Pe. Claudio Pighin

Não de se deixem iludir

As vezes, as pessoas são tão atraídas pelos bens materiais que não conseguem enxergar mais nada além disso. Então, a pessoa constrói toda a sua trajetória de vida pensando e agindo exclusivamente concentrado nos seus bens materiais. No dinheiro! A vida para alguns é impulsionada pelo poder de ‘ter’ cada vez mais. A sua maneira de raciocinar e enxergar a realidade é somente isso. A sua felicidade é só isso. Conforme a conta que possui no banco é medida a sua alegria. A riqueza manda no ser humano. A inteligência é escrava dos bens materiais. Mas isto não acontece somente com as pessoas em si, mas também com os governos. Parece-me que os governos sejam mais servidores do dinheiro que dos povos. O salmo 48 das Sagradas Escrituras nos ajuda a discernir os verdadeiros valores da vida que nos permitem acessar à verdadeira alegria. E, assim, ele nos convida a discernir:

“Escutai, povos todos; atendei, todos vós que habitais a terra, humildes e poderosos, tanto ricos como pobres.

Dirão os meus lábios palavras de sabedoria, e o meu coração meditará pensamentos profundos.

Ouvirei, atento, as sentenças inspiradas por Deus; depois, ao som da lira, explicarei meu oráculo.

Por que ter medo nos dias de infortúnio, quando me cerca a malícia dos meus inimigos?

Eles confiam em seus bens, e se vangloriam das grandes riquezas.

Mas nenhum homem a si mesmo pode salvar-se, nem pagar a Deus o seu resgate.

Caríssimo é o preço da sua alma, jamais conseguirá prolongar indefinidamente a vida e escapar da morte,porque ele verá morrer o sábio, assim como o néscio e o insensato, deixando a outrem os seus bens.

O túmulo será sua eterna morada, sua perpétua habitação, ainda que tenha dado a regiões inteiras o seu nome, pois não permanecerá o homem que vive na opulência: ele é semelhante ao gado que se abate.

Este é o destino dos que estultamente em si confiam, tal é o fim dos que só vivem em delícias.

Como um rebanho serão postos no lugar dos mortos; a morte é seu pastor e os justos dominarão sobre eles. Depressa desaparecerão suas figuras, a região dos mortos será sua morada.

Deus, porém, livrará minha alma da habitação dos mortos, tomando-me consigo.

Não temas quando alguém se torna rico, quando aumenta o luxo de sua casa.

Em morrendo, nada levará consigo, nem sua fortuna descerá com ele aos infernos.

Ainda que em vida a si se felicitasse: Hão de te aplaudir pelos bens que granjeaste.

Ele irá para a companhia de seus pais, que nunca mais verão a luz.

O homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate.”

O salmo nos mostra uma meditação sábia dos verdadeiros valores da vida. A vida está na nossa frente, mas precisa discerni-la, fazer opções, escolhas para compreendê-la e vivê-la. Aquela da riqueza de fato é uma ilusão, porque não ajuda a viver o sentido da vida e o seu destino final. É como um animal que se deixa levar pelos instintos e não consegue mais enxergar nada. É um hino sobre a riqueza e a morte introduzido por um solene prelúdio sapiencial. Na primeira parte é a descrição do rico que busca comprar a morte, tentando corrompê-la com a sua grande riqueza. Ele, o rico, não tem poder de resgatar, comprar a vida: “pagar a Deus o seu resgate … jamais conseguirá prolongar indefinidamente a vida e escapar da morte.”

O tolo, cego pela sua riqueza, é demais convencido de pagar um ‘seguro extraordinário de vida’ que lhe garante combater a morte, afasta-la da sua vida. Mas, por qualquer quantia, até a mais infinita possível, não pode evitar essa realidade que todo mundo tem que enfrentar. Lembra-se de quando Jesus falou “Não há nada que poderá pagar para ter de volta essa vida” (Mt 16,26). Com isso, confirma-se que o ser humano não é dono de nada. Infelizmente, assistimos essa idolatria econômica que toma conta da nossa sociedade como um todo, criando um profundo vazio humanitário. Em seguida, o salmo insiste nessa morte que ninguém pode se opor; os ricos são representados como um rebanho que tem por pastor a morte, e os ínferos hebraicos, Sheol, os acolherá.

Os justos, no entanto, pobres humilhados da história, chegam de mãos vazias à fronteiras da morte. Eles não têm nada para dar como ‘resgate’ pela morte deles. Mas aqui está a grande verdade: Deus mesmo paga o resgate da morte porque é Ele o único que tem poder sobre ela. Assim sendo, não se preocupe se vê alguém enriquecer, ter mais que você porque nada pode fazer com essa sua riqueza; ela chega a um fim e não é garantia de domínio. Importante é enriquecer e abastecer no ‘banco de Deus’.

Louvemos o nosso Deus

Quem confia em Deus e experimenta sua presença, louva-O com todo o coração e inteligência. Viver a confiança em Deus enche de esperança e alegria o fiel. Quantos testemunhos eu já conheci ao longo dos meus anos de sacerdote! Teve uma pessoa, inclusive, que me disse: “Eu perdi tudo, padre, eu sou um derrotado pela sociedade, mas a minha vida não perdeu sentido porque eu confio em Deus. Nele está a minha vida, eu lhe pertenço. Por isso, me sinto forte e creio em um futuro diferente que estou passando! Estou cheio de esperança.” Isto me mostra que Deus faz parte, sim, da nossa vida. E com isso nos leva a louva-Lo, incessantemente, a cantar o seu louvor. A reconhecer a sua grandeza que supera toda a nossa pequenez, e limitações. Com esses olhos, a nossa vida se enche de novos horizontes que exaltam a nossa humanidade. Lendo o salmo 47 das Sagradas Escrituras se compreende perfeitamente porque o nosso Deus é digno de louvor. Preste bem atenção ao que ele nos diz:

“Grande é o Senhor e digno de todo louvor, na cidade de nosso Deus. O seu monte santo,colina magnífica, é uma alegria para toda a terra. O lado norte do Monte Sião é a cidade do grande rei.
Deus se mostrou em seus palácios um baluarte seguro.

