustento. Não é suficiente o trabalho humano, mas precisa a benevolência divina.
Diante dessa verdade, o ser humano exulta de alegria, porque se sente protegido e seguro. Assim sendo, a criatura humana quer partilhar essa verdade com todo mundo: testemunhar como Deus é protagonista na sua vida. No final, isto demonstrou também aquela senhora do comércio, reconhecendo a intervenção de Deus para reverter a sua situação da negativa pra positiva. De fato, o salmista diz no versículo 8 que todos ‘O reverenciem’, fundamento da profissão de fé em Ywhè (Deus).
É também com essa graça de Deus que se torna sinal de sua presença e do seu amor com a criatura humana. E essa obra divina universalista é descrita em todo o salmo. Nota-se uma intensa reciprocidade de reconhecimento entre o ser humano, cosmo e Deus. Por isso, todos os povos são convidados a se unir ao povo de Israel para cantar ao seu Deus. Deste modo, significa que ninguém é excluído para conhecer o ‘caminho’ de Deus, isto é, o seu projeto de salvação.
Também a essas nações, longe de Deus, é revelado o Reino Dele que julga e governa toda a humanidade e a conduz à paz e a vida sem fim. A bênção de Israel é vista como uma semente jogada no terreno da história, pronta a nascer e crescer, tornando-se uma imensa arvore que abriga todo mundo. Essa nova realidade faz germinar o novo povo onde todos os seres humanos participam. Sendo assim, todos podem esperar que a esperança de um Deus que perdoa e ama demais faz parte da vida deles. E o papa Francisco nos ajuda com essa reflexão tirada da carta apostólica ‘Misericordiaet misera’: “Antes de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor, dizendo-Lhe: «Vós abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as culpas do vosso povo» (Sal 85/84, 2.3). Foi mesmo assim: Deus esmagou as nossas culpas e lançou ao fundo do mar os nossos pecados (cf. Miq 7, 19); já não Se lembra deles, lançou-os para trás de Si (cf. Is 38, 17); como o Oriente está afastado do Ocidente, assim os nossos pecados estão longe d’Ele (cf. Sal 103/102, 12).(…) A misericórdia renova e redime, porque é o encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem. Este inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica transformado em coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de amar, não obstante o seu pecado. Nisto se nota que somos verdadeiramente uma «nova criação» (Gal 6, 15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova; fui «misericordiado» e, consequentemente, feito instrumento da misericórdia. (…) Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no coração para o plasmar e torná-lo capaz de amar. É o tempo da misericórdia para todos e cada um, para que ninguém possa pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força da sua ternura.”
Aclamai a deus por toda a terra
Certa vez em uma procissão religiosa, lembro-me de ter encontrado uma senhora que segurava nas mãos um terço e, emocionada, me falava que Deus era tudo pra ela: “Agradeço porque, sem Ele, não seria mais nada.” E, soluçando, dizia: “Tudo lhe devo! Tudo!” Aquela firmeza e convicção da mulher me confirmaram o quanto nós devemos ser agradecidos ao nosso Deus. A gratidão nos permite estreitar o nosso relacionamento com Deus. E, para isso, leia atentamente o salmo 65 das Sagradas Escrituras:
“Aclamai a Deus, toda a terra, Cantai a glória de seu nome, rendei-lhe glorioso louvor. Dizei a Deus: Vossas obras são estupendas! Tal é o vosso poder que os próprios inimigos vos glorificam. Diante de vós se prosterne toda a terra, e cante em vossa honra a glória de vosso nome. Vinde contemplar as obras de Deus: ele fez maravilhas entre os filhos dos homens. Mudou o mar em terra firme; atravessaram o rio a pé enxuto; eis o motivo de nossa alegria. Domina pelo seu poder para sempre, seus olhos observam as nações pagãs; que os rebeldes não levantem a cabeça. Bendizei, ó povos, ao nosso Deus, publicai seus louvores. Foi ele quem conservou a vida de nossa alma, e não permitiu resvalassem nossos pés. Pois vós nos provastes, ó Deus, acrisolastes-nos como se faz com a prata. Deixastes-nos cair no laço, carga pesada pusestes em nossas costas. Submetestes-nos ao jugo dos homens, passamos pelo fogo e pela água; mas, por fim, nos destes alívio. É, pois, com holocaustos que entrarei em vossa casa, pagarei os votos que fiz para convosco, votos proferidos pelos meus lábios, quando me encontrava na tribulação. Oferecerei em holocausto as mais belas ovelhas, com os mais gordos carneiros; imolarei touros e cabritos. Vinde, ouvi vós todos que temeis ao Senhor. Eu vos narrarei quão grandes coisas Deus fez à minha alma. Meus lábios o invocaram, com minha língua o louvei. Se eu intentasse no coração o mal, não me teria ouvido o Senhor. Mas Deus me ouviu; atendeu a voz da minha súplica. Bendito seja Deus que não rejeitou a minha oração, nem retirou de mim a sua misericórdia.”