Eis que se unem os reis para atacar juntamente.

Apenas a veem, atônitos de medo e estupor, fogem.

Aí o terror se apodera deles, uma angústia como a de mulher em parto, ou como quando o vento do oriente despedaça as naus de Társis.

Como nos contaram, assim o vimos na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso Deus; Deus a sustenta eternamente! Ó Deus, relembremos a vossa misericórdia no interior de vosso templo.

Como o vosso nome, ó Deus, assim vosso louvor chega até os confins do mundo. Vossa mão direita está cheia de justiça.

Que o Monte Sião se alegre. Que as cidades de Judá exultem, à vista de vossos juízos! Relanceai o olhar sobre Sião, dai-lhe a volta, contai suas torres, considerai suas fortificações, examinai seus palácios para narrardes às gerações futuras: como Deus é grande, nosso Deus dos séculos eternos; é ele o nosso guia.”

O salmo descreve que aos pés dos muros de Sião se encontra um baluarte seguro onde os inimigos são derrotados, qualquer adversidade é vencida. É dentre esses muros a segurança do seu povo. Nós poderíamos dizer hoje: é estar com Deus que não tememos os inimigos e seremos sempre invencíveis. É nisso que consiste a alegria das pessoas: viver essa segurança de Deus e que nenhuma potência do mundo pode oferecer. E este salmo se torna quase um canto litúrgico eterno e sempre presente na vida. Podemos dividir esse salmo em duas partes.

A primeira parte é uma celebração da Sião vitoriosa: “cidade do nosso Deus”. Manifesta o salmo o esplendor da cidade santa, divina e humana, visível e misteriosa, presente na história e, ao mesmo tempo, com projeções além da história. Mas aquilo que o autor aqui quer realçar é o que acontece fora da cidade santa. As tropas do inimigo estão assediando-a. Porém, os reis que aí estão comandando são logo rejeitados e colocados em fuga, e diz o salmista: “Fogem, aí o terror se apodera deles, uma angústia como a de mulher em parto”.

Os poderosos são reduzidos às fragilidades humanas! Uma imagem, igual aquela das naus de Tarsis, que perante Deus nenhuma força humana, por quanto poderosa possa ser, será vitoriosa. Uma visão de grande otimismo pelo triunfo de Deus contra as potências do mal. Na segunda parte, o salmista se concentra no interior da cidade de Deus. Aqui focaliza o louvor a Deus no Templo. É um louvor pela misericórdia de Deus pelo seu povo por tudo o que faz para protegê-lo. Logo depois, é descrito uma procissão fora do Templo ao redor do muro onde se confere as torres, sinal da proteção de Deus.

Contemplar essa muralha é contemplar a solidez da cidade de Deus, Sião.Todas essas realidades terrenas querem demonstrar o quanto o amor de Deus está presente e protege o ser humano. Também nós podemos fazer essa experiência, contemplando a ação de Deus na nossa vida através dos eventos históricos. Portanto, através de manifestações bem concretas se protagoniza o nosso Deus. Sião é o coração de uma série de ações salvadoras de Deus professadas no Credo de Israel e na liturgia. E o salmo termina clamando por Deus o seu guia, o seu pastor. O Deus que liberta o seu povo e garante que sua peregrinação o levará pelos prados infinitos de paz e de vida. É essa experiência de fé que nos leva a fazer da nossa vida uma vida de esperança eterna, porque o nosso Deus está conosco.

Deus é o senhor de toda a humanidade

O nosso Deus não é exclusividade de ninguém, mas é para todo mundo. Nesse sentido, todas as pessoas, todos os povos, todas as raças pertencem a Deus e, assim, todos podem fazer a experiência Dele: um Deus conosco! Há pessoas que se acham excluídas, que não têm essa capacidade ou se reputam indignas. E há até pessoas que dizem que isto não existe, que é uma invenção humana. Quem nos ajuda a responder a todas essas realidades é sempre o livro da Sagrada Escritura. Precisamos conhecê-las mais, aprofunda-las mais para abrirmos as nossas mentes e corações. A verdadeira sabedoria da nossa vida se atinge nas páginas sagradas da Palavra de Deus. E hoje queremos conhecer melhor o salmo 46 do Antigo Testamento para descobrirmos a importância da nossa vida através da experiência do nosso Deus.

“Povos, aplaudi com as mãos, aclamai a Deus com vozes alegres, porque o Senhor é o Altíssimo, o temível, o grande Rei do universo.
Ele submeteu a nós as nações, colocou os povos sob nossos pés, escolheu uma terra para nossa herança, a glória de Jacó, seu amado.
Subiu Deus por entre aclamações, o Senhor, ao som das trombetas.

Cantai à glória de Deus, cantai; cantai à glória de nosso rei, cantai.

Porque Deus é o rei do universo; entoai-lhe, pois, um hino!

Deus reina sobre as nações, Deus está em seu trono sagrado.

Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo do Deus de Abraão, pois a Deus pertencem os grandes da terra, a ele, o soberanamente grande.”

O salmo inicia proclamando que o nosso Deus é rei do universo. Por isso devemos aclama-Lo e aplaudi-Lo. O contexto desse hino, provavelmente, deve-se enquadra-lo em uma grande celebração no templo de Jerusalém, onde teve uma solene entronização da famosa Arca da Aliança. O que é a Arca da Aliança? No livro sagrado do Êxodo encontramos que o profeta Moisés orientou a construção da mesma iluminado por Deus. Nessa Arca, foram guardadas as tábuas da Lei, a vara de Arão e um vaso do maná. De fato, essas três representavam a aliança de Deus com o povo de Israel. Para os judeus, a Arca não era somente representação, mas a própria presença de Deus.