Este salmo se contextualiza na celebração litúrgica no Templo, onde o fiel agradece a Deus pela sua obra salvadora. De fato, o louvor é pelas tantas manifestações históricas de Deus na vida do seu povo. A celebração é uma resposta efetiva à presença de Deus, e todo mundo proclama o seu esplendor. Uma presença prodigiosa que se concretiza com a libertação do povo da escravidão do Egito e que vai até a conquista da terra prometida. É esse grande prodígio que define como seu povo Israel, povo escolhido por Deus. E as imagens que o salmista escolhe para representar esta opção de Deus pelo seu povo são: ‘nos provastes, ó Deus, acrisolastes-nos como se faz com a prata’, ‘carga pesada pusestes em nossas costas’, ‘submetestes-nos ao jugo dos homens’.
É uma simbologia que mostra a prova que deve passar o seu povo pelo seu Senhor. Isto significa que nada é fácil, mas que as provações fazem parte dessa caminhada de fé. Perante as superações das provas se elevam hinos de alegria. Nesse caso, um da assembleia, talvez um sacerdote, agradece Deus em nome de todos pelo dom da liberdade. A liberdade que tiveram não é fruto deles, mas do Senhor Deus. Foi a aproximação de Deus que garantiu a libertação da escravidão. Sem Deus nunca teriam se libertado. Por tudo isso eles entram no Templo e oferecem holocaustos para agradecer a Deus pela sua ação poderosa no meio do seu povo. Aquele Deus que libertou o seu povo da escravidão continua presente fazendo prodígios. Um Deus que não abandona o seu povo não obstante os seus pecados.
Recorda-nos o Papa Francisco na Missa de quinta-feira, 6 de abril de 2017:
“Deus é sempre fiel à sua aliança: foi fiel à promessa com Abraão e à salvação prometida em seu Filho, Jesus” (…) “Eu convido vocês a tirarem, hoje, cinco minutos, dez minutos, sentados, sem rádio, sem televisão; sentados, e pensar sobre a própria história: as bênçãos e dificuldades, tudo. As graças e os pecados: tudo. E olhar ali a fidelidade daquele Deus que permaneceu fiel à sua aliança, e se manteve fiel à promessa que fizera a Abraão, permaneceu fiel à salvação que prometera em Seu Filho Jesus. Estou certo de que entre as coisas talvez ruins – porque todos nós temos tantas coisas ruins, na vida – se hoje fizermos isso, vamos descobrir a beleza do amor de Deus, a beleza de Sua misericórdia, a beleza da esperança. E tenho certeza que todos nós estaremos cheios de alegria”. Concluindo, a nossa alegria se torna repleta na medida em que nós experimentamos o quanto Deus está próximo da gente.
A busca de Deus
“Quem não tiver pecado atire a primeira pedra!”, falou Jesus para aqueles que queriam condenar a mulher que pegaram em flagrante pecado de adultério. E diz o evangelista que ninguém teve coragem de fazê-lo. Isto significa que todos tinham pecado. E nós também, depois de mais de 2000 anos daquele evento, reconhecemos que somos pecadores. E é a partir dessa consciência que precisamos do nosso Deus. Precisamos do amor Dele para preencher o vazio que provoca o pecado à nossa humanidade. Por isso, na medida em que reconhecemos a nossa fragilidade, a nossa condição de pecadores, buscaremos cada vez Deus.
De fato, não por acaso os santos se diziam sempre que eram os maiores pecadores, porque ardentemente buscavam, dia e noite Deus. O papa Francisco fala a respeito: “Deus perdoa sempre! Não se cansa de perdoar. (…) ‘Mas, padre, eu não me confesso porque fiz tantas, tantas coisas, que não receberei o perdão…’ Não. Não é verdade. Ele perdoa tudo.” A leitura desse salmo 64, das Sagradas Escrituras, nos ajuda a entender tudo isso.
“A vós, ó Deus, convém o louvor em Sião, é a vós que todos vêm cumprir os seus votos, vós que atendeis as preces. Todo homem acorre a vós, por causa de seus pecados. Oprime-nos o peso de nossas faltas: vós no-las perdoais. Feliz aquele que vós escolheis, e chamais para habitar em vossos átrios. Possamos nós ser saciados dos bens de vossa casa, da santidade de vosso templo. Vós nos atendeis com os estupendos prodígios de vossa justiça, ó Deus, nosso salvador. Vós sois a esperança dos confins da terra, e dos mais longínquos mares. Vós que, com a vossa força, sustentais montanhas, cingido de vosso poder. Vós que aplacais os vagalhões do mar, o bramir de suas vagas e o tumultuar das nações pagãs. À vista de vossos prodígios, temem-vos os habitantes dos confins da terra; saciais de alegria os extremos do oriente e do ocidente. Visitastes a terra e a regastes, cumulando-a de fertilidade. De água encheu-se a divina fonte e fizestes germinar o trigo. Assim, pois, fertilizastes a terra: irrigastes os seus sulcos, nivelastes e as sua glebas; amolecendo-as com as chuvas, abençoastes a sua sementeira. Coroaste o ano com os vossos benefícios; onde passastes ficou a fartura. Umedecidas as pastagens do deserto, revestem-se de alegria as colinas. Os prados são cobertos de rebanhos, e os vales se enchem de trigais. Só há júbilo e cantos de alegria.”
É um hino de louvor pela maravilha da criação. Um canto de festa. Porém, na primeira parte, é um testemunho do perdão dos pecados. E esse perdão é concebido como uma recriação da vida. Vivendo essa realidade renovada pela misericórdia de Deus, permite encarar a realidade de maneira mais viva e colorida. Por que isso? A experiência do perdão e de uma natureza verdejante e cheia de fecundidade permite uma maior proximidade com o Senhor da Vida. O perdão e a viva natureza nos ajudam a viver a beleza da nossa criação. De fato, pela visão bíblica, história humana e natureza são muito unidos, se compenetram.
A versão das Sagradas Escrituras nos mostra que a criação é a moradia do ser humano e o pecado é uma ameaça a essa harmonia do universo, do mundo. Por isso que a conversão e perdão proporcionam integridade e harmonia ao cosmo, à vida. Assim sendo, esse salmo é dividido em duas partes: a parte histórica do ser humano e a parte do universo que está em plena ligação entre eles. Em Sião, Deus é o salvador que tem misericórdia e perdoa. Todo ‘mortal’ invoca o Senhor para libertá-lo do mal. E uma vez que consegue essa remissão do pecado, essa libertação, o ser humano consegue entrar em comunhão com Deus.
Ele participa da intimidade divina. Portanto, à vida espiritual se une aquela da natureza. E com uma imagem bem agrícola apresenta o Senhor que cuida e faz crescer a vida do fiel como o agricultor que semeia nos campos para ter o fruto que alimenta e sustenta a vida. Deus prepara o terreno, molha-o para que possa frutificar. E assim a terra, parecida a uma rainha, celebra o seu rei e Senhor porque está resplandecendo com a sua maravilhosa fertilidade. Uma natureza majestosa e cheia de vida revestindo a humanidade eleva hinos de glória ao seu Senhor. E isto dá alegria a todo o cosmo. Por conseguinte, todas as criaturas humanas, se dirigem ao seu Criador rezando e dançando, louvando e cantando porque a vida reina entre eles. Uma vida coroada por uma perfeita harmonia entre o ser humano e a própria natureza confirma a ação salvadora da presença de Deus.
Claudio Pighin, sacerdote e jornalista.
E-mail: clpighin@claudio-pighin.net
As calúnias ameaçam a humanidade
Dias atrás, eu encontrei um senhor que estava catando comida no lixo da calçada de um luxuoso condomínio. Ele aparentava uma idade avançada, estava de barba cumprida e toda desarrumada. Vestia roupa bem humilde e rasgada. O rosto dele marcado pelas rugas emanava uma tristeza tão lacerante que não pude ir adiante e quis me entreter com ele. Começamos a falar perguntando o nome um do outro. Discorremos sobre a vida e a dureza dela. De repente ele me perguntou: “Sabe por que me encontro desse jeito?” Eu respondi que não tinha a mínima ideia a respeito. Ele, então, continuou: “Pela calúnia! Isso mesmo, foi pela calúnia!”. Então, eu insisti: “Como isso?” Ele, prosseguindo, me contou de maneira bem resumida, com as lágrimas descendo pelo seu rosto engelhado, que armaram uma tremenda cilada e acabaram com ele tanto profissionalmente quanto humanamente. E, sobretudo, me lembro essas palavras que ressoaram na minha mente como um eco sem fim: “Eis aqui um cara com um nível escolar superior, mas que não possui mais nada, se não mendigando…” Tudo isso me deixou inquieto e questionando-me: Será que se pode chegar tanto assim? O que é capaz o ser humano? Destruir pessoas também pelas mentiras, pelas falsidades, que por traz de tudo isso não tem nada mais, senão um puro egoísmo! E quantos como esse senhor vivem essa triste e vergonhosa situação. Perante tudo isso não me dei paz e busquei nas Sagradas Escrituras uma resposta. Encontrei o Salmo 63 que fala exatamente sobre isso:
“Ouvi, Senhor, minha lastimosa voz. Do terror do inimigo protegei a minha vida, preservai-me da conspiração dos maus, livrai-me da multidão dos malfeitores. Eles aguçam suas línguas como espadas, desferem como flechas palavras envenenadas, para atirarem, do esconderijo, sobre o inocente, a fim de feri-lo de improviso, não temendo nada. Obstinam-se em seus maus desígnios, concertam, às ocultas, como armar seus laços, dizendo: Quem é que nos verá? Planejam crimes e ocultam os seus planos; insondáveis são o espírito e o coração de cada um deles. Mas Deus os atinge com as suas setas, eles são feridos de improviso. Sua própria língua lhes preparou a ruína. Meneiam a cabeça os que os vêem. Tomados de temor, proclamam ser obra de Deus, e reconhecem o que ele fez. Alegra-se o justo no Senhor e nele confia. E triunfam todos os retos de coração.”