Por exemplo, também para nós católicos, a Eucaristia não é uma representação de Jesus, mas a sua presença real. Dito isso, o salmo põe o Senhor no centro de tudo, ergueu acima de tudo, configurando-lhe títulos gloriosos como ‘Altíssimo, Terrível e Grande’. Com isto, exprime a onipotência divina, o seu poder sobre toda a criação. Nesse sentido, privilegia-se a eleição de Israel como seu povo para viver o amor Dele. E essa consciência que o Deus transcendente, altíssimo e grande escolheu um povo e uma terra prometida para que todos os povos e todas as terras sejam santificadas.

A segunda parte do hino é um convite a louvar esse Deus Altíssimo, rei de toda a terra. É uma aclamação destinada à realeza divina e, em particular, à arca da aliança. E esse louvor deve-se estender a todos os povos e os seus chefes, porque Deus é também soberano de todos eles, embora tenha escolhido Israel. Assim sendo, mostra o universalismo da missão que Deus entrega para o seu povo escolhido. O povo ‘do Deus de Abrão’ com a sua eleição recebe a missão de pregar a Palavra de Deus para que todas as nações, todas as raças e culturas se salvem. Deus é Senhor de toda a humanidade. E para nós cristãos, quem não lembra aquela passagem de Jesus onde declarava que ‘o tempo chegou e o reino de Deus está próximo’? (Mc 1,15).

A grande esperança de toda a humanidade é ter essa consciência que Deus é o Senhor dela e que Ele não a abandona. A respeito disso, leia esse texto de uma homilia do papa Francisco na sua capela de Santa Marta: “Deus é apaixonado pela nossa pequenez, e a sua misericórdia não tem fim”. “Este amor” de Deus que é “um amor tenro, um amor como o de um pai ou de uma mãe quando conversa com o filho que acordou assustado com um sonho” e conforta-o com um “fica tranquilo, não tenhas medo”.

“Todos nós conhecemos as carícias dos pais e das mães quando as crianças ficam inquietas por causa de um susto: ‘Não tenhas medo, eu estou aqui; Eu sou apaixonado pela tua pequenez’. E também: ‘Não temas os teus pecados, Eu quero-te bem; Eu estou aqui para perdoar-te’. Esta é a misericórdia de Deus”.

Para o Santo Padre, “o Senhor tem vontade de tomar sobre si as nossas fraquezas, os nossos pecados, os nossos cansaços. Jesus quantas vezes demonstrava isso e depois: ‘Venham a mim, todos vocês que estão cansados e eu dar-lhes-ei repouso. Eu sou o Senhor, Vosso Deus, te tomarei pela direita e Te direi ‘não tenhas medo, pequenino, não tenhas medo. Eu te darei força. Dá-me tudo e Eu perdoar-te-ei, te darei a paz’”. Por tudo isso, louvemos o nosso Senhor.

Deus é nosso refúgio

Recentemente, vi pelas redes sociais algumas cenas da novela DancinDays exibida pela Rede Globo entre os anos de 1978 e 1979. O que me deixou pasmo foi ver que, já naquele tempo, era levantada a questão da corrupção, desonestidade, o suborno, a falência do país, com o sistema penitenciário horrível, tudo isso em pleno regime militar. O princípio de dignidade e honra não é palavra abstrata, mas real, dizia-se nesta telenovela. A minha rápida conclusão foi de fazer a ligação daquele tempo com o nosso. Parece que os dois tempos estão em perfeita sintonia.

Portanto, regimes diferentes no poder, mas a realidade não muda! Então, como resgatar essa almejada sociedade honesta e digna? Creio que o famoso ditado popular que diz que o povo merece o governo que ele tem é uma denúncia de que precisamos mudar em primeiro lugar o próprio povo na sua maneira de pensar e agir para obter uma realidade mais honesta e digna. Aqui que está a questão: como o povo pode fazer essa mudança? Eu acho que são a educação e o ensaio verdadeiro da experiência de Deus na história de cada um. Essa experiência leva o ser humano a ser menos egoísta e mais altruísta.

Creio que a raiz dos males que nos assolam se centraliza principalmente no egoísmo humano, e por isso o salmo 45 da Bíblia nos ajuda a depor a nossa confiança em Deus e não no nosso ego. É esse ensaio que pode favorecer valores como a honradez, honestidade, dignidade e assim por diante. Leia o que diz o salmo:

“Deus é nosso refúgio e nossa força, mostrou-se nosso amparo nas tribulações.Por isso a terra pode tremer, nada tememos; as próprias montanhas podem se afundar nos mares.Ainda que as águas tumultuem e estuem e venham abalar os montes, está conosco o Senhor dos exércitos, nosso protetor é o Deus de Jacó.Os braços de um rio alegram a cidade de Deus, o santuário do Altíssimo.

Deus está no seu centro, ela é inabalável; desde o amanhecer, já Deus lhe vem em socorro.Agitaram-se as nações, vacilaram os reinos; apenas ressoou sua voz, tremeu a terra.Está conosco o Senhor dos exércitos, nosso protetor é o Deus de Jacó.Vinde admirar as obras do Senhor, os prodígios que ele fez sobre a terra.Reprimiu as guerras em toda a extensão da terra; partiu os arcos, quebrou as lanças, queimou os escudos.Parai, disse ele, e reconhecei que sou Deus; que domino sobre as nações e sobre toda a terra.Está conosco o Senhor dos exércitos, nosso protetor é o Deus de Jacó.”

Precisamos resgatar essa consciência do fiel que fez nessa oração. É Deus a nossa segurança, a nossa força. Não são as nossas estratégias de poder e de riqueza. Isso, segundo a Palavra de Deus, é pura ilusão.

Diz o salmo que dentro de Sião, cidade do Altíssimo, tem segurança. A paz reina entre os seus muros. Os horizontes se iluminam de imenso. É em Jerusalém que cada fiel experimenta o refúgio e a força de Deus. Fora dela a tempestade toma conta, tudo se agita: as águas destroem e os fundamentos da terra se abalam, o nada e o mal atentam a beleza da criação. Somente com Deus se encontra a paz. Quanto é verdade esse testemunho do salmista: não podemos buscar a paz fora do nosso Deus. A nossa vida tem sentido na medida em que estivermos ligados a Ele, no seu Templo.