Essa oração é uma resposta a uma vida atravessada pela calúnia e a todas as suas consequências. O sofrimento que ela causa. E esse autor do salmo, caluniado e perseguido, busca uma resposta no Templo, onde a justiça de Deus está acima daquela humana. Assim sendo, o fiel aqui se torna o representante de todos os fieis de Deus perseguidos. Os adversários são apresentados como um bando de pervertidos e desonestos que unidos armam ciladas para prender e prejudicar o justo. Uma conspiração bem maquinada para tirarem proveito. São brutais que usam a palavra como uma espada de dois gumes ou uma flecha envenenada. O salmo nos propõe um contraste bem evidente, de um lado as calúnias representadas pelas flechas perigosas e do outro a grande defesa de Deus com as suas flechas contundentes e certeiras.
Em um primeiro momento, estão aqui os inimigos do fiel numa cena bem rumorosa de guerra, símbolo do mal que existe no mundo que estão prontos para eliminar o inocente, o justo. O combate é caracterizado pela língua, e as palavras são as flechas. As palavras enganosas, pervertidas são parecidas às flechas envenenadas. As ciladas dos que caluniam são escondidas, não transparentes e perigosas e sempre prontas para golpear os justos. No entanto, o fiel ameaçado não tem outra confiança se não em Deus: é Ele o único seu defensor. Por isso se refugia na oração. É essa a sua grande arma de defesa. Tem a certeza que Deus toma a iniciativa em seu favor e, portanto, por quanto possam ser venenosas as ações dos caluniadores não poderão nunca prevalecer à intervenção de Deus em seu favor.
À justiça divina ninguém pode se opor, e por tudo isso o fiel louva o seu Senhor. O papa Francisco falou a respeito: “Nunca falar mal de outras pessoas. A doença das bisbilhotices, das murmurações e das críticas. Desta doença, já falei muitas vezes, mas nunca é demais. Trata-se de uma doença grave, que começa de forma simples, talvez por duas bisbilhotices apenas, e acaba por se apoderar da pessoa fazendo dela uma «semeadora de cizânia» (como satanás) e, em muitos casos, «homicida a sangue frio» da fama dos próprios colegas e confrades. É a doença das pessoas velhacas que, não tendo a coragem de dizer diretamente, falam pelas costas. São Paulo adverte-nos: «Fazei tudo sem murmurações nem discussões, para serdes irrepreensíveis e íntegros» (Flp 2, 14-15). Irmãos, livremo-nos do terrorismo das bisbilhotices!”
Ó Deus, com ardor vos procuro!
A realidade do nosso tempo parece, segundo a maioria do povo, tão deprimente e triste que não se enxerga uma luz no fim do túnel. A corrupção atingiu todo mundo: as instituições e poderes que garantem a democracia do país. Parece que com toda essa enxurrada de denúncias e processos poucos se salvam. É comum ouvir frases do tipos: ‘Em quem acreditar?’ ou ‘Desse jeito o que vai ser do nosso país?’, ‘temos ainda futuro?’. Perante os grandes problemas, catástrofes sociais e humanas, o ser humano tem muita dificuldade para se encontrar e ter serenidade para enfrentar a vida. Aliás, sente-se perdido. E as reações das pessoas são as mais diferentes possíveis. Porém, tem uma reação que gostaria de destacar nesse âmbito: a de quem acredita em Deus. O fiel se diferencia nesse sentido por estar acima de qualquer desafio. Por quê? Porque, buscando incessantemente Deus, não se sente abandonado. Deus é um seu aliado. O salmo 62 das Sagradas Escrituras nos ajuda a compreender tudo isso. Leia atentamente:
“Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está sedenta de vós, e minha carne por vós anela como a terra árida e sequiosa, sem água. Quero vos contemplar no santuário, para ver vosso poder e vossa glória. Porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida, meus lábios entoarão vossos louvores. Assim vos bendirei em toda a minha vida, com minhas mãos erguidas vosso nome adorarei. Minha alma saciada como de fino manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Quando, no leito, me vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós. Porque vós sois o meu apoio, exulto de alegria, à sombra de vossas asas. Minha alma está unida a vós, sustenta-me a vossa destra. Quanto aos que me procuram perder, cairão nas profundezas dos abismos, serão passados a fio de espada, e se tornarão pasto dos chacais. O rei, porém, se alegrará em Deus. Será glorificado todo o que jurar pelo seu nome, enquanto aos mendazes lhes será tapada a boca.”
Esse salmo é um amor místico do fiel ao seu Deus. Revela um abandono total ao Senhor tão intenso, envolvendo a vida toda dele. É um fiel que se projeta sem desconfiança para o seu Deus. Ele reza tão intensamente, tão natural, como se fosse apagar a sua sede na fonte refrescante dos dias quentes de verão. Assim sendo, rezar se torna uma necessidade determinante do ser humano para satisfazer a sua própria natureza, a sua vida. O fiel no Santuario do Senhor dirige várias invocações simbolizadas em imagens cotidianas que são: a fome, a sede e o juízo divino. A respeito da sede, o que quis dizer o autor desse salmo?
A sede, em primeiro lugar, é uma necessidade fisiológica natural que faz parte da composição do corpo humano. Sem agua não poderíamos viver. Aliás, a mesma superfície terrestre, sem água, se torna árida e incapaz de produzir frutos. E a partir destas constatações os crentes precisam de Deus para se manter vivos, dar um sentido a própria vida para que seja vigorosa e robusta: “Minha alma está sedenta de vós”. E agora a questão da fome. Quem encontra Deus fica saciado: “Minha alma saciada como de fino manjar.”
O autor aqui faz alusão ao banquete sagrado, característico do ‘sacrifício de comunhão’. Todos esses versículos se concentram em uma reflexão noturna, cheios de maravilha por estar tão próximo de Deus. Justamente as ‘asas’ de Deus são o sinal da ‘arca’, isto é, a sede da presença santa da divindade. E enfim a questão do juízo, expressado nos últimos versículos do salmo, quer manifestar o poder de Deus. Essas palavras são duras e sem piedade para os inimigos, que ‘cairão nas profundezas dos abismos’, e ‘serão passados a fio de espada, e se tornarão pasto dos chacais’.
Para o fiel desse salmo é essa a justiça divina. Um salmo de grande contemplação de Deus, que pretende além de mostrar amor infinito para Deus quer também a grande luta contra o mal. Um desejo inato do ser humano. E o papa Francisco na missa celebrada em Santa Marta, no dia 22/11/2016, fez a seguinte meditação: “Quando era criança”, quando ia ao catecismo, eram ensinadas quatro coisas: morte, juízo, inferno ou glória. Alguém poderia dizer: «Padre, isto assusta-nos». Mas, respondeu: «É a verdade. Pois se não cuidares do coração, para que o Senhor esteja contigo, e viveres sempre longe do Senhor, talvez haja o perigo de continuar assim, afastado do Senhor por toda a eternidade. Isto é muito triste!”. E “Hoje nos fará bem pensar nisto: como será o meu fim? Como será, quando eu estiver diante do Senhor?”. Por isso, o papa continua: “Sê fiel até à morte — oráculo do Senhor — e dar-te-ei a coroa da vida”. “Eis a solução para os nossos receios: A fidelidade ao Senhor: Ele não desilude. E se cada um de nós for fiel ao Senhor, quando chegar a morte diremos como Francisco: ‘Vem, irmã morte’. Ela não nos assusta”.
Só em Deus repousa minha alma!
“Padre, estou cansado. Não tenho mais vontade de nada. Não sei o que fazer, não dá mais certo nada. Tenho todos contra mim. O que fazer? Sinto-me esgotado! Perdi o prazer da vida.” O desabafo é de um cidadão que no seu maior desespero me confiou a sua situação. Igual a ele, há muitos outros irmãos que passam pela mesma condição. Essa nossa realidade é feita de tantas alegrais, também de tantas tristezas. Isto significa que, por quanto nos esforçamos viver bem, nem sempre conseguimos esse objetivo. Parece que a vida foge do nosso controle. Aqui que está uma resposta de vida para essas frustrações dela: é em Deus que supero tudo isso! O que quer dizer? Posso enfrentar muitas dificuldades e desespero, mas com Deus se enfrentam diferentemente. Por isso, convido você a ler esse salmo 61 das Sagradas Escrituras para poder entender melhor isso.