Significa que temos que dar prioridade absoluta ao ensino da Palavra de Deus, das Sagradas Escrituras, e interpreta-las retamente. Sendo assim, não podemos nunca dar a última palavra, mas sermos fiéis discípulos do nosso Deus. É a nossa fé que nos dá mais plenitude de vida. Vivendo a nossa fé Nele nos despojamos do nosso egoísmo para estar em perfeita harmonia com Ele. E assim tudo pode acontecer, as turbulências da vida, abalos emocionais, incompreensões, traições, abandonos, mas a nossa confiança Nele é indestrutível. As forças malignas não poderão de jeito nenhum derrubar essa fonte da vida que é a fé em Deus. É essa vivência da fé que amplia o horizonte da esperança, que destrói a corrupção e a desonestidade. E para celebrar um país melhor precisamos nos deixar educar pelo nosso Deus. Precisamos ser somente bons alunos e não rebeldes, de cabeça dura. Evitar de sermos faladores de Deus, mas viver Dele. É nessa base que construiremos uma realidade de dignidade e honradez. Portanto, é a partir do povo fiel a Deus que construiremos também governos transparentes e honestos. Nada é impossível, mas somente sermos pessoas, um povo que tem sede da Palavra de Deus e se deixa conduzir por Ela.

No amor humano, uma faísca do infinito amor de Deus

O salmo 44 proposto hoje mostra que se existe o amor, existe Deus. De fato, ele nos diz que no amor humano se discerne o amor de Deus manifestado por Deus. Assim, o amor humano se projeta ao infinito que nele é implantado. Esse salmo é um hino de um poeta do palácio real que fez pela ocasião do casamento de um rei e da sua princesa de Tiro, rica cidade comercial fenícia. Visto em chave espiritual os judeus, este salmo, interpretam teologicamente o amor místico entre Israel e o seu Deus, e para nós cristãos em foco messiânico.

“Transbordam palavras sublimes do meu coração. Ao rei dedico o meu canto. Minha língua é como o estilo de um ágil escriba. Sois belo, o mais belo dos filhos dos homens. Expande-se a graça em vossos lábios, pelo que Deus vos cumulou de bênçãos eternas. Cingi-vos com vossa espada, ó herói; ela é vosso ornamento e esplendor. Erguei-vos vitorioso em defesa da verdade e da justiça. Que vossa mão se assinale por feitos gloriosos. Aguçadas são as vossas flechas; a vós se submetem os povos; os inimigos do rei perdem o ânimo. Vosso trono, ó Deus, é eterno, de equidade é vosso cetro real. Amais a justiça e detestais o mal, pelo que o Senhor, vosso Deus, vos ungiu com óleo de alegria, preferindo-vos aos vossos iguais. Exalam vossas vestes perfume de mirra, aloés e incenso; do palácio de marfim os sons das liras vos deleitam. Filhas de reis formam vosso cortejo; posta-se à vossa direita a rainha, ornada de ouro de Ofir. Ouve, filha, vê e presta atenção: esquece o teu povo e a casa de teu pai. De tua beleza se encantará o rei; ele é teu senhor, rende-lhe homenagens. Habitantes de Tiro virão com seus presentes, próceres do povo implorarão teu favor. Toda formosa, entra a filha do rei, com vestes bordadas de ouro. Em roupagens multicores apresenta-se ao rei, após ela vos são apresentadas as virgens, suas companheiras. Levadas entre alegrias e júbilos, ingressam no palácio real. Tomarão os vossos filhos o lugar de vossos pais, vós os estabelecereis príncipes sobre toda a terra. Celebrarei vosso nome através das gerações. E os povos vos louvarão eternamente.”

Lendo o salmo, podemos perceber na primeira parte a solenidade da entronização do rei, entregando a espada como símbolo do comandante geral do exército. Logo em seguida, faz a manifestação da sua realeza sobre todo o povo. E aqui entra a cena nupcial, que quer mostrar que o rei envolvido da potência de Deus quer ser parecido ao seu Deus, amando a justiça.

Na segunda parte do salmo, o rei apela à esposa para que: “Esquece o teu povo e a casa de teu pai”. E ela acompanhada de um longo cortejo se apresenta maravilhosa e ornada de vestes reais, porque é também filha de um rei, fazendo uma suave reverência ao marido. A esse ponto o amor humano, essa beleza criada, essa alegria, se tornam no nosso hino um sinal de Deus que é amor e beleza.

É essa experiência que leva a compreender o amor do Senhor. Portanto, é uma ação símbolo do amor divino para conosco e com toda a criação. A aliança de Deus com a humanidade é representada pelo amor nupcial humano. É o amor que salva a humanidade e a sua criação. Assim sendo, para compreender e louvar a Deus precisamos partir da realidade da história da humanidade, isto é, do seu dia a dia. A partir dessa verdade que se pode perceber e constatar que também o amor nupcial se torna uma presença do amor de Deus entre nós. De fato, na tradição, esse hino se tornou a representação do amor nupcial entre Deus e o seu povo Israel. A partir dessas reflexões, podemos entender o casamento cristão. O sacramento do matrimônio para nós católicos é o sinal eficaz da presença de Deus no amor e na história do ser humano. Esse hino enaltece através do casamento a presença de Deus. Constatar que esse amor do esposo pela esposa nos ajuda a discernir a presença do Senhor na nossa história.

A história do amor nupcial é a história do amor de Deus entre nós. E para concluir veja o que diz a respeito o papa Francisco na exortação apostólica pós-sinodal amorislætitia: “A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado em Cristo e na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf.Gn1, 26-27) até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19, 9)”.

O povo invoca incessantemente o seu Deus

Este salmo das Sagradas Escrituras é uma súplica do povo oprimido ao seu Deus. Assim como acontece na nossa história, quantas vezes a mesma comunidade se reúne e intercede a Deus para socorrê-la, porque a desgraça e as contingências da vida são totalmente adversas. O povo está numa pior e não tem mais para quem apelar, senão ao seu Deus. O salmo 43 é um exemplo de oração coletiva em que se concentra a esperança na fidelidade a Deus. Veja o que diz o salmo:

“Ó Deus, ouvimos com os nossos próprios ouvidos, nossos pais nos contaram a obra que fizestes em seus dias, nos tempos de antanho.

Para implantá-los, expulsastes com as vossas mãos nações pagãs; para lhes dardes lugar, abatestes povos.

Com efeito, não foi com sua espada que conquistaram essa terra nem foi seu braço que os salvou, mas foi vossa mão, foi vosso braço, foi o resplendor de vossa face, porque os amastes.

Meu Deus, vós sois o meu rei, vós que destes as vitórias a Jacó.

Por vossa graça, repelimos os nossos inimigos; em vosso nome, esmagamos nossos adversários.

Não foi em meu arco que pus minha confiança nem foi minha espada que me salvou, mas fostes vós que nos livrastes de nossos inimigos e confundistes os que nos odiavam.

Era em Deus que em todo o tempo nos gloriávamos, e seu nome sempre celebrávamos. Agora, porém, nos rejeitais e confundis; e já não ides à frente de nossos exércitos. Vós nos fizestes recuar diante do inimigo, e os que nos odiavam pilharam nossos bens.

Entregastes-nos como ovelhas para o corte, e nos dispersastes entre os pagãos.

Vendestes vosso povo por um preço vil, e pouco lucrastes com esta venda.

Fizeste-nos o opróbrio de nossos vizinhos, irrisão e ludíbrio daqueles que nos cercam.

Fizestes de nós a sátira das nações pagãs, e os povos nos escarnecem à nossa vista.

Continuamente estou envergonhado, a confusão cobre-me a face, por causa dos insultos e ultrajes de um inimigo cheio de rancor.

E, apesar de todos esses males que nos sobrevieram, não vos esquecemos, não violamos a vossa aliança.

Nosso coração não se desviou de vós nem nossos passos se apartaram de vossos caminhos, para que nos esmagueis no lugar da aflição e nos envolvais de trevas…

Se houvéramos olvidado o nome de nosso Deus e estendido as mãos a um deus estranho, porventura Deus não o teria percebido, ele que conhece os segredos do coração?

Mas por vossa causa somos entregues à morte todos os dias e tratados como ovelhas de matadouro.

Acordai, Senhor! Por que dormis? Despertai! Não nos rejeiteis continuamente!

Por que ocultais a vossa face e esqueceis nossas misérias e opressões? Nossa alma está prostrada até o pó, e colado no solo o nosso corpo. Levantai-vos em nosso socorro e livrai-nos pela vossa misericórdia.”

O povo oprimido pelo inimigo invoca Deus. É Ele que pode resgatá-lo dessa situação tão penosa. Quantas vezes também nós nos encontramos em situações dramáticas e talvez nos esquecemos de invocar o nosso Deus. Este salmo é, portanto, um exemplo de uma oração da comunidade em dificuldade. O que nos testemunha este hino? A oração desses fiéis lembra o passado triunfal da presença do Senhor. Com Ele, conseguiram triunfos e, no entanto, agora o presente se tornou vazio e triste. Um presente derrotado. Parece que Deus tinha abandonado de vez o seu povo e por isso ele recrimina, protesta contra Deus por esse abandono. Inclusive a oração ironiza Deus, dizendo que, permitindo a escravidão do seu povo, não ganhou nada, saiu perdendo.

 

Porém, Israel confia que o seu futuro será diferente, conseguirá reverter essa situação de humilhação, porque o seu Deus vai ‘acordar’ e irá ao seu encontro. Nessa fase da história, o povo sente-se ‘prostrado até o pó do chão’, pisado pelo seu inimigo. Somente Deus pode reabilitá-lo. Reconhece também o povo que o seu pecado é a razão de tudo isso. A partir de agora, sente-se inocente, porque confessou o seu pecado mantendo viva a aliança com o seu Deus. Mas também se pergunta o fiel por que Deus permite o mal, deixando o seu povo Israel que seja entregue à morte? É essa pergunta do justo que sofre. Esse questionamento, desse salmo, é ainda atual.

Quantas vezes ouvi me dizer ‘porque, padre, Deus permite tanto sofrimento, tanta dor?’ Porém, no final do salmo, aparece um pouquinho de esperança, embora de forma leve e provocante. O piedoso fiel levanta a questão da ausência de Deus. E por isso reclama que Deus não pode ser igual aos ídolos que não têm poder nenhum, mas pelo contrário, Ele é aquele que traz a salvação. Assim, o fiel proclama se Deus acordar, se tornar presente, também o fiel imergido no sofrimento, na dor, se reerguerá, voltará a esperar por uma vida melhor. Assim sendo, o autor desse salmo reza o seu Deus para se manter fiel a Ele, sem se preocupar na vingança dos seus inimigos. É essa fidelidade que lhe permite de compreender melhor a sua própria vida, embora ameaçada.

A nossa salvação é deus

A grande verdade que precisamos sempre lembrar é que somos peregrinos nessa terra. Não somos eternos aqui, nesse pequeno planeta! Justamente pelo fato de nós sermos peregrinos somos limitados e marcados muitas vezes pela dor, incompreensões, solidão, tristeza, depressão, dúvidas… O ser humano chega em certos momentos, inclusive, a viver as trevas da vida, que lhe tiram toda esperança e expectativa de futuro. Sente-se injustiçado, abandonado. Há pessoas que nem mais lágrimas descem pelo seu rosto por ter tanto chorado. Nesses momentos humanos cruéis não se tem nem mais forças para quem apelar, se desconfia de tudo e de todos. Pra quem apelar, então? Será que tem alguém ainda? O salmo 42 das Sagradas Escrituras nos dá um testemunho bem forte. Lembra-nos que Deus é Aquele que nunca nos abandona. Ele está sempre de prontidão para nos socorrer. O nosso Deus não dorme e nem descansa para nos atender. É um salmo bem impregnado de saudade; leia atentamente:

“Fazei-me justiça, ó Deus, e defendei minha causa contra uma nação ímpia. Livrai-me do homem doloso e perverso, pois vós, ó meu Deus, sois a minha fortaleza; por que me repelis? Por que devo andar triste sob a opressão do inimigo?