“Só em Deus repousa minha alma, só dele me vem a salvação. Só ele é meu rochedo, minha salvação; minha fortaleza: jamais vacilarei. Até quando, juntos, atacareis o próximo para derribá-lo como a uma parede já inclinada, como a um muro que se fendeu? Sim, de meu excelso lugar pretendem derrubar-me; eles se comprazem na mentira. Enquanto me bendizem com os lábios, amaldiçoam-me no coração. Só em Deus repousa a minha alma, é dele que me vem o que eu espero. Só ele é meu rochedo e minha salvação; minha fortaleza: jamais vacilarei. Só em Deus encontrarei glória e salvação. Ele é meu rochedo protetor, meu refúgio está nele. Ó povo, confia nele de uma vez por todas; expandi, em sua presença, os vossos corações. Nosso refúgio está em Deus. Os homens não passam de um sopro, e de uma mentira os filhos dos homens. Eles sobem na concha da balança, pois todos juntos são mais leves que o vento. Não confieis na violência, nem espereis vãmente no roubo; crescendo vossas riquezas, não prendais nelas os vossos corações. Numa só palavra de Deus, compreendi duas coisas: a Deus pertence o poder, ao Senhor pertence a bondade. Pois vós dais a cada um segundo suas obras.”
O hino contrapõe dois modelos de confiança. De um lado a confiança na riqueza e na violência e de outro lado a confiança em Deus. A idolatria da violência e da riqueza rende o seu fiel vazio e sem futuro. Naturalmente, esse fiel pratica a mentira, aliás, ele se compraz com isso. Isto faz parte da estratégia para derrubar o justo. Uma pessoa assim, segundo as Sagradas escrituras, é já morta. Porém, em oposição a esse tipo de confiança se coloca a confiança em Deus, mostrada com uma rica simbologia militar, que é a fortaleza e o rochedo que garantem o repouso da alma.
Portanto, a centralidade do salmo roda ao redor dessa opção entre as duas confianças, duais morais completamente diferentes. Veja como o autor desse hino descreve essa opção: a confiança em Deus é revelada com imagens de solidez e segurança, quais ‘refúgio e defesa’. No entanto, a confiança à riqueza é expressa com os seguintes termos: ‘violência’, isto é, estratégias venenosas para desfrutar e depauperar o próximo. Além do mais, o ‘roubo’ e a ‘extorsão’ o autor desse salmo os classificas como ‘ilusão’ e ‘loucura’, porque leva a excessos sem limites.
Assim sendo, a riqueza que o ser humano busca se torna uma cilada que o leva cumprir atrocidades, coisas não boas. Essa confiança exclusiva na materialidade cega o ser humano e não lhe permite ter uma visão real da realidade. Esquece-se de ser um mortal e que essa idolatria à materialidade é igual a um sopro. A idolatria aos bens da terra são bens que passam e não garantem nada para o futuro. É verdade que essa materialidade faz parte da humanidade, mas precisa saber discerni-la para não se deixar mandar por ela. Essa materialidade por quanto possa ser importante, seu peso é quase nada sobre a balança do ser.
Assim sendo, é realmente absurdo ver que uma humanidade possa apostar sobre isso, que representa uma escada de valores ilusórios, falsos e frágeis. Portanto, fixar a concentração exclusiva da nossa vida sobre a riqueza, o poder e o bem-estar nos leva a uma vida inconsistente. Nesse sentido, que o autor do salmo insiste a importância da opção por Deus, que é eterno e sem fim. Somente Ele que pode ajudar o fiel a evitar a morte, o ‘nada’ da vida.
Sempre o papa Francisco nos fala a respeito, através do encontro com os jovens católicos que ocorreu em sua visita à Coreia do Sul: “Que vocês, jovens, possam combater o fascínio de um materialismo que sufoca os valores culturais e espirituais autênticos e se afastem do espírito de competição desenfreada que gera egoísmo e conflito”. Continuou Francisco no sermão: “Que vocês também rejeitem os modelos econômicos desumanos que criam novas formas de pobreza e marginaliza os trabalhadores.”
Com Deus não existe solidão
Umas das coisas que estou constatando, cotidianamente, é a manifestação de solidão das pessoas. Nunca tinha entendido o porquê de tanto barulho nas casas, desde manhã cedo, e nos lugares públicos. Alias, é tão intenso o som que não consigo nem escutar direito quando falam. Parece-me que todo esse forte barulho queira substituir algo que a pessoa não tem. Precisa de tudo isso para dar sentido à vida. Eu tenho dificuldade de compreender. Eu me alegro, sim, por estar junto com os outros, mas não consigo entrar nessa balbúrdia. Acho que a sociedade, ou como diz o evangelista João, o mundo falta-lhe uma verdadeira experiência de Deus. Buscando Deus, a pessoa não pode estar só e, portanto, não vai em busca de coisas efêmeras. É invocando Deus que damos maior sentido à vida. O salmo 60 das Sagradas Escrituras nos ajuda nesse sentido:
“Ouvi, ó Deus, o meu clamor, atendei à minha oração. Dos confins da terra clamo a vós, quando me desfalece o coração. Haveis de me elevar sobre um rochedo e me dar descanso, porque vós sois o meu refúgio, uma torre forte contra o inimigo. Habite eu sempre em vosso tabernáculo, e me abrigue à sombra de vossas asas! Pois vós, ó meu Deus, ouvistes os meus votos, destes-me a recompensa dos que temem vosso nome. Acrescentai dias aos dias do rei, que seus anos atinjam muitas gerações. Reine ele na presença de Deus eternamente, dai-lhe por salvaguarda vossa graça e fidelidade. Assim, cantarei sempre o vosso nome e cumprirei todos os dias os meus votos.”
Neste salmo, o fiel, que é um representante da assembleia litúrgica, reza para o rei em guerra possa triunfar e ter longa vida. De fato, a oração nos versículos 4 e 5 assim diz em síntese: “Habite eu sempre em vosso tabernáculo”, isto é, no Templo. O Templo que representa tudo na vida do fiel e, por isso, evoca com nomes diferentes e imagens até militares, enquanto é um refúgio, uma defesa. Todas essas linguagens são tentativas de manifestar a total confiança em Deus protagonista na vida daquele que acredita. Perante as provas da vida, as inseguranças, a instabilidade humana, as crueldades cotidianas, o mal que toma conta o autor desse salmo contrapõe um rochedo que lhe dá descanso. E, assim, que pode discernir a rocha da sua defesa que é o santo Templo.
É típico o uso nas Sagradas Escrituras da simbologia da ‘pedra’, que quer indicar a firmeza e estabilidade do Templo de Jerusalém, referência máxima da manifestação divina. Se você lembra, também Jesus evocava este tipo de linguagem. Por exemplo, quando chamou Cefa de Pedro, ou nas cartas que define ‘as pedras vivas’. A partir dessa experiência que o fiel encontra força e segurança sem fim. Tudo isso descrevendo como se estivesse numa torre forte e que os inimigos não têm como se aproximar ou assaltar. Assim sendo, as imagens militares se tornam ‘intimas’ e ‘pessoais’, bem representadas por essas palavras: “Habite eu sempre em vosso tabernáculo”.
Além do mais, “me abrigue à sombra de vossas asas”, isto é, a proteção do Senhor lhe garante uma demora definitiva onde se torna uma ‘tenda do encontro’ entre Deus e o ser humano. Naturalmente, isto dá muita alegria e, por isso, cantará hinos ao seu Senhor. Conclusão, essa experiência do encontro com o Senhor revela que o ser humano não é só, porque a graça e a fidelidade estão próximas e o protegem.
A respeito disso, o papa Francisco falou na ‘audiência geral’ de 26 de abril o seguinte: “Até quando perdurará a atenção de Deus pelo homem? Até quando o Senhor Jesus, que caminha conosco, até quando cuidará de nós? A resposta do Evangelho não deixa margem a dúvidas: até ao fim do mundo! Passarão os céus, passará a terra, serão anuladas as esperanças humanas, mas a Palavra de Deus é maior do que tudo e não passará. E Ele será o Deus conosco, o Deus Jesus que caminha ao nosso lado. Não haverá um dia da nossa vida em que cessaremos de ser uma solicitude para o Coração de Deus. Contudo, alguém poderia dizer: «Mas o que dizes?». Digo isto: não haverá um dia da nossa vida em que deixaremos de ser uma solicitude para o Coração de Deus. Ele preocupa-se conosco, caminha ao nosso lado. E por que faz isto? Simplesmente porque nos ama. Entendestes isto? Ele ama-nos! E sem dúvida Deus proverá a todas as nossas necessidades, não nos abandonará no tempo da prova e da escuridão. É preciso que esta certeza se aninhe no nosso espírito, para nunca mais se apagar. Há quem lhe dê o nome de «Providência». Ou seja, a proximidade de Deus, o amor de Deus, o caminhar de Deus ao nosso lado chama-se também «Providência de Deus»: Ele provê à nossa vida.”