Lançai sobre mim a vossa luz e fidelidade; que elas me guiem, e me conduzam ao vosso monte santo, aos vossos tabernáculos.

E me aproximarei do altar de Deus, do Deus de minha alegria e exultação. E vos louvarei com a cítara, ó Senhor, meu Deus!

Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu Deus.”

Quem reza aqui o salmo 42, parece ser um homem incriminado por pessoas iníquas, que pede a Deus justiça, defesa pela sua incriminação. Ele, um judeu inocente, sente-se injustiçado. Tudo isso lhe provoca grande dor, abandono. Imagino quanta gente ainda hoje passa por esses momentos tão tenebrosos e humilhantes. Esse sofredor, filho de Deus, longe da sua terra, entre pessoas que não conhece, apela ao seu Deus. Confia que o seu Deus, perante tanta dor, não pode estar mudo, calado. Geralmente, quem é injustiçado vive também a solidão. Sente-se como uma pessoa em exilio, longe de todos, um desconhecido. Que dor! Eis aqui o grande ensino desse salmo, do testemunho desse fiel, a confiança em Deus!

Esse fiel levita tem a certeza que Deus vai intervir. O Senhor se torna para ele a ‘verdade’ e a ‘luz’ que o conduzirão à liberdade. A prova da vida é somente um tempo passageiro, um tempo relativo, porque invocando ‘luz e verdade’ para uma verdadeira peregrinação de libertação o fiel do salmo diz: ‘me conduzam ao vosso monte santo, aos vossos tabernáculos.’ Para nós cristãos o ‘monte santo e tabernáculos’ são as igrejas onde se celebra a santa Eucaristia. Chegando ao ‘altar de Deus’ diz o orante: ‘vos louvarei com a cítara, ó Senhor, meu Deus!’ Com essa alegria que o invade pode se tornar firme e não se deixar levar pelo desanimo e tristeza, porque o seu Deus virá ao seu encontro. A sua salvação, então, se tornará uma verdadeira realidade. Ainda hoje quantas pessoas por causa de tanto sofrimento e abandono perdem a própria identidade, parecem estar em perene exílio. Porém, a vontade de sorrir aparece quando descobrem Deus. Uma alegria que vem do Senhor se torna a força de erguer a cabeça e ir em frente. E aqui se resgata a identidade. É nessa identidade que se recompõe a vida da pessoa. O sofrimento, a dor, o abandono perdem o próprio poder na identidade do ser humano com Deus. Veja o que nos diz papa Francisco a respeito: “Se nós – um exemplo – estamos cheios de comida, não temos fome. Se estamos confortáveis, tranquilos onde estamos, nós não precisamos ir para outro lugar. E eu me pergunto, e seria bom que todos nós nos perguntássemos hoje: “Eu estou tranquilo, feliz, e não preciso de nada – espiritualmente falando – no meu coração? A minha saudade se apagou? Um coração que não tem saudade, não conhece a alegria. E a alegria, precisamente, é a nossa força: a alegria de Deus. Um coração que não sabe o que é a saudade, não pode fazer festa..”

Encontrado Deus a pessoa se transforma, se alegra. E daí o papa Francisco continua questionando: “Vamos nos perguntar como é a nossa saudade de Deus: estamos contentes, estamos felizes assim, ou todos os dias temos esse desejo de seguir em frente? Que o Senhor nos conceda esta graça: que nunca, nunca, nunca se apague em nosso coração a saudade de Deus”.

Essa saudade pode nos conduzir à verdadeira justiça que tanto almejamos e que os seres humanos não sabem dar.

O ser humano é sedento de Deus

As pessoas têm o direito de pensar e enxergar a vida além daquilo que enxergam e entendem. De fato, como compreender a preciosidade da nossa vida se não tivermos esperança de futuro infinito e belo? E quem nos pode proporcionar essa esperança da maravilha da nossa vida? Um belo dia, um senhor famoso, um grande intelectual, me disse: “Padre Claudio, eu tenho inveja do senhor!” Mas eu repliquei: “Como? O senhor tem tudo, não lhe falta nada e além do mais é reconhecido internacionalmente pela sua grande arte e pensamento!” Porém, ele retrucou: “Sim, eu tenho tanta fama, mas não tenho fé. No entanto, você, padre Claudio, tem fé”. Percebi que essa pessoa tão rica em todos os sentidos humanos reclamava da falta da experiência de Deus na sua vida. Não conseguia viver essa dimensão de fé em Deus. Quantas pessoas todos os dias manifestam esse desejo, mas não conseguem viver a experiência de Deus? É verdade também que muitas outras pessoas dão um grande testemunho de fé, e aqui quero lembrar a filha de Deus, Paula Novellino, que faleceu quarta feira, 04.01.2017. Uma mulher de muita fé. Eu agradeço a Deus pela sua vida que nunca se acaba. Dito isso, podemos dizer claramente que a nossa vida tem cada vez mais sentido e importância, na medida em que fizermos a experiência de Deus na nossa história. O salmo 41 das Sagradas Escrituras nos convida a colocar no centro da nossa vida essa experiência de fé no Senhor. Leia atentamente:
“Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus.
Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus?
Minhas lágrimas se converteram em alimento dia e noite, enquanto me repetem sem cessar: Teu Deus, onde está?
Lembro-me, e esta recordação me parte a alma, como ia entre a turba, e os conduzia à casa de Deus, entre gritos de júbilo e louvor de uma multidão em festa.
Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu Deus. Desfalece-me a alma dentro de mim; por isso penso em vós do longínquo país do Jordão, perto do Hermon e do monte Misar.
Uma vaga traz outra no fragor das águas revoltas, todos os vagalhões de vossas torrentes passaram sobre mim.
Conceda-me o Senhor de dia a sua graça; e de noite eu cantarei, louvarei ao Deus de minha vida.
Digo a Deus: Ó meu rochedo, por que me esqueceis? Por que ando eu triste, sob a opressão do inimigo?
Sinto quebrarem-se-me os ossos, quando, em seus insultos, meus adversários me repetem todos os dias: Teu Deus, onde está ele?
Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu Deus.”
O salmo nos revela aqui a saudade do fiel do Templo e de Deus. Sim, porque o autor declara como foi bom estar em Sião no passado e agora lamenta estar longe de tudo isso, em exilio. Exilado numa terra estrangeira. Como nós hoje quando estamos longe da própria terra natal, dos familiares, perdemos o entusiasmo e espontaneidade da vida. Sentimo-nos isolados e sós. E o salmista nos paragona a uma corça que anseia pelas águas vivas que refletem o drama de estar longe de Deus, do seu Templo. Longe da sua identificação religiosa e vivência natal. O suplicante vive cheio de saudade, que torna o seu presente bastante sofrido e, ao mesmo tempo, alimenta a esperança de um retorno às suas origens. As lembranças do passado, das suas manifestações religiosas, o tornam inquieto e triste. E as aguas que se revoltam e passam por cima da pessoa, biblicamente falando, significam que gera caos, isto é, produz morte. Para compreender melhor tudo isso, quero acrescentar umas palavras do papa Francisco:
“Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades, quando há tanta gente esperando o evangelho! Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher, mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar. Decididamente, pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são convidados para a Mesa do Senhor.” A respeito disso, o papa nos propõe um propósito para alimentar tudo isso. “Difundir, sustentar e valorizar os Exercícios Espirituais, pois os homens e as mulheres de hoje têm sede de encontrar Deus e conhecê-lo e não só de ouvir falar”. Portanto, Deus não é simplesmente uma proposta de vida, mas é a nossa vida. É Ele a nossa fonte de vida. Por isso, somos sedentos Dele, nunca cansaremos de atingir da sua fonte.