Com o auxílio de Deus, faremos proezas
Nossa história é sempre questionadora. Por isso, tem uma infinita gama de respostas. E uma dessas grandes questões é, com certeza, Deus. Nesses dias, um senhor de idade já avançada me disse que com o nome do Senhor se argumenta tudo e se pretende tudo. Prontamente, eu lhe respondi: como posso não falar e acreditar em Deus para quem eu dediquei toda a minha vida? É evidente que não se pode nem pensar em manipular Deus, porque, além do mais, Ele é muito poderoso e não o permite. Se poderá falar Dele, podemos encher a boca do nome Dele, mas isto não quer dizer nada. Deus está acima das nossas maquinações e manipulações. Porque Ele ama infinitamente. Ele é, sim, presente, mas não do nosso jeito. Quem nos ajuda a compreender melhor isso é o salmo 59 do Antigo Testamento da Bíblia.
“A lei é como o lírio. Poema didático de Davi, quando guerreou contra os sírios da Mesopotâmia e os sírios de Soba, e quando Joab, voltando, derrotou doze mil edomitas no vale do Sal. Ó Deus, vós nos rejeitastes, rompestes nossas fileiras, estais irado; restabelecei-nos. Fizestes nossa terra tremer e a fendestes; reparai suas brechas, pois ela vacila. Impusestes duras provas ao vosso povo, fizestes-nos sorver um vinho atordoante. Mas aos que vos temem destes um estandarte, a fim de que das flechas escapassem. Para que vossos amigos fiquem livres, ajudai-nos com vossa destra, ouvi-nos. Deus falou no seu santuário: Triunfarei, repartindo Siquém; medirei com o cordel o vale de Sucot. Minha é a terra de Galaad, minha a de Manassés; Efraim é o elmo de minha cabeça; Judá, o meu cetro; Moab é a bacia em que me lavo. Sobre Edom atirarei minhas sandálias, cantarei vitória sobre a Filistéia. Quem me conduzirá à cidade fortificada? Quem me levará até Edom? Quem, senão vós, ó Deus, que nos repelistes e já não saís à frente de nossas forças? Dai-nos auxílio contra o inimigo, porque é vão qualquer socorro humano. Com o auxílio de Deus, faremos proezas. Ele abaterá nossos inimigos.”
Este hino é uma lamentação nacional de Israel num contexto de emergência. E essa lamentação se desdobra em dois momentos significativos. A primeira parte aparece Deus como se fosse um inimigo do seu povo: “Ó Deus, vós nos rejeitastes”. A desintegração do país, da nação, é porque Deus está irado, segundo o autor do salmo. Deus assim se tornou um terrível inimigo que desenfreia toda a sua força que abala tudo. Parece que Deus combate o seu próprio povo, e lhe faça pagar tudo sem piedade alguma. Porém, o autor depois de ter iniciado de maneira bem catastrófica e furiosa torna-se bem esperançoso, marcando assim uma presença amorosa de Deus: “Deus falou no seu santuário”.
Assim, se em um primeiro momento parecia que Deus tinha-se tornado inimigo, agora revela como Deus auxilia o seu povo. Essa esperança em Deus demonstra como Deus é o único e último juiz da história. Tudo isso é bem marcado através do controle de Deus sobre toda a Palestina e suas etnias. Revigorando-as. Desse jeito, o autor insiste que Deus é o verdadeiro Senhor da história e Israel pode confiar Nele, embora que às vezes não consiga entender. Na segunda parte de lamentação, porém, cheia de esperança, alimenta a possibilidade da salvação através do exercito de Israel que conquiste Edom.
Assim sendo, pela intercessão, Deus torna-se de novo o escudo do seu povo, ajudando-o a fazer grandes prodígios: “Com o auxílio de Deus, faremos proezas. Ele abaterá nossos inimigos.” A encarnação da Palavra de Deus compreende também essas formas de rezar, embora que seja grosseira e nacionalista. Todo o salmo mostra também como uma celebração do Deus da história, a quem se confia nos momentos tristes e trágicos, não seja indiferente às situações humanas. Pelo contrário, Ele leva em frente o seu projeto de salvação.
Veja o que nos diz o papa Francisco: “Caros irmãos e irmãs, nunca coloquemos condições a Deus, mas, ao contrário, deixemos que a esperança vença os nossos receios. Confiar em Deus quer dizer entrar nos seus desígnios sem nada pretender, aceitando inclusive que a sua salvação e o seu auxílio cheguem a nós de modo diverso das nossas expectativas. Pedimos ao Senhor vida, saúde, afetos, felicidade; e é justo fazê-lo, mas com a consciência de que até da morte Deus sabe haurir vida, que é possível experimentar a paz inclusive na doença e que até na solidão pode haver serenidade, e bem-aventurança no pranto. Não somos nós que podemos ensinar a Deus o que Ele deve fazer, aquilo de que temos necessidade. Ele sabe-o melhor do que nós e devemos ter confiança porque os seus caminhos e os seus pensamentos são diferentes dos nossos (Audiência Geral de 25/01/2017).