Feliz a pessoa que ajuda o pobre

Os pobres são um desafio para toda a sociedade. A pobreza é o grito de uma realidade que não deveria existir. Por que isso? É difícil dar uma resposta exaustiva, mas uma coisa é certa: Deus não criou isso! Isto é obra do ser humano. Na realidade, porém, o Salmo 40 do Antigo Testamento, das Sagradas Escrituras, propõe mais uma vez a teoria da retribuição em que delito e doença estão intimamente ligados: “Senhor; sarai-me, porque pequei contra vós”. Portanto, é o Salmo de um doente que está afetado também de uma doença espiritual, aquela da traição e da ironia dos falsos amigos. Mas o Salmo também penitencial é marcado por uma viva esperança no perdão de Deus. Leia atentamente o que diz:
“Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará. O Senhor há de guardá-lo e o conservará vivo, há de torná-lo feliz na terra e não o abandonará à mercê de seus inimigos. O Senhor o assistirá no leito de dores, e na sua doença o reconfortará. Quanto a mim, eu vos digo: Piedade para mim, Senhor; sarai-me, porque pequei contra vós. Meus inimigos falam de mim maldizendo: Quando há de morrer e se extinguir o seu nome? Se alguém me vem visitar, fala hipocritamente. Seu coração recolhe calúnias e, saindo fora, se apressa em divulgá-las. Todos os que me odeiam murmuram contra mim, e só procuram fazer-me mal. Um mal mortal, dizem eles, o atingiu; ei-lo deitado, para não mais se levantar. Até o próprio amigo em que eu confiava, que partilhava do meu pão, levantou contra mim o calcanhar. Ao menos vós, Senhor, tende piedade de mim; erguei-me, para eu lhes dar a paga que merecem. Nisto verei que me sois favorável, se meu inimigo não triunfar de mim. Vós, porém, me conservareis incólume, e na vossa presença me poreis para sempre. Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, de eternidade em eternidade! Assim seja! Assim seja!”
Esse hino proclama de um lado a tristeza e o medo que afligem o doente, e de outro lado, exprime a confiança da presença de Deus na sua vida atormentada, dando-lhe força, segurança, experimentando o seu perdão. Isto é uma alegria imensa. E na parte central do hino aparecem os inimigos do fiel em oração. Esses opositores amaldiçoam e desejam para ele, fiel, não somente a morte física, mas também a espiritual com a eliminação do nome, isto é, da lembrança; sem o nome desaparece na história.
Também a metáfora do ‘calcanhar’ sugere a ação brutal de quem esmaga o seu concorrente. Revela assim o autor do salmo que o amigo de total confiança se transforma traidor e, ao mesmo tempo, agressor indomável. O sofrimento se dobra. Parece o fim. Mas a oração se inflama mais ainda nessa realidade tão triste e amarga. Deus ama tanto que não quer vingança, mas perdão. O triunfo de Deus se manifesta no perdão. É o amor de Deus que salva e não a vingança das pessoas. A experiência do fiel em oração experimenta essa verdade: Deus é superior a todas essas traições e o fiel se sente confortado em seguir esse ensino do seu Senhor Onipotente. Sente-se preenchido na sua plenitude da vida em viver o amor de Deus e rejeitando a vingança humana.
Aqui cabe muito bem o ensino do papa  Francisco com a carta Apostólica “Misericórdia e mísera” em que nos indica a realizar uma ‘revolução cultural’ dos pequenos gestos, de total simplicidade, para fazer prevalecer na nossa vida ‘o tempo da misericórdia’. É essa experiência que nos leva a fazer grandes mudanças na vida humana, porque isto revela a presença do nosso Deus. E para concretizar esse maravilhoso salmo, sempre o papa Bergoglio instituiu o “Dia Mundial dos Pobres”, que será celebrado no penúltimo domingo do ano litúrgico da nossa Igreja.
O próprio santo padre disse o seguinte: “Intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário da Misericórdia, deve-se celebrar em toda a Igreja, na ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres”. O papa Francisco afirma ainda que este ‘Dia Mundial dos Pobres’ é uma “digna preparação para bem viver a Solenidade de Cristo Rei do Universo”, que encerra o ano litúrgico. Uma forma para promover a identificação da Igreja com os “menores e os pobres”. Justamente o santo Padre quis salientar que a justiça social, a paz na sociedade, será marcada somente quando se terá uma efetiva promoção em todos os sentidos dos menores e pobres. E essa jornada pretende impulsionar as comunidades e os cristãos a “refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho”.
Assim sendo, não podemos fazer vista grossa  perante os pobres, mas sim nos comprometer com eles. Somos testemunhas da misericórdia, e como tal não podemos arredar ‘os pés’. Portanto, qual são os sinais que podemos dar para viver esse comprometimento? Sempre Francisco nos recorda que devemos ser autores de uma cultura da misericórdia que possa se opor firmemente à indiferença e à desconfiança entre as pessoas. É nisso que consiste também a nossa felicidade.

O mal será derrotado

Quantos desesperos e gritos de dor se elevam todos os dias na vida das pessoas! O mal circunda o ser humano e o deixa ainda mais fragilizado na sua existência. Por que a maldade domina a vida? O salmo 38, das Sagradas Escrituras, fala-nos a respeito:

“Disse comigo mesmo: Velarei sobre os meus atos, para não mais pecar com a língua. Porei um freio em meus lábios, enquanto o ímpio estiver diante de mim. Fiquei mudo, mas sem resultado, porque minha dor recrudesceu.Meu coração se abrasava dentro de mim, meu pensamento se acendia como um fogo, então eu me pus a falar: Fazei-me conhecer, Senhor, o meu fim, e o número de meus dias, para que eu veja como sou efêmero.A largura da mão: eis a medida de meus dias, diante de vós minha vida é como um nada; todo homem não é mais que um sopro. De fato, o homem passa como uma sombra, é em vão que ele se agita; amontoa, sem saber quem recolherá.E agora, Senhor, que posso esperar? Minha confiança está em vós. Livrai-me de todas as faltas, não me abandoneis ao riso dos insensatos.Calei-me, já não abro a boca, porque sois vós que operais. Afastai de mim esse flagelo, pois sucumbo ao rigor de vossa mão.Quando punis o homem, fazendo-lhe sentir a sua culpa, consumis, como o faria a traça, o que ele tem de mais caro. Verdadeiramente, apenas um sopro é o homem. Ouvi, Senhor, a minha oração, escutai os meus clamores, não fiqueis insensível às minhas lágrimas. Diante de vós não sou mais que um viajor, um peregrino, como foram os meus pais.Afastai de mim a vossa ira para que eu tome alento, antes que me vá para não mais voltar.”

Surge inevitável a questão de querermos compreender de onde vem todo o mal, sofrimento e dor que fazem parte da vida da humanidade. Se tudo o que Deus fez é bom, como então? Para isso, remontamos à Bíblia. Seus vários livros se preocupam com o mal. Neles se encontra uma multiplicidade de imagens para falar do tema. Não se encontra neles uma resposta simples, racional, mas uma resposta de fé. Razão e fé (confiança) estão presentes nesse salmo. Por isso a Bíblia é diferente de outros livros. E esse salmo nos ajuda a fazer essa profissão de fé.

Deus não criou o mal. Ele se preocupa em libertar os seres humanos do mal. Para combater o mal, é preciso confiar em Deus. Resgatar nossa ligação direta com Deus, pela qual fomos criados, e que desfrutávamos no Jardim do Éden. Lembremos o prólogo do Evangelho de João, que nos chama filhas e filhos de Deus, para acentuar nossa dependência a Deus. E a dependência a Deus, a confiança em Deus, é uma liberdade total, para os seres humanos, pois também significa sua liberdade perante os esquemas do mundo, com sua lógica limitada, opressora, que reproduz muitas vezes o mal, que afasta Deus. Significa viver mirando as “coisas do alto”, o que tem consequências muito profundas em nosso mundo, em nosso modo de viver e conviver com os demais filhos e filhas.

Nós, seres humanos, não somos geradores do mal, mas aderimos a ele. Porém, procuramos dar uma razão a toda essa desgraça que vivemos no dia a dia, no mundo todo, com violências, guerras, fomes, injustiças, desigualdades brutais. Muitos se fazem a pergunta ou justificam sua falta de fé assim: por que Deus permite tudo isso? Quem tem de responder a essa questão somos nós. O problema não é Deus. Ele não criou o mal!

A Bíblia trata do problema do mal. Tenta compreender a relação entre Deus e o mal. Qual é a ligação entre Deus e o mal? A fonte do conhecimento é conhecer Deus. Já na origem, havia a preocupação sobre o mal. O ser humano, por si só não era capaz. Ele se apega a Javé, que vai lhe explicar, como nos mostra o fiel desse salmo. Deus é o ator principal. Não é a humanidade. A fonte do conhecimento é, portanto, Deus. Se não queremos fazer a experiência de Deus, ficamos com nossos conhecimentos limitados, pois restritos ao conhecimento da criatura.

Sabemos que os seres humanos são vítimas do mal e, também, aderem ao mal. Mas, temos a certeza de que Deus reverte essa situação. Na medida em que nos deixamos conduzir por Deus, conseguimos vencer o mal. Deus respeita sua criatura, seu livre arbítrio, mas não a abandona. Então, a realidade que o profeta Isaías descreve é a que vai triunfar.

Onde há intimidade com Deus, tudo é possível, o mal não prolifera. Temos uma relação com a terra que, de hostil e penosa, torna-se na nova criação, uma relação de reconciliação: “… serão plantadas vinhas cujos frutos comerão” (Is 65, 21). O trabalho se torna resposta à graça de Deus e instrumento para uma vida feliz: “não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos voltados a uma morte repentina” (Is 65, 23). Quantas promessas! Que destino de plenitude nos é reservado na aposta no nosso Deus! E o último mal a ser derrotado é a morte.